Amar, verbo intransitivo?



Muito já se foi dito a respeito do livro Travessuras da Menina Má, de modo que eu virei aqui apenas a somar mais algumas palavras à enxurrada de linhas já escritas sobre este inusitado bestseller. E aplico o "inusitado" aqui em mais de uma vertente: tanto pelo livro ser de um autor que não escreve para ir parar nas listas de bestsellers quanto pelo fato do livro ser mesmo, absoluta e absurdamente, surpreendente.

Tido pela crítica norte-americana como uma recriação do livro clássico de Gustave Flaubert, Madame Bovary, o livro de Vargas Llosa parece também ter teor levemente autobiográfico; e se algo ao menos parecido tiver mesmo acontecido ao autor, isso só vem a provar que beleza não é realmente fator preponderante nas relações humanas. Afinal, Mario Vargas Llosa sempre foi um homem charmoso, impressiona, portanto, como se mantém preso por vontade a alguém por tanto tempo. O romance trata do amor incondicional de Ricardo Somocurcio, um intérprete da Unesco, pela chilenita Lily, a quem ele conheceu ainda em criança - assim como suas primeiras mentiras - e cujas peripécias e reviravoltas da vida levaram-nos a se reencontrar por diversos momentos da vida, fosse na França, em Londres, Tóquio ou Madri. Ela, sempre fazendo todas as artimanhas para ter o que deseja na vida - e isso se resume a dinheiro para poder fazer o que bem entender - muda de nome e de marido com uma constância caleidoscópica, mas sempre volta a esbarrar, por algum motivo, nos braços do homem que verdadeiramente a ama.

Inicialmente, Travessuras da Menina Má não empolga. É meio arrastado e leva o leitor a se perguntar o que diabos o fez tão famoso. Aos poucos, entretanto, a construção dos personagens vai se assomando dentro de nós, e logo nos vemos envolvidos a tal ponto que o livro não nos permite mais fazer o caminho de volta: estamos tomados e absorvidos pela leitura.

A coisa fica tão grave que chegamos a ter amor, ódio e compaixão do narrador, uma vez que ele sempre aceita a tal chilenita de volta - de quem ele só saberá o nome verdadeiro ao final do romance - e passa a pautar toda a sua existência através do que sente por ela.

O livro percorre a vida de ambos da infância à idade madura, lá por volta dos cinquenta anos. E é dessas histórias de amor lindas, originais, sem precendentes e incrivelmente apaixonantes. É um livro que trata da perda da inocência, dos ritos de passagem da vida, das idas e vindas dos amores (e também daquilo que pensamos ser amor) e que nos torna as pessoas que somos.

Terminada a leitura, fica a eterna pergunta: afinal, o que é o amor entre duas pessoas? Como significá-lo, como dar cor a ele, como não fazer por onde suas cores virem simples matizes em preto e branco? O tal mistério, por fim.

Um livro nobre, singular, que nos faz entender porque este homem mereceu o Nobel de Literatura em 2010. Um livro pra ser internalizado com carinho e afeto, e nunca ser esquecido. Concluí minhas leituras desse ano com a certeza de que dei um passo para o abismo que nos salva a todos: a imensidão dos repletos das palavras que nos dão significado.

A teoria do "Te pego lá fora"


Há gente que para tudo acha o que reclamar da vida.

Desde o dia, que não amanheceu como ele ou ela gostaria que tivesse, por estar mais quente ou mais frio, ao filho que resolveu brincar no chão e se sujar todo, aos bichos que cria, que dão trabalho demais, da falta de tempo para si.

Outros reclamam de coisas mais sérias, como algo sem nome que nasceu debaixo do braço e não sabe ainda no que vai dar, do dinheiro que não dá até o final do mês, da família difícil de lidar, do distanciamento dos amigos...

Mas, se de acordo com Shakespeare, a quem foram atribuídas certas verdades universais, "não há mal que não se acabe nem bem que sempre dure", porque as pessoas gostam tanto de reclamar, como se a luta diária fosse contra a vida e não a favor dela? Afinal, por que brigamos tanto? Por quem? Para quê? Não é justamente por querermos dias melhores que nos desdobramos em vinte para darmos conta de casa, trabalho, namoros, amigos, família e tudo o mais que se interpõe entre essas coisas? (Sempre deixando algum desses descontente, mas quem é perfeito? Quem?)

