Grande Irmão, de Lionel Shriver

Grande Irmão, de Lionel Shriver

                                                                                                         

Desde que a obesidade passou a ser tratada como doença, os números ditos oficiais começaram a aparecer. Descobriu-se que não só países desenvolvidos, como Estados Unidos e Inglaterra, mas Brasil, México, e tantos outros, dispendem uma grana preta para tratar de pessoas que, pelos mais impensáveis motivos, comem além da conta. 

A própria autora sabe bem do que está falando: em 2009, seu irmão, obeso em estado mórbido, morreu de causas relacionadas à gordura aos 55 anos.  

Grande irmão (editora Intrínseca, 336 páginas) não é exatamente, entretanto, um auto-exame através da ficção. Quem lê Lionel Shriver sabe que o prato predileto dela é tocar na ferida, é lidar com os assuntos vigentes de uma forma arrebatadoramente honesta e forte. Sem que conhecêssemos a vida da autora, Grande irmão já é um livro inteligente e arrebatador. Um pouco antes do fim, porém, há um momento que nos deixa de queixo caído, que é quando ela tira a cortina da frente do leitor e, nesse momento,  vemos que a autora por si mesma também esteva ali, o tempo todo.  

Descobrimos no romance que Pandora é uma empresária recém-chegada à casa dos quarenta, que tem um marido nesta mesma faixa etária e dois enteados adolescentes, Tanner, um jovem longilíneo, arrogante e cheio de si e uma garota um pouco mais nova, Cody, que faz o papel de uma filha "bonitinha", certinha, e talvez por isso mesmo, não perfeita. 

Quando ela tem a notícia de que seu irmão, Edison, um pianista de jazz que ela já não vê há quatro anos, foi expulso do apartamento que dividia com um colega em Nova York, rapidamente se prontifica a recebê-lo por um tempo em sua casa em Iowa - dando não apenas o apoio que ele precisa naquele momento, mas também grana e a possibilidade de repensar sua vida, porque, claro, ele é seu irmão, e isso parece ser a coisa certa a ser feita.

E ela continua a "fazer a coisa certa". Em todas as vezes que ele faz algo que demonstra sua caminhada rumo a um lento suicídio, Pandora, a filha do meio e pacificadora por natureza, fica calada, embora pense em dizer algo. Mesmo depois de longos e excruciantes dois meses - que era o prazo para Edison ir embora, porque ele teria uma turnê em Portugal e na Espanha ao fim desse período - , quando ele quase chega às vias de fato com o marido de Pandora e depois de mudar os hábitos alimentares da sua família, Pandora decide, novamente, fazer algo pelo irmão. Algo que lhe parece ser o certo

Assim, arriscando seu casamento e sua família, Pandora decide que vai dar um jeito no seu irmão. Aluga um apartamento para ambos morarem, perto da sua própria casa, e, após fazer os cálculos, descobre que ele vai precisar de um ano para perder os 101 quilos que precisa perder. Mesmo contra seu marido e filhos adotivos, é isso que ela decide fazer e faz.

Em que pese toda a construção psicológica dos personagens, nenhum deles fica de fora do conceito de claro-escuro. Nenhum deles é uni, ou mesmo bidimensional. Mais uma vez, Shriver nos leva a conhecer seus personagens intrinsecamente, suas dores, seus traumas de infância, seus sonhos, desejos e esperanças. E é isso que torna o livro tão absurdamente humano.

Continuar a contar sobre a trama seria estragá-la. Basta ainda dizer que a primeira parte do romance se chama "Mais", a segunda "Menos" e a última, de pouquíssimas páginas, se chama "Fora". É nesse terceiro momento que a escritora coloca a história pelo avesso e nos faz lembrar que é ela quem está no controle. A conclusão do livro é perfurantemente dolorosa, e de difícil digestão. É quando somos lembrados de que Lionel Shriver não é unicamente uma romancista, ela também gosta de polemizar, e o faz com a consciência de quem está verdadeiramente fincada no mundo e não veio a passeio.

Ao fechar o livro após finalizá-lo, ficamos com a sensação de que nossa incapacidade de lidar com a comida é uma das grandes causas da nossa infelicidade. Não apenas na forma como comemos, mas o que ela representa dentro da nossa sociedade, na nossa espécie, naquilo que nos torna o que somos. E é diante dessa reflexão e dessa inquietação que, uma vez mais, é impossível para o leitor sair incólume da leitura deste livro arrebatador.

Vitória Valentina, de Elvira Vigna









Há alguns anos, tive um choque ao ler Daytripper, dos cartunistas brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá. Até então, eu tinha verdadeira ojeriza àquilo que se convencionou chamar de "graphic novel", ou romance gráfico: o escritor cria uma trama, geralmente inédita (digo isso porque há também muitas adaptações de romances consagrados), e une a imagens que podem, ou não, ser também criação do escritor.

Foi a partir do mencionado Daytripper que vieram em seguida Fun Home (Alison Bechdel), Pagando por sexo (Chester Brown), A máquina de Goldberg (Vanessa Barbara) e muitos outros. Finalmente eu havia entendido como, sob muitos aspectos, a união de palavras + imagem poderia dar um resultado tão sui generis.

Qual não foi minha surpresa, então, quando me veio parar nas mãos o mais novo trabalho da Elvira Vigna, escritora que descobri em 2010 com o romance Nada a dizer

Elvira é dessas escritoras cuja obra tira o nosso chão. Pegue qualquer livro dela, e você será chacoalhado. Todos são romances pouco convencionais. Ler Elvira Vigna é saber que nada é o que parece; têm-se a impressão de estar num jogo de espelhos. A narrativa vai, volta, volta mais ainda, corre lá pra frente - e o leitor vai montando os pedaços e construindo os sentidos. Quando tudo se encaixa, a certeza que fica é que quem determina muito do que está ali, impresso sobre o papel, é o leitor. Porque é exatamente assim com a vida real: você faz a sua leitura diante dos fatos. Sofrimento, prazer, delírios, tesões, pancadarias e assassinatos: tudo depende do olhar, e cada olhar é regido pelo que há dentro do olhar de quem olha, e pelo que há fora, e isso muda quando quem olha sou eu, você, o Zé ou a Elvira Vigna.



Vitória Valentina (editora Lamparina, 128 páginas) não poderia ser diferente disso. O romance vai e volta no tempo, é construído com pedaços de um quebra-cabeça e aos poucos vai adquirindo corpo e sentido(s). Começa com uma tragédia numa favela: um casal mata um outro casal de vizinhos para roubá-los. Só que na fuga eles não encontram sorte melhor e também morrem num acidente de moto. Os filhos dos casais, (Carla) Vitória Valentina e Nando, terminam por ficarem amigos e crescem juntos. Nando é negro, é gay, e pra lutar contra seu medo atávico de motos, resolve ser motoboy. Carla torna-se professora, mas também trabalha como uma espécie de "babá-professora" pra ganhar mais uns trocados. E Nando, para complementar a sua renda, vende fotos de interesse para portais da internet. Nando e Carla tornam-se cúmplices, unidos pela força de uma enorme amizade construída a base das adversidades pelas quais passaram e passam na favela. Acontece que um dia Nando vê uma entrega de dinheiro, que sai das mãos de um empresário até então sem máculas e vai parar nas mãos de um traficante. Como fator complicador, temos o fato de que o dono do portal de notícias resolve armar um plano para pegar empresário e traficante em flagrante, só que o plano dá errado, claro, e é aí que os protagonistas têm que buscar usar da sagacidade e resiliência pra sair da enrascada. Nesse ínterim, surgem o desejo, a abnegação, a tolerância consigo mesmo e com os outros.



