Diário do Farol, de João Ubaldo Ribeiro



Sempre fui, durante o percurso da vida, pouco afeito ao silêncio quando achava que deveria falar. Demorei muito pra entender que o silêncio também precisa ser ouvido, e com muito mais frequência do que imaginamos. Mas não era bem isso que eu pensava quando meus pais me levavam pra missa, praticamente puxando pela orelha, lá pela minha tenra infância.

Lembro que ficava ao lado da minha mãe, muito calado e circunspecto, morrendo de calor, e, muito pequenininho, me sentindo cada vez mais aterrado pela claustrofobia com tudo à minha volta: as pessoas que se levantavam subitamente, praticamente criando uma multidão em cima de mim, que batia na cintura delas, o barulho chato do ventilador da igreja, aquele monte de estátua de gesso que nada me dizia, aquelas pessoas que iam lá tocá-las chorando, o povo suando, o barulho do padre falando - e eu não entendendo porcaria nenhuma - , aqueles rituais chatos de apertar as mãos, dizer "paz em Cristo"; e nem na hora de ir pra filar comer eu podia! Ah, como eu podia me sentir bem recebido num lugar desses? Sem condições.

Fora que ninguém podia falar na hora que queria, nem fazer perguntas ao padre, o que me deixava indignado.

Assim fui crescendo, até o belo dia em que bati o pé e disse que eu só pisava de novo na igreja no dia que eu bem entendesse (e esse dia, por mim, seria "nunca mais").

"Como é que é, Marco Aurélio?" - tão bom ouvir-me ser chamado pelos meus dois nomes! Pelo menos eu já estava avisado de que ia ter problemas. Pois muito bem:

"É isso mesmo. Eu não vou! E acabou-se!"

E não fui. Mas levei uma surra, e perdi minha mesada e o direito a sair com coleguinhas durante um bom tempo, sem contar a cara feia que fizeram pra mim durante mais tempo do que eu consigo me lembrar agora. Eu praticamente via a hora eu olhar pra minha mãe e ela me mostrar a língua. Eu não me tornei a ovelha negra, tornei-me foi o belzebu.

Cresci afastado de qualquer sentimento religioso, claro que não só por essas coisas, mas porque sempre fui questionador mesmo. Ainda hoje leio muito sobre religião, é um assunto que sempre me interessou muito, uma vez que a História nos mostra que as religiões pelo mundo sempre foram as maiores causas de desgraças históricas, já que tudo se faz em nome de Deus, principalmente merda.

E outra coisa que sempre gostei imensamente foi de ler. Assim, depois de ler A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, resolvi pegar este ano seu livro de 2002, Diário do Farol. O que eu sabia dele quando ele chegou às minhas mãos é que se tratava de um romance narrado por um psicopata. E só.

Mal contive minha surpresa quando fui lendo o livro e descobri que, na verdade, o homem é um padre. Mas comecemos do começo.

A TRAMA -

O narrador, que não tem nome, começa suas memórias escrevendo do tal farol do título, onde foi isolar-se do mundo, numa ilha particular.

O livro começa bem, com o narrador frequentemente dirigindo-se ao leitor - geralmente menosprezando ou esculhambando mesmo, de forma velada ou explícita - , e narrando os primeiros fatos de sua infância, como a complicadíssima relação com o pai, que é frio e distante, e a veneração que tem com a mãe.

Acontece que, por imposição do pai, ele vai parar num colégio de padres e subsequentemente, num seminário, onde ordena-se padre e usa de toda a sua inteligência para manipular e controlar as pessoas de uma dessas pequenas cidades no interior da Bahia, tirando proveito de tudo, com métodos e objetivos bastante questionáveis.

XXX

O livro tem um ritmo pesado, por conta da narrativa de escárnio do personagem, mas ao mesmo tempo, a leitura flui muito rapidamente. O livro é construído sempre em cima das coisas que ele faz, ou que são feitas a ele e geram consequências. Muitas dessas coisas são mal explicadas, ou explicadas apenas parcialmente.