A verdade é que muita gente ao nosso redor trata a Vida como se ela estivesse em constante promessa de nos pegar na saída, de nos encher de pancada e nos maltratar até não mais poder. E, por esse motivo, não param de se maldizer, de demonstrar toda a sua insatisfação com os dias que correm e no qual ainda estão, miraculosamente - imerecidamente? - respirando.

Pois a verdade é que estar vivo, é sim, um ato de fé, de coragem, de gratidão. De fato, não é fácil viver. As dívidas, dificuldades de lidar com o outro, as surpresas nem sempre agradáveis do dia a dia e as constantes perdas estão aí para nos mostrar e comprovar isso. Mas agir perante tudo isso em constante posição de ataque não ajuda em nada a amenizar o fardo. Pelo contrário; ele se torna mais óbvio, mais vistoso não só para si, mas pra todos que o cercam e, com isso, mais difícil de ser carregado.

Viver a Vida como se estivéssemos num campo de batalha onde a única certeza é a da perda, é ignóbil, de uma pequenez de alma atordoante, amarfanha o espírito, que deveria estar sempre em riste, pronto não só para lutar, mas para permitir-se ser pleno, honesto consigo mesmo - seja lá o que isso represente para cada um de nós - e buscar, isso sim, falar mais de coisas boas, refrear a língua antes não apenas de soltar impropérios, mas também de soltar mazelas através da boca.

Viver é o maior ato de amor que pode existir, e é através dele que podemos transformar, que nada mais é do que mudar a forma. Não está satisfeito com sua vida? Mude a sua forma, transforme-a.

Mais fácil dito do que feito? É? Pois paremos de olhar a vida como se estivéssemos na parte mais alta de algum lugar prestes a despencar, tome fôlego e lutemos o bom combate.

É dando o primeiro passo que encontramos a direção.

Meu deus grego de estimação


Não faz tanto tempo assim, eu decidi que precisava urgentemente ser pai.

Foi então que decidi criar um cachorro.

Sempre criei cachorro, desde criança. Por causa da difícil relação dos cães com minha mãe, eram sempre criados no quintal de casa, afastados do resto da família, e nunca gostei muito dessa noção de cerceamento de espaço: bicho pra mim era meio que irmão. Não podia entrar no quarto, vá lá, mas por que não em casa?

Eles também pareciam pensar assim, uma vez que, sempre que tinham uma chance, corriam pra dentro de casa, dispostos a abraçar seus donos. Eram de uma afetividade tão gigantesca que pareciam não caber dentro de si próprios, nem como compartilhá-las conosco. As vezes olhavam pra gente como a dizer, Por que vocês não me deixam demonstrar todo o meu amor?

E eu frequentemente pensava - e ainda penso - a esse respeito. Na beleza da relação humana com os bichos. Na nossa sociedade ocidental, mais especificamente com o cachorro, ser que aprendemos a adestrar e ao qual humanizamos (e as vezes tenho medo dessa relação entre adestramento e humanização desse bicho, mas aí já é motivo pra uma outra crônica) com tanta voracidade que, no mundo ocidental moderno, há quem o crie como se gente fosse. Vai além do fato de exercer paternidade ou maternidade ou mesmo fraternidade: criam-se os cães como quem cria um filho que vá viver mais que nós mesmos, como se eles não fizessem parte de um ciclo que vai terminar antes do nosso, via de regra. E o que há de dondoca tomando Prozac por conta disso não está nos autos. É gente que não aprendeu a colocar as coisas nos devidos lugares, nem tratar a realidade tão como ela é: factual e palpável, e não onírica e fabricada. Mas não convém dizer isso a essas pessoas. Elas jamais entenderiam.

O fato é que o cachorro, por diversos motivos - dentre os quais o fato de que, desde que passou a conviver com os seres humanos, há algo em torno de 15.000 anos, e começou a ser domesticado e servir como auxílio em caçadas, atividades domésticas e mais tarde em salvamentos e buscas, para não falar da mais bela de todas, a companhia sincera e firme - segue forte na preferência entre os animais de estimação.