Num texto afiado repleto de humor e perspicácia, Elvira Vigna critica esses valores cada vez mais em voga na nossa sociedade, como o consumismo, a força do poder econômico que oprime os que dependem da sua vontade, e um libelo contra o machismo, e a favor da liberdade do ser e de ser, tudo isso numa junção perfeita entre texto e imagens em preto-e-branco que, como a própria autora define, são imagens "sujas". Um deleite para os olhos, mesmo que muitas vezes representem aquelas velhas questões sociais que continuam aí, pra quem quiser ver, e que continuam doendo naqueles que ainda não se "icebergdificaram".

O livro é curto, delicado e profundo, como tudo o que sai de dentro dessa autora que existe para tirar a literatura brasileira do marasmo, e que deveria ser muito mais reconhecida e lida neste país. Um dia será, mas enquanto esse dia não chega, temos a sorte de ter uma escritora de tal envergadura sempre criando, inventando e colocando para o mundo não as suas verdades, mas seus questionamentos e suas indignações. E é por isso que devemos ler Vitória Valentina. É por isso que devemos prestar muito mais atenção na arte desta escritora sem precedentes.


http://www.vigna.com.br - site da autora


http://www.lamparina.com.br -  site da editora que ajudou a trazer a Vitória Valentina ao mundo.

Amálgama, de Rubem Fonseca



Em obra inédita, autor reúne 34 textos que são o mais do mesmo da sua literatura. Sorte nossa.


A obra que eu mais esperava esse ano, chegou. Confesso, sem auto-indulgência, que estava ansioso por esse livro desde que soube que 2013 traria nova obra de um dos meus autores favoritos.

Amálgama (Nova Fronteira, 160 páginas), mais recente livro de Rubem Fonseca, traz as velhas e boas características do autor: a profunda análise do caráter humano, a multiplicidade de nuances e vertentes que temos, a certeza de que, no fundo, nossa raça é execrável, e que poucas coisas, talvez nenhuma, nos salve de nós mesmos. A dura constatação de que estamos no limite de nós mesmos, apesar da capacidade que tínhamos (temos?) de sermos melhores (algo semelhante ao que faz Philip Roth).

Em seu novo livro, Rubem Fonseca narra, dentre tantas outras, a história de um pai que planeja matar o próprio filho por amor; uma mãe que pretende vender o filho que sua filha espera, assim que ele nascer, mas acaba tendo que desistir da empreitada; um entregador que utiliza-se de sua bicicleta de entregas para punir as pessoas que ele considera ruins (lembrando muito, embora em matizes mais simplificadas, o conto O Cobrador); um homem que, tendo concluído que não deve satisfação de sua vida a ninguém, resolve dar uma banana pra o que quer que as pessoas venham a pensar sobre ele; a história de um rapaz intrigado ao observar, de longe, que há um homem no parque que mata gatos afogados e decide fazer algo a respeito; a história de um assassino de aluguel que ainda tem algum escrúpulo.

E há também uma novidade: Rubem Fonseca, que diz que quase não lê ficção e prefere ler poesia, resolveu, dessa vez, incluir também alguns poemas. Claro, todos dentro dos temas que lhe são caros mas, ainda assim, poemas. 

Este ano, Rubem Fonseca fez 50 anos de carreira literária. É bastante tempo falando das mazelas que afligem o ser humano. Entretanto, eis aí uma fonte inesgotável: o que somos. Nos personagens de Amálgama, percebemos pessoas aparentemente comuns, mas cuja perspectiva de vida continua a ser, unicamente, apenas viver um dia após o outro. Não existe algo para além disso, porque a realidade que se impõe, a de que o real é igualmente efêmero, não produz em nós o sentimento de valorizar nada. Dignificar o Outro perdeu a razão de ser. A vida está cada vez mais banalizada, somos escombros de um prédio implodido, atesta Rubem Fonseca. E apesar de sermos muitos, viver é para poucos, posto que a maioria de nós apenas parece passar pela vida. 

Acabou-se a possibilidade de nos redimirmos. O que há é uma pletora que nos torna homens-cadáveres. E Rubem Fonseca consegue relatar cada vicissitude humana de forma magistral.

Como disse uma outra resenha sobre esse livro, na década de 60 e 70, a literatura de Rubem Fonseca tratava de mostrar as rachaduras no teto e nas paredes. Agora, ele se dedica a documentar as ruínas. 

E é exatamente isso. Para nossa sorte, ainda há quem nos abra os olhos. O que nos resta saber, é se ainda há tempo.

O amor que ousa dizer seu nome: uma homenagem à amizade

Turma do FLIPENCONTRO reunida


Alain de Botton, o popular filósofo suíço, afirma que viajar é uma arte. Até escreveu um livro sobre isso.

E, como toda arte, há aqueles que a executam com mais ou menos maestria; há ainda, simplesmente, aqueles que veem a forma de viajar do outro como uma orquestra sinfônica de Berlim, ou como uma orquestra de uma cidadezinha sem grande expressão. A viagem também está no olhar de quem viaja, dependendo de pra onde se vai, das pessoas com as quais se vai a algum lugar, da sensibilidade perceptiva.

Tendo ido à Fliporto (Feira Literária Internacional de Pernambuco) com o intuito de rever antigos afetos, conhecer pessoas com as quais só me correspondia, assim como de conhecer escritores com os quais tenho relação através de suas obras e ouvi-los discorrer a respeito de algum assunto, pude compreender a importância da amizade no contexto não apenas de uma viagem, mas da vida.

O grupo, composto de mais de vinte pessoas, se contarmos os agregados, germinou a possibilidade de um encontro durante o evento. E assim foi. Tendo nós nos conhecido pela internet e aproximados pelo amor aos livros, não poderia ter sido diferente. 

Assim, quero aqui registrar nominalmente meu apreço e meu afeto àqueles que, durante quatro dias, conviveram em diversos níveis de intensidade uns com os outros; e que sem dúvida, deixaram fincados no coração de cada um a força incomensurável da amizade.

Vou começar pelo grupo mais maravilhoso deste mundo, os queridos de Recife que nos receberam tão bem. E depois, em ordem aleatória.


Romero: obrigado por ter sido tão disponível o tempo todo (você queria até mesmo ir deixar-nos no aeroporto cinco da manhã!), por ser esse homem tão bem humorado, tão gentil e por ter nos acolhido tão bem. Foi também inestimável ter sido apresentado às suas pinturas, à sua arte e à delicadeza do seu trabalho. Você é um guia muito prestimoso, e sem dúvida, um amigo de alma grandiosa. Obrigado pelas risadas, pelos momentos compartilhados quando você tinha questões suas tão urgentes para resolver. Foste excepcional, e sei que tenho, em ti, um amigo.


Laura: obrigado por nos presentear com um dicionário de pernambuquês que não fica a dever em nada ao Kama Sutra (risos), por fazer a distribuição das camisas com "nossa logomarca", e por ter sido sempre tão gentil e companheira. Não convivemos tanto (bem sabemos que cada um de nós ia e vinha pra cima e pra baixo a todo instante, e alguns desencontros aconteciam), mas senti a sua generosidade, seu carinho e acolhida. Obrigado, mesmo!


Roberta: és essa menina-mulher deslumbrante. Você tem um sorriso capaz de pacificar países em guerra, é de uma energia e vitalidade sem precedentes; e ainda que com tanta coisa acontecendo paralelamente pra ti, não parou um só momento de se fazer presente. E sim, meu bem, você é muito, muito sexy! Linda, obrigado por tudo!