As últimas 40 páginas do livro parecem ter sido escritas com em cima do prazo final do João Ubaldo para a entrega do manuscrito, já que a trama, até então bem desenvolvida e delineada, passa a ter resoluções simplórias e descrições apressadas. Até mesmo a ditadura, que entra na história já lá nas últimas sessenta páginas do livro, e que tinha tudo pra dar um tom mais profundo ao livro, acaba resvalando unicamente numa pseudo-amostra de como um psicopata pode usar qualquer coisa a seu favor, inclusive aqueles que estavam ao lado do governo num dos períodos mais emblemáticos do nosso país.

De todo modo, gostei do livro. Foi uma leitura, no geral, bastante interessante. Não é todo dia que visito um universo meio João Ubaldo, meio Jorge Amado. Continuarei a ler João Ubaldo Ribeiro, sem dúvida.

E ciente de que o menino inquisidor que fui ainda está vivo em mim. E como o próprio narrador do livro diz, gostando ou não, "pessoas como eu sempre podem estar perto de você".

Bom ou ruim, digamos amém a isso!



Nossa eterna síndrome tupiniquim



Engraçado como existem coisas que parecem não mudar nunca. Afinal, de onde as pessoas tiraram essa bobajada de ficar bajulando o presidente dos Estados Unidos quando de sua passagem por aqui neste mês de março?


Sim, a explicação tem raízes históricas, claro. Desde que a França deixou de ser o ponto de cultura mais visado no mundo e o referencial passou a ser tudo aquilo que os Estados Unidos fazem e produzem, logo o povo daqui tratou de adotar a mesmíssima modalidade de vida para si, o que é, no mínimo, passível de reflexão. Agora o Obama vem para o Brasil com status de celebridade, e não como chefe de Estado.

Sem contar aquelas manchetes espetaculares, do tipo "Obama tenta fazer embaixadinhas" e "Michelle Obama tira o blazer". Façam-me o favor.

A caminho do Chile a esta altura, quero ver é o quanto ficou de fato deste encontro entre Barack Obama e Dilma Rousseff. E o "bom" nisso é que a imprensa, como sempre, lança "notícias" e factóides como sem fossem reais, como a ideia de que ele iria retirar a necessidade de visto daqueles que almejam sair daqui para viajar aos Estados Unidos. E as pessoas compraram a ideia!

Nelson Rodrigues já dizia que o brasileiro sofre de uma síndrome de vira-lata. Custa a mim compreender é até quando isso vai durar, e se um dia buscaremos ser a nação soberana que aparentemente temos nos tornado, ou dito aos quatro ventos que temos nos tornado.

Acreditei muito no governo do Lula, acompanhei as melhorias em nosso país em praticamente todas as vertentes possíveis. Tenho uma fé enorme (e olhe que não sou homem de usar esta palavra associada a mim) no governo da Dilma, mas aquela campanha lançada no governo do Lula, de que temos orgulho de sermos brasileiros, precisa ganhar outros contornos.

Que orgulho é esse, que é aniquilado pelos gostos e prazeres vindos da América do Norte ou que, se não o são, se mesclam de tal forma aos nossos gostos e padrões que ninguém sabe mais o que é legítimo daqui e o que veio de lá. Novamente, cabe aqui uma reflexão.

Não concordo que o ser humano não precise de heróis, como disse Bertolt Brecht ("Triste do povo que precisa de heróis!"); acredito, inclusive, que o ser humano precisa de heróis comuns, nos quais possam se inspirar e alavancar - ou até criar - uma auto-estima adormecida. O que nós não podemos fazer, em hipótese alguma, é permitirmo-nos esse tipo de comportamento subalterno, degradante, até, no sentido de que, porque o homem vem da pretensa maior potência do mundo, torna-se aqui a maior celebridade mundial. Como assim?