Ulisses veio para a minha vida durante o crepúsculo de um dia em finais de julho de 2007. Dei a ele o nome de um semi-deus grego, que também é o nome de uma obra que pretendo ler antes de morrer mas, sobretudo, porque era o mesmo nome do cachorro de Clarice Lispector. Era minúsculo, uma bolinha de pelos pretos e olhar indagador e ingênuo. Eu resolvi adquirí-lo pelo motivo egoísta de querer ser pai, unicamente, e como todo pai, eu era cheio de planos que nunca vieram a se concretizar: imaginava levando-o à praia pra correr nos domingos pela manhã, que iria passear com ele todos os dias, e que, enfim, ele seria o cão mais feliz do mundo.

Entra aqui um negocinho chamado realidade, da qual ninguém escapa. Ele cresceu, resolveu transformar minha casa num penico gigante (e a mim, consequentemente, na escrava que anda com pano e Pinho Sol debaixo do braço sempre que está em casa), e a minha paciência se esgotou. Passeios na praia? Duas vezes por ano. Sair pra passear todo dia? Minha falta de tempo, aliada à questão de achar que ele não faz por onde merecer (quem falou em humanizar o bicho mesmo???) me mantêm em casa a maioria dos dias, e saímos pra passear três vezes por semana apenas. Às vezes nos amamos, às vezes nos odiamos. Às vezes sento no chão e passamos longos minutos nos afagando como dois bichinhos carinhosos. Ele me vê sorrir, me vê alimentá-lo, me vê chorar, me vê apressado, me vê nu - e segue me amando como se a cada dia o amor se renovasse. Cauteloso, nem sempre se aproxima correndo, mas vem devagarzinho, como a perguntar se pode entrar. Sim, pode.

Amar um bicho é uma relação completamente indescritível. Diante de todas as relações que tenho todos os dias - com meus alunos, meus colegas de trabalho, meus amigos, colegas da pós-graduação, pessoas do cotidiano - a relação que se tem com um cão é algo que, seguramente, nos humaniza. Não porque fazemos o caminho inverso, tratando-os como se fossem da nossa espécie. Mas sim, porque criar um cão é como perscrutar desígnios: é descobrir a si mesmo compreendendo uma linguagem que não é a sua, desvendando o mistério da convivência com um ser em cuja mente não fazemos ideia de como se cruzam os pensamentos (e isso por si só é uma arte), afagando-os e afogando-os num misto de amor e cuidado que se traduzem na mais sublime das sensações: o carinho, o afeto que não vemos no mundo, está ali, contido neles. E é por este amor enternecido que vale a pena, sim, permitir-se adotar um animal. Porque através deles descobrimos sentimentos e sensações tão únicos e valiosos sem os quais não sairíamos da vida como seres humanos plenos.

E foi por causa do Ulisses que veio a Mishima - uma gata de rua que chegou a mim para aplacar o meu medo de gatos. Mas ela fica pra uma outra história.


SALT, com Angelina Jolie


Acabo de ler um texto de uma escritora que respeito e admiro muito no qual ela diz que você nunca vai assistir a um filme com esses grandes nomes do cinema achando que elas podem encarnar uma pessoa comum porque, por trás daquele personagem, a gente sempre vai saber que ali é a Angelina Jolie - ou a Julia Roberts, a Sandra Bullock ou sei lá mais quem (abro exceção para Meryl Streep, que encarna qualquer papel com perfeição) - e não a Marie, a Grace, a Helen.

Mas Evelyn Salt não é uma mulher comum. Especialista em bombas e em agente da CIA, que pode ou não ser uma espiã, de repente ela se vê envolvida em tramas que a obrigam a fugir de tudo, deixando aquilo que lhe é mais caro para trás.

O filme tem uma série de erros de continuidade que são extremamente perdoáveis por se tratar de um filme de ação. Gostei de cada minuto do que vi - o filme não para. A ação é de tirar o fôlego e ininterrupta. Todas as cenas que você espera de um filme do gênero estão lá: explosões, correrias, perseguições completamente malucas, escapadas magistrais.