Jussara: que dizer dessa mulher linda, cativante, carinhosa e tão generosa? É, minha amiga, sei que sou "petiqueiro" (é isso mesmo?), mas é meu jeito, às vezes, de lidar com quem gosto ou amo. (Risos). Obrigado por ter nos acolhido tão lindamente, por esse coração que vale mais do que todas as mega-senas do mundo acumuladas, e parabéns pela família linda que você tem. Você tem uma energia tão gostosa, Jussara, que, embora abstrata, foi sem dúvida das coisas belas do nosso encontro.


Rosa: que dizer do ser humano com mais energia vital dentre todos? Que dizer da amiga há tanto tempo conquistada? Rosa, você é indescritível, e adjetivos não te alcançam. Sou muito grato por ter tido a oportunidade de ver-te mais uma vez (e que venham outras tantas!), sentir seu calor, a cor da sua amizade, a beleza da sua alegria que contagia a todos. E amizade é isso mesmo, esse contato estreito (de onde pode até sair faísca, é normal, contanto que não haja explosão!...), esse cuidado gostoso, e a promessa de que ali existe uma semente que gerará bons frutos. No nosso caso, sem dúvida temos todo um campo onde brotam lindas flores. E que seja sempre assim.


Jaziete: a preciosidade dos minutos passados contigo foram uma dádiva. Seu jeito suave, a tranquilidade do seu olhar, o respeito por cada palavra por ti proferida: sabedoria. É assim que meu eu chega a ti. Você é de uma alma repleta, você constrói tessituras que ampliam o sentido da convivência e da amizade. Espero, sinceramente, que nossa amizade seja próspera, porque tê-la por perto é como uma graça alcançada.


Jô Angélica: a minha graciosa surpresa! Jô, nem sei por onde começar a tentar fazer meu carinho por ti compreensível. Você, tal como a lagarta no casulo, abriu-se para mim como a borboleta que dali de dentro nasce, batendo as asas ampla, largamente, reconhecendo-se no mundo, predisposta a fazer aquilo para que nasceu: voar, conhecer novos horizontes. Refiro-me aqui, claro, ao horizonte da amizade. Ao fato de você ter se permitido, tão lindamente, alçar-se para o encontro conosco. Jô, que ser humano lindo você é. Tudo em você resplandece: sua voz firme, graciosa, seu jeito despojado e elegante, a força das suas palavras e atitudes. Jô, que sorte tenho eu em ter podido te presentear com algo, mais uma vez. Eu jamais sonhara que tu és como tu és, e recebi de ti o maior presente de todos: o acolhedor carinho da tua amizade. 


Suca: sempre te quis um bem virtual enorme. Sua inteligência e senso de humor sempre me arrebataram. Porém, quando nos vimos, diante de tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, não nos aproximamos logo. Aos poucos, pude ir compreendendo melhor o seu olhar, seus trejeitos, sua delicadeza tão singularmente bela. Foi de uma alegria tão indizível, te conhecer, que fiquei deveras com saudade. Obrigado pela amizade, e por ajudar a construir o caminho que, dentro do mundo virtual e fora dele, nos levou um ao outro.


Silvia: não te reconheci assim que te vi, no café da manhã. "Essa daqui é a Silvia", alguém me disse. E eu pensei que você fosse uma das donas da pousada. Aos poucos fui entendendo que você é a mulher da foto do Facebook. Também aos poucos, compreendi que você tem uma história bela e árdua, como são as histórias atemporais; e senti a sua força, sua aura suave, delicada e ao mesmo tempo, impávida: ali estava uma mulher forte, mas que não perdeu a doçura diante das mazelas do mundo. É assim que te vejo, e foi essa a verdade, ainda que minha, que se assomou em mim durante aqueles quatro dias. Você é uma mulher linda, Silvia, e fiquei muito grato pelos momentos de convivência.


Cristine: inicialmente, tive o impacto que você disse que todo mundo tem. Pensava: "Mas como é incisiva! Como é dura!" De fato, você não deixa por menos. Aos poucos, entretanto, descobri também uma mulher absolutamente doce (mais até do que imagina, talvez), generosa, e inteligentíssima. Você é dessas pessoas que se tornam cúmplices de alma, Cristine. Que ao tocar e permitir-se ser tocada, transforma o comum em sublime. E isso, por si só, já é muito.


Priscila: convivemos tão pouco, não foi? Mas eu percebia a sua gentileza, a sua simpatia e cuidado. Gostei imensamente de ter te conhecido, sei que valeu a pena refazermos o sorteio pra que você também estivesse entre nós, né? Obrigado.


Helena: tu te transformas num mulherão ao transbordar de tanta sensibilidade. Convivemos pouquinho, ainda mais estando nós em lugares diferentes na cidade... mas eu pude perceber, de observar, mesmo, que você é dessas cujo afeto é maior do que seu corpo, do tamanho da sua alma, e esta, não tem limites. Que bom que estás conosco.


Hira: Hira querida, como foi bom te rever! Você também faz parte dessas que, inicialmente, tem um semblante de quem tem autoridade pra mandar prender e pra mandar soltar (e ai de quem desobedecer!). Mas já na primeira vez que te vi, em Fortaleza, ao olhar pra você, aproximando-se da mesa, séria, e pensar justamente que você estava por demais séria, logo em seguida você se saiu com essa: "Que tanto abraço e beijo é esse? Eu também quero!" E aquele sorrisão abriu-se. Você sorri com a sinceridade de uma criança, Hira, e eu notei isso desde aquele dia. É muito bom compartilhar com você sua visão e conhecimento de mundo, sua sabedoria e suas opiniões, as mais diversas. Concordando plenamente ou não, o mágico é poder ouvir-te e descobrir, perceber, fazer a troca. Que venham os próximos encontros!


Lucila: mas você é mesmo uma "Ludmila Safada", né? Doida pra me pegar! (E até que me pegou mesmo, por uns 10 segundos!). Olha, não sei de onde você tirou que iríamos "bater os chifres, mas que iríamos acabar por nos entender". Acho que nos entendemos sem bater os chifres, não foi? Tudo bem que você queria muito e tanto, e eu, às vezes, estava aéreo, no meu mundinho autista. Mas sou assim mesmo, desse espírito de me deslocar para dentro de mim mesmo, e o mundo se perde lá fora... De todo modo, saiba: ter sido seu amigo secreto foi muito bom. Adorei. E adorei ainda mais poder conhecê-la, e você ter deixado eu apertá-la quando eu bem entendesse, que delícia! Da próxima vez quero morder também, viu? (Risos)


Henrique: que dizer da maior expressão de amizade, força, amor e sabedoria que a vida já trouxe até mim? Obrigado pelos dias de convivência em Olinda, onde aprendi - aprendo sempre - a ser um pouco melhor. Onde compartilhar um quarto se tornou também sinônimo da mais profícua relação de se dar mútuo, ao sabor das brincadeiras, boas conversas e garantia de bom humor. Saber que você existe nesse mundo torna a vida um lugar de coisas belas. Que não nos percamos nunca, meu querido, porque cada instante de convivência é também um instante da mais pura força e magia, para além da compreensão. Há esse encontro de almas que se locupletam e se regozijam com o sentimento mais verdadeiro, atemporal. Ter em você meu melhor amigo é a maior dádiva de todas. Um presente que se renova sempre na expectativa de te reencontrar. Ad eternum...


Que as próximas viagens possam me trazer ou me levar até cada um de vocês. 

Que a amizade, o amor, o desejo de compartilhar e a literatura continuem a nos unir.

E que venham os próximos capítulos!