Como é bom viver: um adeus ao querido Moacyr Scliar


Foi em 2001, ainda na casa dos vinte anos, que um amigo chegou pra mim e disse: "Você já leu Moacyr Scliar?" Ao que eu respondi: "Li uns dois livros dele, desses voltados pra adolescentes, quando ainda nessa fase da vida, e só". Dada essa resposta, ouvi o sermão, acompanhado de uma cara de reprovação, vindos do amigo. Resumo da história: como podia eu, "daquela idade", nunca ter lido nenhum livro mais, digamos, "adulto", do Scliar?
Hoje eu me pergunto: Como, mesmo? Embora ainda jovem, acredito realmente ter descoberto o Moacyr Scliar tarde em minha vida. E isso porque, quando o li ainda numa tenra idade, não me atentei para ler sua obra adulta, algo que já fazia mesmo adolescente - o que só aconteceria na ocasião de 2001.
Foi então que caiu em minhas mãos "A mulher que escreveu a Bíblia". Apaixonei-me pelo texto, pelo humor, pela perspicácia. Sem contar que o assunto muito me instiga. Moacyr virou um grande companheiro, alguém em quem eu via a possibilidade até mesmo de trazer um Nobel da Literatura para o nosso país.
Homem de produção vasta (mais de oitenta livros publicados!), escrevia nos mais diversos gêneros - romances, contos, crônicas, ensaios - e sempre dizia que conseguia escrever em qualquer lugar: avião, sala de espera, qualquer lugar era lugar para produzir. E como ele o fez!
Interessante é que, nesse tempo todo eu, que sempre gostei de escrever para os autores dos quais gosto, nunca escrevi para o Moacyr. Não sei exatamente por qual motivo, mas nunca o fiz. Foi então que, em agosto de 2010, zapeando pela TV após um dia de trabalho, vi que o Roda Viva, programa da TV Cultura, iria começar e o entrevistado era, justamente... Moacyr Scliar! Lembro que nem fui mais tomar banho imediatamente, como sempre faço. Corri à cozinha, peguei algo para comer, e voltei para a frente da televisão. E sinto que postergar meu banho foi a melhor coisa que fiz. A entrevista de Moacyr (que você pode ver clicando neste link) foi dessas coisas lindas e raras que ainda fazem valer a pena ter uma TV em casa. Seu senso de humor, inteligência, positividade em relação à vida e ao futuro... sua humanidade, enfim, fizeram daquele meu fim de noite uma dádiva.
Terminada a entrevista, sabia que deveria escrever para ele. Eu sentia uma urgência que parecia até premonitória. Escrevi uma carta de três páginas que enviei para sua editora em São Paulo. À época, eu estava já lendo seu mais recente romance (que viria também a ser o último), Eu vos abraço, milhões, e mencionei isso na carta. A resposta não demorou. Ele mandou o endereço dele no remetente, e endereçou a carta ao "Professor Marco Aurélio", em menção à minha profissão, que eu havia mencionado na carta. Ele escreveu, de punho, duas páginas curtas e memoráveis, que guardarei para sempre com enorme carinho.
Não parei mais de acompanhar o Moacyr, já na expectativa de coisas novas. Então, em 17 de janeiro, li na internet que ele havia sofrido um AVC. Lembro que minha reação imediata foi a de não acreditar. Como assim, aquele homem lépido, lúcido, com uma mente sagaz, de 73 anos mas com um jeitão tão mais jovem, ter sofrido um AVC? Busquei saber como ele estava. Soube que ele já estava no hospital para a retirada de tumores benignos do intestino quando sofreu. Aquilo me deu um conforto. Achei que, por ele já estar no hospital, havia sido atendido rapidamente e teria mais chance de recuperar-se.
Cinquenta e tantos dias depois, a luta de Moacyr pela vida chegava ao fim. Poucas pessoas compreenderiam a dor que senti e que tentei disfarçar - justamente porque a maioria das pessoas que me cercam não a entenderiam.
A última frase de seu último livro é uma verdade bem simples: "Como é bom viver". Sim, ele sabia disso. Sinto que Moacyr deixou uma obra incompleta, apesar de suas oito dezenas de livros. Ele ainda tinha tanta vontade de viver e escrever, escrever, escrever. Era só ouvi-lo falar sobre a escrita e a vida para entender como aquele homem ainda produziria, facilmente, até os 173 anos. Mas não foi assim, infelizmente.
É, Moacyr, aquele abraço que disse que iria te dar um dia vai ter que ser adiado por alguns anos. Mas aguarde, meu amigo. Eu não desisti dele, não. Viver é realmente a melhor parte da vida, Moacyr, e você sabia disso. Ainda tenho muito a fazer, meu caro, mas um dia compartilharemos muitos papos e sorrisos, quando nos encontrarmos noutro lugar.
Ficam, deste lado da Vida, a alegria porque um dia trocamos algumas poucas palavras. Mas mais do que isso, levarei comigo esse seu sorriso alegre, sua atitude positiva em relação ao mundo, e sua crença de que este lugar ainda tem jeito.
E sim: também levarei a saudade.