Sem sombra de dúvida, Salt não é o melhor filme da Angelina Jolie, nem mesmo um ótimo filme per se. Mas quem for ao cinema esperando dele apenas um filme bacana pra se divertir, com certeza encontrará em Salt 100 minutos de diversão garantida.

Vá com o espírito aberto, que certamente não haverá arrependimento.

Sem parar, sem parar... Não, não para!


Uns, tem compulsão por chocolate. Outros, por comida de uma forma geral. Bebidas também entram nesse hall, e como estamos falando de exageros, geralmente é pela porta que só traz problemas. A de outros - hum - é por sexo. Já namorei gente assim. Por um tempo é bom, mas depois cansa, como todo excesso.

Desde que o mundo moderno se configurou como tal, criou-se o conceito de "sociedade de consumo". Daí foi um passo pras compulsões em torno disso.

A minha, por exemplo, é comprar livros.

Não tem jeito. Todo mês eu digo que vou controlar meus gastos. Que a Livraria Cultura nem a Saraiva, e muito menos a Saraiva virtual, vão sequer ter notícias minhas. Que eu preciso comprar meu apartamento. Terminar de pagar meu carro. Aí a Saraiva lança uma promoção com 30% de desconto acima de quatro livros. Lá se foi toda a minha resolução de não comprar livros tão cedo. Do que adiantou eu ficar entoando meu mantra por horas a fio? (que não era outra coisa senão uma forma de ficar tentando me convencer do que eu preciso fazer).

Pra terminar de lascar tudo, eu tenho ótimos amigos, que dizem coisas do tipo: "Ah, Marco, livro é sempre um investimento, vão ficando pra velhice." (Tá, Eugênia, você não. Você é a única que diz: "Marco, e o seus planos?!"

E se eu não tiver velhice, vão pra onde? Acho que eu entendi qual é a deles: ficar com meus livros de herança. Só pode. (Tá de novo, Eugênia, eu sei que eu já disse que meus livros serão a minha herança pra você, mesmo você não querendo porque prefere não pensar que eu vou te deixar algo de herança, mas vai que? E aí? Você vai ter que dividir, eu digo logo...)

Níveis de ansiedade, eu tenho muitos. Experimente falar comigo em finais de semestres, com provas a corrigir, redações pra ler, material pra rever e semestre letivo pra concluir! Geralmente você vai me encontrar comendo ou bebendo algo, que é onde despejo isso. Mas compulsão, aquela com Czão, é pra comprar livros.

Quando me mudei pra esse apartamento onde moro hoje, fui na casa dos meus pais, onde mantenho os livros que venho juntando ao longo da vida (nem imaginem em quantos eles já estão a essa altura...) e peguei uns 15, dizendo pra mim mesmo: vou trazer só esses aqui, lê-los, e depois compro outros.

Eu cumpri o que disse? Hehehe Claro que não. Hoje, já não tenho onde colocar livros aqui em casa, e estou pra desobeder o pedido encarecido da minha faxineira: "Marco, por favor, evite guardar livros no chão, porque dá tanto trabalho pra arrumar", me suplicou outro dia, com um ar de tristeza que quase me fez tirar a vassoura e o espanador da mão dela e fazer tudo eu mesmo, por pena.

O que eu tenho a dizer é: Verônica, querida, já já eu vou fazer você chorar. E ai de você, se aparecer um livro amassado!

E aos meus amigos, a minha futura herança!

Anne Rice, autora de "Entrevista com o Vampiro" deixará a Igreja Católica


Acabo de ver num site da internet que a escritora Anne Rice, que ficou famosa no final da década de 70 com o seu "Entrevista com o Vampiro", acaba de deixar a Igreja Católica, a qual havia se convertido depois da morte de seu marido, Stan Rice, em 2002. O aviso dela teve um tom solene, e eu o coloco na íntegra:

"Para aqueles que se importam, e eu compreendo se não for seu caso: Hoje eu deixei de ser cristã. Estou fora. Permaneço comprometida com Cristo, como sempre, mas não em ser "cristã" ou parte do cristianismo. Para mim, é simplesmente impossível "pertencer" a esse grupo briguento, hostil, repleto de disputas e merecidamente abominável. Por dez anos, eu tentei. Não deu certo. Estou fora. Minha consciência não permite outra decisão."