Sangue Quente, de Claudia Tajes

Sangue Quente, de Claudia Tajes


Humor e sagacidade como canais para tratar de temas mundanos e tão caros a cada um de nós - mas sem a descartabilidade dos dias atuais.


Sempre que ouço falar de Claudia Tajes, seu nome vem associado ao adjetivo "engraçada". E isso me incomoda desde então. Não, isso nada tem a ver com uma possível ranzinzice deste que vos escreve. O problema é que essa palavra vem, invariavelmente, acompanhada da ideia de algo superficial e descartável. No Brasil, a ideia do riso ainda está muito atrelada a coisas do naipe dos programas de humor que passam aos sábados e domingos, e que vomitam mau-gosto, clichês, preconceito e bizarrices sem precedente em qualquer outra televisão do mundo. 

E olhe que Claudia Tajes também escreve para a TV. Mas quanto a isso, quem quiser que procure no Google.

Ouvi falar desta escritora pela primeira vez quando o livro A vida sexual da mulher feia começou a ficar famoso. Com um título desses, seria impossível não abrir um sorriso logo de cara ou, pelo menos, arquear uma sobrancelha, intrigado. Isso foi lá em 2005, e eu não pude evitar, a não ser procurar lê-lo.

De fato, a escrita de Claudia é leve, flui com a rapidez com a qual correm os nossos dias, cada vez mais dinâmicos. Mas não é uma bobagem.

Sangue Quente (L&PM, 136 páginas), que tem como subtítulo Contos com alguma raiva, já se entrega desde o título, como tem que ser numa literatura que se propõe incisiva: trata-se de um livro de contos (o primeiro da autora) e todos eles estão reunidos sob a égide do calor, do sangue latino que ferve nas veias. 

Os motivos são muitos: vão desde fins de relacionamentos, problemas de família, serviço ruim prestado por empresas telefônicas, as dificuldades de se gerenciar um negócio. Os personagens são muitos, e eles somos nós, as pessoas com as quais convivemos ou temos de conviver. Em 136 páginas, Claudia Tajes consegue reunir os mais diversificados tipos, e é precisamente aí que se encontra sua arte maior, e que a tornará duradoura: são histórias curtas, mas que dão a medida precisa do que é ser humano, com direito às nossas raivas do dia a dia, nossas dúvidas, angústias, medos. Sim, o livro é engraçado. Em alguns momentos, ri alto. Mas mais do que isso - e assim como nos outros livros da autora - o que temos em Claudia Tajes são homens e mulheres exercendo o seu direito (e dever) de ser gente, no sentido mais profundo da palavra. O direito de sermos canalhas, hipócritas, histéricos, apaixonados, ingênuos, atabalhoados, incompreendidos, mal-compreendidos... em última análise, falhos. Imperfeitos. 

O humor é utilizado para examinar a nossa própria solidão, (se somos o que somos, como não rir de tudo isso?) nossa inadequação perante o mundo, e nossa eterna busca seja lá pelo que for. A literatura de Claudia Tajes é capaz de mencionar Cassandra Rios, e também de ser tão contemporânea que chega a ser quase libertina. E libertária. 

Em algumas dezenas de contos curtos, somos transportados para nossas próprias vidas e levados a refletir sobre o que somos, o que temos diante e adiante de nós. Com o humor que lhe é característico, mas com o devido tom de forma a jamais banalizar o tema, a sensação, terminada a leitura, é a de que encontramos um livro repleto de vida. Repleto daquilo que somos, que nos torna humanos e que sim, nos dá direito a dar boas risadas, porque até que o último dia chegue, é mesmo preciso rir de si, da vida, do trágico. A força de sua literatura fica nas entrelinhas. A beleza e a graça, a cada virada de página.

Que venham os próximos.

Claudia Tajes

Noites de Alface, de Vanessa Barbara

Noites de Alface, de Vanessa Barbara





A dor da perda e o olhar bem humorado diante das trivialidades da vida


Quando a esposa de Otto morreu, as roupas ainda estavam pingando no varal. Essa imagem está lá, no livro, e de cara, numa ideia concretizada em algo pictórico, já antevemos a escrita de Vanessa Barbara, que faz um jogo onde entram o humor, frases poéticas e ideias que se unem a outras, fazendo-nos ter a certeza: através de uma escrita onde as palavras vão sendo sobrepostas, numa construção que só mais tarde leva a algum lugar, como num romance detetivesco, a escritora vai cativando o leitor não apenas para ler a página seguinte, mas igualmente, para se permitir ser transportado para um lugar quase bucólico, que na verdade, são dois: o lugar físico, através das descrições da vizinhança onde residem Otto e sua falecida esposa Ada, além de todo o grupo de personagens que os circundavam, e o lugar do Outro, que é também feito da dor da perda, mas também abre espaço para a leveza, as vicissitudes de uma existência comezinha, e para as complicações inesperadas que a vida traz.

Noites de Alface (Alfaguara, 168 páginas), é aparentemente um romance fragmentário. Cada capítulo leva o nome de um (ou mais de um) dos personagens, que convivem na mesma vizinhança. No capítulo em questão aquele (ou aqueles) personagens, naturalmente, terão protagonismo, embora não deixem de interagir com os demais. Assim, conhecemos um farmacêutico viciado em ler bulas de remédios e nos efeitos colaterais de cada medicamento, uma senhora esotérica e viajandona, um japonês ex-combatente de guerra que tem certeza que a duração da Segunda Guerra foi muito maior do que na realidade, uma datilógrafa que vive ligada e seus cachorros, um carteiro que faz suas entregas a esmo, e uma antropóloga casada com um marido que vive viajando (literalmente) e obcecada por esquimós. E o melhor: apesar de todas essas, digamos, peculiaridades, conseguimos crer que aquelas pessoas existem. De alguma forma, ali está aquela tia amalucada que cada um de nós temos ou tivemos, aquela prima que parece viver numa realidade paralela, aquela amiga solteirona que se joga no trabalho e na vida alheia como forma de preencher suas lacunas. É tudo vida real.

Toda essa gama de personagens, de uma forma ou de outra, acaba por tirar o sossego de Otto, que desde a morte de sua Ada, não quer sair de casa, nem lidar com a luz do dia. Sua vida esvaziou-se e, pra ele, é assim que tem que ser até o último dia. Não fosse a intervenção dos vizinhos, que vão, aos poucos, transformando seus dias, apesar de sua ranzinzice. 

E o título? Evidentemente, explicar o título é tirar do leitor o deleite de senti-lo fazer sentido durante a leitura. E é uma experiência que o leitor precisa ter. Um momento simples e caracterizado pelo bom humor que retrata justamente a beleza e a ternura de uma vida compartilhada. Um achado.

Com a proeza de uma escritora acostumada a refletir sobre aquilo que torna a vida esse gigantesco amálgama (Vanessa Barbara é cronista da Folha e do The New York Times, além de escrever uma crônica mensal no blog da editora Companhia das Letras e de ter um site onde publica crônicas sobre assuntos variados), Vanessa entrelaça as diversas tessituras por ela criadas, tornando cada parte um todo, e dando ao leitor, ao chegar à última linha, a convicção de que, em menos de duzentas páginas, cabem todo um universo.



Textos da autora -





Voar, voar, subir, subir... [Parte 2 - final]

Voar, voar, subir, subir... [Parte 2 - final]




Hora de voltar. Leve depressão, disfarçada numa dor de cabeça. Eu queria morar em Curitiba, mas a realidade gritava pra mim de longe. 


Retorno: Curitiba-Brasília

O voo deveria sair rumo à capital federal às 7:07 da manhã. 