Lindo. Um exemplo de lucidez, ainda que tardia. Mas tem mais:

"Como eu disse abaixo, eu abandono a fé cristã. Estou fora. Em nome de Cristo, eu me recuso a ser anti-gay. Eu me recuso a ser anti-feminista. Eu me recuso a ser anti-controle artificial da natalidade. Eu me recuso a ser anti-democrata. Eu me recuso a ser anti o humanismo secular. Eu me recuso a ser contra a ciência. Eu me recuso a ser contra a vida. Em nome de Cristo, eu abandono o cristianismo e a fé cristã. Amém."

E por último:

"Minha fé em Cristo é central para a minha vida. Minha conversão de uma atéia pessimista perdida num mundo que eu não compreendia, para uma otimista que acredita num universo criado por um Deus de amor é crucial para mim. Mas seguir a cristo não significa seguir Seus seguidores. Cristo é infinitamente mais importante do que o cristianismo e sempre será, não importa o que o cristianismo seja, tem sido ou poderá se tornar."


Dito isso, acho que cabem algumas palavras de reflexão.

Eu nunca fui leitor de Anne Rice. Confesso que tentei ler seu "Entrevista com o Vampiro". Achei muito bem escrito, mas muito descritivo e cansei logo. Talvez não tivesse sido o momento. Um dia retomarei a leitura. Já o seu livro "Cristo Senhor", eu li rapidamente, e gostei muito.

Quem me conhece sabe que tenho duas grandes obsessões na vida: religião e morte. São dois temas muito caros pra mim. Um por ser a base da construção das sociedades ao longo dos séculos (infelizmente), e outro por ser um assunto simples, mas que as pessoas teimam em fazer de tabu.

Quando eu li na mídia que a Anne Rice, uma mulher séria, que eu sei que é intelectual, estudiosíssima, instruída, inteligente, havia se permitido uma lavagem cerebral e se convertido ao cristianismo de uma forma cega, que não permitia questionamento, fiquei estupefato. Também disse que jamais voltaria a escrever sobre vampiros e que seu objetivo de vida a partir daquele momento era escrever sobre Cristo. O velho e conhecido fanático religioso, em outras palavras. Quem nunca conheceu um na vida? Pois agora tínhamos um com potencial de atingir milhões, que era a escritora Anne Rice. Eu fiquei doido pra ver os desdobramentos disso.

No fim das contas, seu séquito caiu muito. Fato. Mas ela conquistou o clamor e a ovação daqueles que já criam em Deus, geralmente um público igualmente fanático e não-aberto ao diálogo.

Sua desconversão ao cristianismo é um alento para mim. Não por eu ser anti-Cristo. Não sou. Não vejo este homem como filho de Deus nem salvador de nada, mas respeito sua emblemática figura histórica. O fato de ela ter resolvido sair da Igreja Católica me toca pelo simples fato dela ter resolvido abandonar uma Igreja que tem tudo de abominável, como a que ela seguia. Uma Igreja cega, surda e muda para as coisas do mundo. E que, no fim, o que prevaleceu foi a inteligência desta mulher, que foi honesta consigo mesma e com seu discernimento e senso crítico perante as coisas do mundo e, por conseguinte, com a vida.

Alguém tem alguma opinião a respeito?


Das Vantagens de ser Bobo, de Clarice Lispector


O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranqüilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Ladrão de Cadáveres, de Patrícia Melo


Até entrar pra faculdade de Letras na universidade federal daqui, não era muito fã de literatura brasileira. Marcos Rey era uma das poucas exceções (outras ainda incluíam Machado de Assis e Lygia Fagundes Telles, que eu lia com afinco, vontade e prazer). Mas isso mudou logo no primeiro semestre, quando outro mundo se abriu pra mim.

Conheci Rubem Fonseca através de um de seus contos mais famosos, "Feliz Ano Novo", que a gente leu pra discutir em sala de aula. Não demorou muito e cheguei na autora deste livro que me proponho a comentar hoje, Patrícia Melo, e seu mais recente livro, Ladrão de Cadáveres.