Todos acomodados, aeronave lotada, agora era só esperar. 

7:10, e nem sinal de que o avião ia começar a se mexer. 

7:15, 7:20... 7:40. Barulhinho de microfone, seguido da mensagem.

"Bom dia, senhoras e senhores. Aqui quem fala é o comandante (com a situação posta, o tom de voz e o próprio comandante falando assim de cara, a mensagem era clara: lá vem merda!). "Devido a um problema de excesso de peso, o que pode interferir na performance da aeronave, solicitamos que sete passageiros voluntariamente queiram sair do voo e embarcar numa outra aeronave, provavelmente da empresa Avianca, que sairá meia hora depois do nosso". 

Tensão no ar. No ar de uma aeronave no chão, que fique bem claro.

As pessoas começaram a se entreolhar. Vários barulhos de solicitação de auxílio puderam ser ouvidos quase simultaneamente. Comissários iam de lá pra cá com copos d'água. Nova intervenção no microfone:

"Aqui é a comissária-chefe. Quero informar que somente pessoas com destino final em Brasília poderão se voluntariar, passageiros em conexão, não'.

Eu, que já estava tirando o meu cinto pra cair fora daquele avião (sabe-se lá qual era o verdadeiro problema), tive que me recostar na poltrona, frustrado. Hora de acender a minha luzinha. A própria comissária-chefe se aproximou.

"Mas o que é que está acontecendo? Nunca ouvi falar num problema desses. Qual é o risco?"
"Senhor, o que aconteceu foi que, de última hora, a companhia mudou a aeronave que faria esse trajeto, de modo que o peso que estava programado para a outra aeronave ficou muito grande para esta, impactando na performance do voo. Daí, estamos no processo de retirar parte da bagagem e dos passageiros. Mas já conseguimos o número de voluntários, já já estamos de partida".

Só que não se tratava de pressa em sair. Mas de não ter pressa em cair. Resignei-me. Eu não podia me voluntariar mesmo, então, a sorte estava lançada.

Perto de 8h, o voo partiu. De Brasília, onde chegamos duas horas depois, eu deveria sair da aeronave "com problema de performance" e ir para uma outra, que me traria de volta a Fortaleza. Lá chegando, novo aviso no microfone (acho que aquela tripulação tem vocação pra palco, só pode): "Atenção, senhoras e senhores" (ou pra circo, porque todas as informações começavam desse jeito), "... os passageiros que tem como destino final Fortaleza e Recife, por favor, permaneçam na aeronave".

Com quase a totalidade dos passageiros em pé se espremendo no corredor, os poucos que iam para Fortaleza ou Recife buscavam se identificar, naquele momento difícil em que você busca a solidariedade dos que estão enfiados na mesma bosta. Uma espécie de conforto, uma solidariedade entre estranhos. 

Logo, fomos avisados que não faríamos mais conexão, mas escala, e que não iríamos mais direto pra Fortaleza. Agora, íamos antes pra São Luís, no Maranhão. Eu, que no dia anterior mencionara aos meus companheiros de viagem que não tinha como prioridade conhecer a terra de Sarney, tive que botar meus pés por lá e sobrevoar a região, a contragosto. 

Ironias da vida modo ON. 

O que era ruim, poderia piorar, certo? Sim, claro que poderia.
Não demorou muito, de repente vários homens uniformizados começaram a entrar no avião. Eram todos de um time de futebol chamado Sampaio Corrêa, que parece ser do Maranhão. Todo o time, junto da ala técnica, estava dentro desse voo. Com menos de três minutos, uns cinco já estavam cantando um pagode cuja letra é irreproduzível, enquanto o restante dos passageiros fingia dormir (parece que isso serve pra esconder a vergonha), soltava aquele famoso sorrisinho amarelo, ou fazia cara de raiva, tentando se concentrar em alguma outra coisa. 

O que é fato é que todo esse pessoal, que certamente não tem grana pra fretar um avião só pra eles e fazer o furdúncio que quiserem, resolveram tirar a calmaria de quem estava no avião só desejando chegar a seus destinos. Por diversas vezes, a tripulação teve que fazer uso do microfone para pedir que eles parassem de pular de poltrona pra poltrona, que se comportassem e que desocupassem o corredor. A comissária-chefe, por pouco, não perde a esportiva.

Durante um momento de turbulência, com raios e tudo o mais, aqueles gremlins não paravam de batucar e cantar em coro músicas com letras cada qual mais.... peculiar, digamos. 

Ao chegarmos em São Luís e já decidido a eu mesmo sair da aeronave se aquele time fosse até Fortaleza, algum santo intercedeu por mim e tirou-os todos de lá. 

Estava difícil querer existir depois de tanta loucura a bordo daquela aeronave. Minha cabeça dava voltas. Tudo que eu queria era vencer o próximo voo, que teria a duração de 56 minutos, de acordo com o comandante. E chegar. E ao chegar, partir de volta. 

Fortaleza virou um front. E eu nunca fui preparado pra guerras do caos urbano. Ainda morro no asfalto, mesmo. 

Eu, que tanto reclamo de voar.
Voar, voar, subir, subir... [Parte 1]

Voar, voar, subir, subir... [Parte 1]


[Para ler ao som de Byafra e seu O Sonho de Ícaro - aqui. Porque nada como essa música kitsch pra ilustrar os momentos descritos abaixo]





Malas prontas.

Tudo certo para conhecer Curitiba, uma capital que até então era um mistério pra mim. A ideia era aproveitar ao máximo as horas de folga numa cidade razoavelmente cosmopolita e de temperatura amena. Mas essa crônica não é sobre a cidade. É sobre o movimento feito para chegar lá, e para sair de lá. Conquanto não tenha sido vítima do tal "caos aéreo", que, ainda que não esteja resolvido, anda razoavelmente amenizado; vivi situações de voo, numa única viagem, que me foram absolutamente inesperadas. E é de fatos surpreendentes que se faz uma viagem. Mas da próxima vez que quiserem me surpreender no voo, abandonem um livro nas poltronas ao meu lado, larguem algo muito bom pra eu arregimentar pra mim. Surpresas como as mencionadas abaixo, quero passar longe das próximas vezes.


Fortaleza-Rio - duas horas da manhã.


Adentrei na aeronave achando tudo nela muito velho. Digo, o design do avião me parecia... antigo. Quando entrei, a impressão se confirmou quando reparei nas poltronas, no espaço para guardar a bagagem de mão... e piorou quando vi o espaço entre minha poltrona e a da frente. Eu, que não sou alto, me antevi numa lata de apresuntado. Só que até aí, nenhuma novidade. Quem nunca ouviu falar sobre esses pequenos detalhes, seja nos aviões da Gol, da TAM, da Varig, Vasp ou da Transbrasil? (É, reclamação vem de longe). 


Resolvi pegar o livro que estava lendo (Elogio da Madrasta, do Mario Vargas Llosa), acendi a luz e mandei ver. É bom relembrar o horário: duas da manhã. Costumo estar dormindo nesse horário e, sem demora, meu cérebro resolveu me lembrar deste detalhe...


"... solicitamos imediatamente a presença de um médico munido de seu CRM!", ouvi uma voz bradando firmemente em um microfone. O avião, até então, seguia em paz. Tudo escuro, tranquilo: calmaria. Acordei achando que estava sonhando. Quase deixo o livro cair no chão, mas me recompus depressa e o apanhei a caminho do chão. Parece que há mesmo uma emergência a não sei quantas centenas de metros de altura.


Quando olhei para o lado, vi um amigo meu, que tinha ido no mesmo pequeno grupo que eu, em pé no corredor do avião, parado. Ele não se mexia. E a esposa dele estava grávida. Em menos de três segundos, eu já tinha várias hipóteses na minha cabeça: a esposa dele estava precisando de ajuda, e ele, apesar de ser médico, não conseguia fazer nada e precisou pedir auxílio. Ou então ele estava esperando pra ver se outro médico tomaria a frente da situação. Ou quem estava passando mal era ele mesmo. Ou algum dos pilotos (já que eu não ouvia nenhum tipo de comoção, nenhuma balbúrdia, nada. Aquilo só podia estar acontecendo dentro da cabine dos pilotos!). 

Em seguida vi este meu amigo indo, junto com um comissário de bordo, até uma poltrona mais à frente. Passou pela minha cabeça que o avião ia cair. Depois eu disse a mim mesmo, Não, idiota, claro que não. Ninguém passando mal derruba um avião. Aí lembrei a história que um conhecido me contou que alguém num voo em que ele estava certa vez, acabou morrendo. E tiveram que levar o cadáver sentadinho até o fim da viagem, já que ninguém podia mexer. Que situação.

Ocorre que soube, em poucos minutos, que aquela que ouvi já era a terceira chamada de pedido por médico. E que a pessoa que passou mais tinha tido algo como um ataque de epilepsia - que ele nunca tinha tido antes - mas que agora estava aparentemente voltando ao normal e não ia morrer por causa daquilo. Não naquele momento, pelo menos. E muito menos derrubar um avião. 

Chegamos no Galeão, no Rio de Janeiro, exaustos. Obviamente, todos os passageiros acabaram por acordar e ficar acompanhando, atentos, o que se passava. O estado de tensão era enorme, e a impressão, ao desembarcar no Rio, era a de que eu havia sido triturado.

A espera para o próximo voo foi de mais de duas horas. 


Rio de Janeiro-Curitiba - por volta de 9h da manhã


Completamente estropiado, eu e mais os quatro que foram comigo aguardamos o voo seguinte na sala de embarque. Este foi mais tranquilo. Alguma turbulência, e só. O sono continuava a me perseguir. Inesperadamente, neste avião dava até pra esticar melhor as pernas. E quando a cidade apareceu ao meu redor, senti a alegria se avolumando. Eu estava, enfim, no céu.

Dignidade

Dignidade




Eu vinha caminhando pela calçada, com o único destino de chegar ao meu carro, estacionado a uns trezentos metros dali. Já passava de uma da tarde, o sol a pino, a camisa já úmida em alguns pontos, o pensamento no carro, em chegar em casa e comunicar às pessoas interessadas que eu acabara de sair dos Correios, onde havia postado para elas o que havia sido prometido, na água da geladeira, no almoço, quando, ao cruzar uma esquina para chegar até a calçada seguinte, um senhor me abordou.

Ele não pediu licença, não desejou boa tarde, me viu e foi logo dizendo, numa voz baixa mas audível: moço, você sabe onde fica a rua tal? Eu olhei de esguelha e vi que o homem não oferecia riscos, parei. Sempre tive péssimo senso de localização. Disse a ele que me desse alguns segundos, eu já tinha ouvido falar naquela rua, mas tinha que me situar, pra saber para qual direção ela ficava. Ele ficou olhando pra mim, todo esperando. 

Enquanto eu pensava, olhei pra ele de forma mais ampla. Era um senhor baixo, atarracado, muito magrinho, pele morena e frágil. Estava com cara de quem, assim como eu, precisava muito de água. Sua camisa xadrez, puída, dançava solta pelo seu corpo, como a dizer que já vestira alguém mais corpulento antes, e sua calça bege estava completamente molhada na parte interna. Em algum momento na sua caminhada, ele não aguentara e urinara nas calças. Foi quando compreendi que ele não apenas não sabia onde ficava a rua que procurava. Ele estava perdido.

Perguntei de onde ele vinha. Era de longe, muito longe dali. E, segundo ele, a pé. Comecei a ficar preocupado. Fiz perguntas óbvias, como o nome dele, onde ele morava, o dia da semana em que estávamos. Senti-o um pouco desorientado e apreensivo, mas ele respondeu tudo, ainda que não bem certo quanto ao dia da semana. Tudo bem, até eu esqueço, às vezes.

Conduzi-o até uma esquina que dava numa avenida grande, onde os ônibus passam e o levariam até onde ele queria ir. Enquanto andávamos, ele me contou, ao ser perguntado, que tinha esposa e filhos, mas que "eles vivem a vida deles, meu filho". Suspirei. Comuniquei pra ele qual o ônibus que ele deveria pegar, mostrei a parada e, ao atravessar a avenida, segurando-o pelo punho, tomei a decisão de eu mesmo levá-lo pra onde ele queria ir. Era na direção oposta à minha casa mas - dane-se! - não era tão longe de onde estávamos. 

Falei pra ele a respeito de levá-lo lá. Pensando que ia ouvi-lo agradecido, o que ouvi foi um sonoro e arrastado NÃAAAO, seguido de um "desculpe, mas de jeito nenhum eu quero incomodar o senhor". Eu, que tenho pelo menos uns 40 anos a menos que ele. Senhor. Insisti: "Não vai me incomodar, é longe pra ir à pé, mas de carro são uns 5 a 10 minutos...". Não, ele retrucou. Eu tentei uma última vez: "Mas o senhor está é com medo de mim? Eu não faço mal a uma mosca...". Não. 

Não fiquei chateado. Fiquei triste, mas não por ele ter rejeitado minha oferta. Fiquei triste pelo que esse não representava. Pelo que estava nas entrelinhas: não, não me acho digno de incomodar uma pessoa que está numa escala social diferente da minha. Não, não tenho coragem de entrar no seu carro com cheiro de urina. Não, ninguém nunca fez isso por mim, por que fariam agora? Não, eu já sou um velho, um traste, e não quero ser o fardo que todos os dias já me fazem crer que sou.

Estava ali, bem ao meu lado, um triste recorte da falta de dignidade humana.

Antes que lágrimas me viesse aos olhos, falei, desanuviando os pensamentos: "Pois tudo bem. Vou levar o senhor até a parada do ônibus e esperar que ele chegue. 

Enquanto esperávamos, ele perguntou nome, o que eu fazia ("Sou professor"), disse que admirava "quem sabia muito e passava para os outros", e que um tio dele, há muitos e muitos anos, tinha dito a ele que estudasse se ele quisesse ser alguém, mas que ele nunca tinha terminado nem os primeiros anos escolares. Ao que eu respondi, mesmo sabendo que ele não entenderia: "Mesmo assim, o senhor fique certo de que é alguém". Como eu supunha, ele ficou calado. E eu, fechado dentro de mim mesmo. 

Então o ônibus apareceu no horizonte e eu disse, Olhe, meu senhor, hora de ir. Quando o ônibus parar, o senhor mostra sua carteira de gratuidade, eu me encarrego de falar com o motorista onde o senhor vai descer". Ele: "Eu nem sei como posso lhe agradecer. De todo coração, meu filho. Eu nem sei".

Na mesma hora, pensei: "Chegando em casa, meu senhor. Chegando em casa", mas não disse. 

Ele entrou no ônibus, eu expliquei ao motorista, as portas se fecharam e, em questão de segundos, o veículo sumiu da minha vista.

Dei as costas e segui para o meu carro. 

Foi um dia difícil.
Divórcio, de Ricardo Lísias

Divórcio, de Ricardo Lísias



Os labirintos do amor - e da moral

Comecei a ler o novo romance de Ricardo Lísias, Divórcio (Alfaguara, 237 págs) com uma expectativa enorme. Não teve jeito: comecei a julgar o livro pela capa, que é ao mesmo tempo intrigante, profunda e repleta de palavras, mesmo mostrando alguém sem condição de esboçar qualquer gesto.