Patrícia Melo é discípula de Rubem Fonseca. Estreou na literatura no ano em que um suposto grande ídolo nacional morreu (eu digo suposto porque, até a Globo fazer um escarcéu da morte do esportista, e garantir que até quem nunca tivesse assistido uma corrida de carro pranteasse a morte do rapaz e lamentasse não estar na multidão que seguia o cortejo com seu corpo, ninguém conhecia lá tantos milhares de fãs de fórmula 1), e segue a mesma linha do autor que lhe colocou no caminho: frases curtas, ritmo acelerado, palavrões, críticas sociais, ironia, senso de humor pretíssimo. E personagens que sempre estão num submundo.

Ladrão de Cadáveres segue a linha da autora, mas está entre seus livros que substituem violência por violência por algo mais sublime: os sentimentos de perda, de valores distorcidos, dificuldades pra lidar consigo mesmo e com o outro. Ela havia feito isso em pelo menos dois livros: Valsa Negra e Jonas, o Copromanta.

A trama é interessante: o narrador da história saiu de São Paulo depois que foi demitido de uma empresa de telemarketing porque estapeou uma funcionária, que acaba cometendo suicídio. Em busca de uma mudança de ares, de sair do meio do caos social, ele vai morar com um primo em Corumbá, no pantanal mato-grossense. Lá, ele testemunha a queda de um avião e, quando se aproxima, vê que o piloto está morto e, junto a ele, um pacote de cocaína, do qual ele se apossa na busca de conseguir uma graninha extra.

É a partir daí que a história começa, e passa a se tornar mais complexa e a trabalhar a visão maniqueísta do mundo.

É através dos olhos do narrador que vemos toda a podridão do mundo, e a corrosão do seu próprio caráter e daqueles que o cercam. Logo, ele está se envolvendo com a esposa do primo que o abrigara no Mato Grosso, coloca em maus-lençóis um vizinho que o ajudara a vender a droga, se mete com traficantes, passa a trabalhar para os pais do jovem piloto morto e é então que uma ideia ganha força na sua mente, já que a família precisa de um corpo pra enterrar e não dispõe de um.

Um a um, os personagens vão mostrando que ninguém escapa de mau-caratismo, da corrupção, de se envolver e se entregar ao mal causado pela sociedade, desenvolvendo a clássica - e por que não dizer, clichê - máxima de que todo mundo tem um preço.

Outro ponto relevante da história é que a pesquisa foi realmente bem feita. Ela faz realmente você se sentir no Mato Grosso. Eu pude imaginar tudo, absolutamente tudo, e em nenhum instante a descrição dinâmica da autora torna a leitura cansativa. Sem contar a descrição de coisas um pouco mais... nauseantes, por assim dizer. Devo também acrescentar algo super favorável: o livro é tenso. MUITO tenso. Há muito tempo eu não lia uma obra através da qual eu sentisse, verdadeiramente, meu coração acelerado batendo dentro do peito. Nas últimas páginas você chega a sofrer com o personagem, dada a sua verossimilhança, e a sua angústia e o peso de tudo que lhe acontece. Prepare-se pra ficar com a boca seca.

Continuo achando O Elogio da Mentira o melhor livro da Patrícia Melo. Mas gostei muito desse livro novo, ao ponto de lamentar por ela escrever tão devagar e publicar um livro a cada, mais ou menos, três anos.

Para quem gosta do gênero, é um livro muito recomendável.

Tempo, Tempo, Tempo


Você tem medo do que o futuro te reserva? Tem medo de que o tempo passe, e você fique - ou passe também, assim, só de passagem? Você consegue encarar o espelho e dizer: hoje eu estou linda, e não pensar, em nenhum momento, que o que você vê ali refletido um dia não mais será, que você terá uma outra imagem refletida possivelmente naquele mesmo espelho? Você tem medo de que a sua vida chegue ao final do ciclo, culminando com a Indesejada?

Se você respondeu sim à todas essas perguntas, parabéns. Isso significa que 1) você nega a morte e 2) que você pertence à espécie humana.

Bem-vindo à espécie.

Quem é meu amigo sabe: eu falo desse assunto com a naturalidade de quem fala, Estou com sede. Ou fome. Ou vontade de viver.

Nunca temi a morte. Algumas pessoas dizem que é porque, ainda por volta da minha terceira década de vida, estou longe dela. Lamento informar, mas eu nasci. Quero dizer com isso que, por estar vivo, já me posso colocar na condição de "um-dia-não-estarei-mais". Faz parte do fato de estar vivo. Já passei por situações-limite. Situações em que eu tinha tudo pra ter morrido, e estou aqui. E lembro claramente que, em cada uma delas, eu encarei o tranco. Não me fiz de vítima, nem tive medo. Na mais recente, eu apenas fechei meus olhos e disse, "deus, se você existir, só não me deixe virar um vegetal, pra dar trabalho a quem tiver que me regar todos os dias. Deixe-me ir". O fato é que eu não fui ainda. Vivi pra contar.

Desde muito pequeno, ainda sem nem ter muita noção de que estava vivo, achava a morte uma coisa normal. Isso lá pelos meus 7, 8, 9 anos. Sempre sofro quando perco alguém, seja um animal, um amigo, um parente. Mas não a ponto de achar que aquilo é uma injustiça.

Deus pra mim está nas pequenas coisas. No silêncio repleto de palavras, no sol que entra pela minha janela, na noite que me acolhe, no sorriso dos meus amigos, num livro que leio e me faz questionar valores ou que apenas me diverte com qualidade, num filme que assisto e me faz rever conceitos, encarar medos de frente ou me embevecem a alma, numa música cantada bem alto no carro, a caminho de qualquer lugar, e que me alimente o espírito.

Encarar cada pequena coisa, cada pequeno gesto, como um momento único - e aqui acho que o termo em Francês, unique, fica ainda mais bonito, porque em Francês essa palavra encerra um significado ainda mais profundo pra o que eu estou querendo dizer - , é a prova maior de que existir é a melhor coisa do mundo, embora não se saiba até quando, até que horas o relógio interno vai funcionar, até que instante a vida vai pulsar de dentro.

As vezes me pego pensando: qual será a última refeição que farei? Que livro deixarei na minha cabeceira como leitura inacabada (ou mais triste ainda: quantos maravilhosos autores deixarei de descobrir?), quem estará ao meu lado? O que terei eu planejado para aquele dia que jamais se concretizará?

É quando me dou conta que nada disso terá relevância. O que se leva da vida é a vida que se leva, e até meu momento chegar, é pela porta do deslumbramento, do olhar quase pueril perante a vida, que pretendo enxergar a minha existência. Com responsabilidades do homem que sou e me torno (melhor, quero crer) a cada dia. Mas nada como o olhar da criança para os grandes mistérios. Assim como a criança que teve a audácia de bradar, O rei está nu! Olhem, o rei está nu!, eu olho pra vida como uma criança é capaz de olhar para o fim: que fim, se ela nem sabe que começou? Nada como o olhar do ineditismo para nos renovarmos a cada manhã.

Convido-os a olhar a vida por essa mesma janela. Garanto que o medo da passagem do tempo demorará muito mais a se instalar. Afinal, que estamos envelhecendo a cada dia, todos sabemos. Que um dia deixaremos de envelhecer porque vamos nos unir a algo maior, também sabemos. O quando é que é a dúvida. Mas ao vivermos a vida buscando essa renovação diária, isso jamais fará de nós reféns do Tempo. E enquanto buscarmos atingir a perfeição, nossa razão maior de viver jamais se fará.

Que venha tudo o que tivermos pra viver, então.

Que obras te fizeram ser quem tu és? Parte I


Pegando o gancho do nome do meu blog, por sua vez roubado da obra de Mário Sérgio Cortella, acho que cabe aqui uma reflexão filosófica sobre literatura.


Alguns podem concordar mais que outros, mas sabemos que muito daquilo que nos faz ser quem somos, são as obras com as quais entramos em contato. Por obra entenda-se aqui não apenas livros - embora esse post se trate disso, logo mais vocês vão entender - mas os filmes, as músicas, as empreitadas em que nos metemos (e as enrascadas também), os seres humanos com os quais convivemos (que são eternas obras inacabadas, como nós).

Hoje, entretanto, quero falar da obra de literatura. Como desvendar os mistérios desses encantamentos?