Imagine a situação: você casou por amor, com alguém que espera ficar junto até a velhice. Um dia, inadvertidamente, diante da lembrança de que precisa pagar uma conta, abre uma gaveta. Lá, além da conta, você vê algo que parece um diário. Um diário que pede pra ser visto. Não porque você gosta de bisbilhotar as coisas de quem quer que seja mas porque, vivendo numa casa com seu cônjuge e ninguém mais, ele parecia gritar um LEIA-ME, tal como o vidrinho de Alice clamando, BEBA-ME. E você o faz. Sem acreditar nas palavras, você descobre que aquela pessoa com quem se casou tem opiniões a seu respeito que, até dois minutos atrás, você ignorava completamente. Não, você não se casou com uma atriz. Mas, com certeza, com um ser humano sórdido e absolutamente dissimulado. Numa antevisão do abismo no qual você mergulhará nos próximos dias e meses, você sai de casa e faz cópias de todas as páginas, inconscientemente sabendo que precisará de cada uma delas para curar sua dor através da escrita, da literatura que, pra você, é a única coisa capaz de salvar você de si mesmo.

Digamos que este seja o mote inicial. A partir daí, o leitor é jogado dentro de um labirinto, tal qual o Minotauro de Creta, e, assim como ele, é levado a devorar. Ao contrário do animal metade touro, metade gente, que devorava humanos, nós seguimos engolindo páginas, a fim de compreender não onde a trama vai dar - afinal, isso está explicitado desde o título - , mas na transformação porque passará Ricardo Lísias ao final. O que saiu daquele imbróglio de sentimentos?

Não é por acaso que cada capítulo é descrito como um "quilômetro". O protagonista começa a correr como forma de expurgar determinadas energias de dentro de si, e tentar dar um sentido aos seus pensamentos. Acompanhamos Ricardo Lísias neste processo, e sua evolução constante nos treinamentos leva à sua própria evolução. A alguém que começa a seguir o fio do novelo de lã deixado à porta do labirinto, rumo à saída.

A sensação, entretanto, é a de estar afundado num romance onírico, em que o sonho/pesadelo é confundido com os tons de uma pretensa realidade. Kafka manda lembranças. 

Ao longo do livro, as frases curtas do autor incomodam. Parece que ele tem medo de ir adiante e fazer frases longas, expor longos pensamentos. Não. É o reflexo de um homem que perdeu não apenas a esposa, mas a crença em quase tudo, e as frases curtas são, também, o reflexo desse homem sem chão: ele não tem condição de escrever longamente, e por conseguinte, consegue dizer muito, em pouco.

Não se pode afirmar que tudo ali tenha acontecido - eis aí onde entra a história do "romance". O próprio autor já andou dizendo que não procurem-no verdadeiramente no livro: ele, ali, é um personagem. (Aliás, esse é outro pensamento-labirinto do personagem: a sensação de estar sendo um personagem de uma história sua). E é por essa sensação (também), que o livro vai se construindo dentro do leitor. Tal como alguém perdido num ambiente desconhecido, as informações vêm e vão. Coisas ditas anteriormente são repetidas, dentro de outros contextos. Trechos do diário publicados editadamente são acrescidos de detalhes mais adiante, com as informações anteriores repetidas. É como ler um conto de Borges, em que tudo explica os detalhes, e os detalhes formam o todo. As informações são circulares.

Através do livro ficamos sabendo de onde vem a família de Ricardo Lísias. Fotos são utilizadas esparsamente, durante todo o romance, sem nenhuma conexão aparente. As fotos são inteiras, mas funcionam como peças de um quebra-cabeça: o que é a ideia de família pra este narrador e, mais do que isso, qual a importância que essa ideia tem? Pois este é mais um recurso utilizado pelo autor para nos dizer, Toma. As peças estão no chão. Agora sente aí e monte. Dono de opiniões fortes sobre fidelidade, ética e moral dentro de um relacionamento, o narrador jamais volta atrás, nem mesmo diante da dúvida. Há um momento em que ele afirma que, ao fazer uma espécie de lista com tudo aquilo que o maltratou durante o período pós-casamento, ele não escreveu a palavra mulher. Ou seja, sua crença no amor possível, na finitude de um relacionamento ocasionada apenas pela morte, permanecem firmes, ainda que não tão fortes, talvez. Não naquele momento.


O fato é que é impossível sair incólume deste livro a um só tempo onírico e tão calcado na realidade. Ricardo Lísias, o escritor, escancara não apenas com a tenuidade dos valores morais (e profundamente humanos), e não apenas com a falta de moral de determinada classe de profissionais e grupo de pessoas. Ricardo Lísias, o escritor, e o narrador, arregaçam para nós, leitores, que viver é andar em campo minado o tempo inteiro. Viver é intimidador, e a vida - Vida - vai sempre trazer mais motivos pra gente chorar do que pra rir. Mas que, nem por isso - e é aí onde reside a boa notícia - percamos aquilo a que se pode chamar de fé no Outro. Ou, simplesmente, a vontade de fazer com que as coisas funcionem num relacionamento. Qualquer que seja ele. 

Divórcio é, afinal de contas, não unicamente um livro sobre uma ruptura inevitável. É, seguramente, um livro sobre a importância de perder-se para achar caminhos, a necessidade do sim, para que outros sins possam ser ditos com ainda mais convicção. São 237 páginas em que o personagem se reconstrói a partir do quase nada que se tornara, para que, a partir dali, possa ser, inequivocamente, não apenas outra coisa. Mas outras. Porque abrir-se para a vida, compreendemos ao final, é viver a pluralidade, é permitirmo-nos o olhar sobre o simples. 

Divórcio talvez seja, em essência, uma ode ao homem comum. Ao homem que compreende sua finitude - e que, por isso mesmo, compreende e valoriza cada pequeno momento. Porque uma vida com significado é uma vida, afinal, vivida com amigos, familiares... mas tornar-se ainda mais dignificada se vivida a dois, com os prazeres e achaques, sim. Mas compreendendo que cada dia é exatamente isso: um dia para ser vivido. Eis que, depois do emaranhado de tessituras narrativas, nos despedimos do romance com um pedido do narrador feito àquela que ele constantemente chama de "transtornada": "Esqueça-me". 

Ela pode até conseguir. O leitor, este lembrará do Ricardo Lísias, personagem e escritor, ainda por um longo tempo após a leitura deste livro, misto de romance e confessionário. E que, como todo bom romance, não tem fim.


A Delicadeza do Amor, filme de David Foenkinos

Apesar de ser um filme com a Audrey Tautou, (a eterna Amélie Poulain), que é uma atriz cujos trabalhos procuro conferir sempre, tive uma certa resistência para assistir este filme. O motivo é simples: o roteirista e diretor é ninguém menos que David Foenkinos, e este, por sua vez, é o autor do livro (A Delicadeza, editora Rocco) que deu origem ao filme. Ano passado, por duas vezes, comecei a ler este romance, e não prossegui. Achei o livro chato, claudicante, dessas leituras que emperram. Mas também já conheci quem gostasse muito, só que realmente não foi o meu caso.

Passada a resistência inicial, entretanto, fui tentar entender o que seria esta delicadeza do amor, do amar. E foi quando tive uma grata surpresa.