Aprendi a gostar de ler tão logo aprendi a juntar uma letra com outra, uma palavra a outra e formar uma ideia no meu pensamento. Escrever veio depois, quando eu comecei a ouvir vozes de vidas querendo ser contadas, mas isso fica pra um outro dia, divago.

Muitos autores fizeram-me parte do homem que sou. O mais emblemático da minha infância foi o Marcos Rey, sem dúvida. Isso do lado dos brasileiros. Pouco depois, Sidney Sheldon me chegou às mãos. Digo que gostei de dele sem remorso, culpa ou vergonha. Ele era o Harry Potter da minha época, e serviu como trampolim para outros mergulhos, mais profundos. O bom da vida é justamente essa possibilidade de não ser uno. Assim, não me atenho num único sentido, nem num único caminho: as vezes parecemos vagar pelo mundo das letras, mas é nesse vagar que nos deparamos com grandes sopros de vida. Marcos Rey permanece até hoje em minha vida, com seus livros pra adultos, Sidney Sheldon não. Escolhas (?).

Alguns autores me tocaram cedo: Albert Camus, Machado de Assis, Nelson Rodrigues. E aos poucos outros foram se somando: Dostoiévski, Virginia Woolf, Katherine Mansfield...

Há momentos em que tudo o que a vida nos pede é um bestseller (assunto que também terá post próprio), e assim vieram vários: Dean Koontz, Stephen King, Dan Brown, Jeffery Deaver, Harlan Coben. Até Danielle Steel entrou nesse hall.


Recentemente, li alguns livros que têm sido vital pra reestruturar a forma como vejo a vida, quebrar velhos paradigmas e formar outros, ou apenas para chacoalhar minhas emoções. Se você ainda não leu A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery, Kafka à Beira-mar, do japonês Haruki Murakami, Homem Comum, do Philip Roth, Invisível, do Paul Auster ou Marilyn, últimas sessões, do francês (como a Barbery) Michel Schneider, e finalmente Fazes-me Falta, de Inês Pedrosa, leia-os. São livros para a vida. Livros dos quais você não sairá o mesmo para enfrentar um novo dia pela manhã, findada a leitura.

Sobre a amizade




Para Eugênia M. Cabral

Nunca fui um grande amante da poesia. Respeito alguns escritores que se propuseram, ao longo de uma vida, escrever vida sobre vida, interpondo palavras, omitindo-as, aliterando-as, reinventando-as. Mas meu negócio mesmo é o romance, sempre foi.


Assisti ao filme "O Carteiro e o Poeta" no cinema, aos 13 anos. E fiquei maravilhado com aquela relação que se foi estabelecendo entre o poeta Pablo Neruda e o carteiro que cuidava de sua correspondência, o analfabeto Mario. Juntos, ambos descobrem o que realmente representa uma amizade sincera, forte; e o que realmente significa adentrar no mundo do outro, fazer a diferença e saber que, sem aquela pessoa em sua vida, viver jamais seria a mesma coisa, jamais. E é exatamente assim que me sinto com determinados amigos.

Clique aqui, pra você ver um pequeno trecho do filme, que dá uma rápida dimensão da tônica da película, que é sem sombra de dúvida uma obra de arte sobre a beleza da amizade. E também do amor.

Voltarei ao tema.

Saramago, quase um mês depois




Faz quase um mês que Saramago partiu, e ainda me é imensamente complicado falar da importância deste homem na minha vida. Devo tanto a ele nos meus questionamentos políticos, filosóficos, religiosos. Saramago entregou a si para mim e fez de mim parte do que hoje sou. Não é à toa que senti como se tivesse perdido um avô desses participativos, realmente vivos e presentes na vida do neto. Não foi novo, não. Mas qualquer época que ele resolvesse ir seria cedo.
Pensamentos imperfeitos

Pensamentos imperfeitos

Esse era pra ser o título do blog que estou iniciando hoje, porque é basicamente isso que este espaço vai se prezar a ser, mas não deu.

Assim, começo hoje apenas deixando algumas palavras publicadas, palavras ao vento, impulsionado pela amiga Cléo, que me deu a força que eu precisava para iniciar um projeto sobre o qual tanto já havia pensado. Ainda estou claudicando, mas aos poucos dou forma, cor e vida a isso aqui.

Abraços a todos.