Apesar do título, não se trata nem de um dramalhão, ou seja, não é um filme piegas, nem, muito menos, uma comédia romântica. O filme nos entrega exatamente aquilo a que se propõe: narrar, em uma hora e quarenta minutos, um exemplo que demonstra, de uma forma surpreendentemente bela, o quão ampla a vida é, e nunca, jamais, estará circunscrita apenas àquilo que inicialmente julgamos como sendo o certo, ou o que nos cabe e, se não for, nada mais será.

Nathalie é uma jovem de beleza suave, alegre, feliz com as pequenas coisas da vida, que encontra em seu caminho François, um homem também de grande beleza, e os dois vivem um romance intenso e extremamente delicado. Ambos moram juntos e fazem planos de eternidade. Só que um acidente tira dela todos os seus planos de felicidade conjugal, e ela volta a sua vida para o trabalho. Cresce na empresa com naturalidade, e se esquiva, com destreza, das investidas de seu chefe. Até que um dia, de maneira inusitada, ela acaba por envolver-se com um colega de trabalho. Sendo ele subalterno a ela, e tendo uma aparência mais humilde e simples, ambos se veem sendo julgados e criticados onde quer que estejam. E ao final compreende-se que às vezes, para viver um grande amor, faz-se necessário nos libertarmos de alguns grilhões, sejam eles impostos pelo olhar do Outro, ou impostos por nós mesmos.

A sensibilidade - e a surpresa! - do amor de ambos, de descobrirem-se amando, é que faz o filme se desenvolver de uma forma ao mesmo tempo singela e forte, e nos brinda com um final igualmente simples, e extremamente tocante, porque imensamente humano.

A delicadeza do amor é um desses filmes com uma linguagem direta, mas de grande sutileza, que conduz o espectador, de emoção em emoção, às descobertas de si mesmo. Aquilo que muitas vezes não pensamos ser possível, nos damos conta de que sim, pode acontecer. É passível de acontecimento na vida real, porque mesmo as metáforas ali contidas, são reais, existem para nos tocar, nos sensibilizar e humanizar.

Chegamos ao último minuto com vontade de sermos amados não apenas do amor romântico, mas desejando que a Vida nos abrace. Já que estamos aqui, e estamos vivos, que possamos viver o Amor em sua plenitude, ainda que este próprio Amor nos dê susto, por vezes, por vezes também se perca, e que nos faça sofrer. A ideia é que a vida implica em sofrimento (também, mas não somente), e que temos de encarar as adversidades, ainda que inicialmente, não seja algo fácil, nem simples. A delicadeza do amor reside na delicadeza da vida, da alma. É como ver um quadro de Klimt, em toda a sua imensa estrutura que remete não apenas ao sexo, mas àquilo que une duas pessoas. 

Ver os últimos minutos, o que é dito por um dos personagens sobre o outro, é dessas forças que nos atravessam, mas o fazem com delicadeza. E são obras assim que fazem a gente sentir que este tal Amor, tão banalizado em filmes de gosto duvidoso e músicas de gosto mais duvidoso ainda, é atemporal, e algo tão inerente ao ser humano que, embora possamos questioná-lo, torna-se imperativo, também, vivê-lo.
Amsterdam, de Ian McEwan

Amsterdam, de Ian McEwan





O que torna um grande autor grandioso? 

Amsterdam, publicado em 1998, venceu um dos prêmios literários britânicos mais prestigiados, o Booker Prize. Seu antecesso, Amor sem Fim, sequer entrou na lista.

É desses altos e baixos que qualquer carreira é feita, é desse permeado de adversidades e benesses, por certo, que os caminhos são trilhados e testados. Em Amsterdam, Ian McEwan promove um embate entre duas figuras excêntricas, que claramente caminham rumo à tragédia - mas o leitor só se dará conta de até que ponto, nas últimas páginas do livro.

Entretanto, que ninguém se iluda: isso aqui não é um thriller desses autores suecos da moda. As tribulações porque passam suas duas figuras centrais se dão, amiúde, de maneira fria e irônica. 

O que vemos logo que a trama começa é uma cena que se desenrola no crematório, onde uma certa Molly Lane está, justamente para ser cremada. Os protagonistas, Clive Linley, e Vernon Halliday, estão prestando homenagem a ela. Ambos foram seus amantes no passado, e evitam falar com o marido da falecida, por quem não nutrem nenhum tipo de (bom) sentimento. Rancor, raiva, e outras coisas do gênero, certamente.

Os presentes ao evento são o tipo de gente que cresceu numa Inglaterra de pleno emprego, crescimento das universidades e ideais atingíveis. Gente que já tinha a vida ganha quando Margaret Thatcher chegou ao poder.

Clive e Vernon dividem o foco das atenções, o que é algo bastante apropriado num romance em que os capítulos são narrados em terceira pessoa, mas, intercaladamente, um é sob o ponto de vista de Clive, outro, o de Vernon. 

Clive Linley é um compositor, herdeiro de Ralph Vaughan Williams, e autor de um livro que se propõe a ser uma reação à "velha guarda" do modernismo e de sua tentativa de retirar da música a melodia e a harmonia. Ele foi encarregado de escrever uma sinfonia, e um comitê que prepara as celebrações para o novo milênio espera retirar dela uma melodia que possa fazer sucesso nas festas de celebração. O problema é que ele já ultrapassou dois prazos, a coisa não está vindo com tanta facilidade, mas ele está quase lá. E louco pra produzir a "melodia irresistível" que ele vai produzir como se fosse uma elegia para o século que está ficando para trás. Fica relativamente claro, entretanto, que o homem tem talento. McEwan descreve as dificuldades de se criar música com um know-how extraordinário, e há um evento no livro, quando Clive faz uma caminhada por um bosque, que torna isso ainda mais... intrigante.

Vernon Halliday, por outro lado, é o editor de jornal que está indo à bancarrota. Ele tem lutado pra fazer o volume de circulação do jornal aumentar e, assim, garantir que ele vai ter emprego no mês seguinte. Mas o negócio não tá fácil. 

Sua oportunidade de fazer ambas as coisas vem quando o marido da finada Molly oferece a ele fotos altamente comprometedoras de Julian Garmony, um secretário de um partido de extrema direita, que gosta de, por assim dizer, vestir-se com roupas apropriadas para a esposa dele. As fotos foram tiradas por ninguém menos que Molly, que também tinha tido o tal Julian como amante. E claro, este Julian é um desafeto de todos os envolvidos. Só que, quando Clive conta esta historinha para Vernon, ele fica p. da vida, dizendo que isso é um absurdo, que isso é um insulto à memória da Molly etc etc, e ambos ficam meio magoados um com o outro.

Tudo isso parece bem maquinado pelo autor, certo? Certíssimo. Amsterdam é um livro bem pensado do começo ao fim, e o prazer do autor em trazer para o leitor os eventos fora da ordem, pra que nós possamos montar o quebra-cabeça, é evidente em cada página.

Quando perguntaram a Vladimir Nabokov se, por vezes, seus personagens não fugiam ao seu controle, ele respondeu que eles eram escravos mantidos de forma severa sob suas rédeas a todo momento. McEwan segue essa prescrição à risca. 

Finalmente, os eventos começam a detonar com a vida de ambos. A publicação das fotos pelo jornal de Vernon vira um circo, e Clive oscila entre delírios de grandeza e momentos de extrema insegurança, levando-o a um espiral que beira a loucura. 

A partir daí, a promessa de tragédia feita ao leitor lá no começo da trama começa a se cumprir. E embora o autor utilize-se de meios que parecem arrumadinhos demais para parecer verdadeiros, o desfecho do livro acaba por torná-lo, se não uma obra-prima, certamente algo que se aproxime de uma boa e apreciável obra de arte.