O Doente, de André Viana

Em 1969, Philip Roth publicou um de seus romances mais aclamados até hoje, O complexo de Portnoy, no qual trata, de maneira desbragada, o delicado tema que até hoje é a sexualidade - o que viria a tornar-se uma de suas marcas - através de um longo monólogo narrado por Alexander Portnoy ao seu analista. O livro o tornou uma espécie de "celebridade literária", e se serviu para causar polêmica e problemas à família do autor, também serviu para ser o turning point de uma carreira literária que, há quase cinquenta anos, apenas se iniciava, e já o alçava à grandiloquência que atingiu. Não é de se admirar que Roth é, até hoje, um dos grandes cotados ao Nobel de literatura.

Passados quarenta e cinco anos, o escritor brasileiro André Viana publica O Doente (Cosac Naify, 128 páginas). A ideia da trama lembra - de passagem - o livro do norte-americano.

Ao se aproximar dos quarenta, um homem resolve passar sua vida a limpo. Tendo mantido muitas coisas para si mesmo durante décadas, é chegada a hora de abrir o peito e permitir-se falar. Mas ao contrário de Portnoy, o personagem de André Viana - cujo nome jamais saberemos - não acredita muito em psicanalistas. Acha que, enquanto você fica deitado no divã, o analista fica à mesa anotando o que vai comprar no supermercado da semana. Assim, o narrador resolve procurar um colega jornalista que, munido de seu gravador, se coloca à disposição para "ouvir" o que o outro tem a dizer. Fica claro aqui que sua intenção não é ouvir uma opinião, não é alguém pra colocar um braço por sobre seus ombros. Como uma força vulcânica, conhecemos um narrador que já reprimiu coisas demais por tempo demais, ele só quer colocá-las para fora, expurgá-las. 

O homem que narra sua história é um personagem complexo, o que o torna absurdamente humano para o leitor - e não há momento, do mais simples ao aparentemente mais tresloucado, que fique de fora de sua biografia.

É através desse monólogo que ficamos sabendo que o pai do narrador morreu no dia de seu aniversário de 11 anos, fato que mudaria sua vida para sempre. Donos de um cinema no interior, seus pais criam os dois filhos nesse ambiente bucólico, por si só proporcionador de inúmeras descobertas. Confesso que evoquei a imagem de Cinema Paradiso, imaginando aquela mesma pequena cidade e aquele garoto fazendo traquinagens com aquele senso de profunda beleza e sensibilidade desencontrada. 

A partir da ausência do pai, o narrador tem uma compreensão de vida e morte que parecem saídas da poética de um Guimarães Rosa e da complexidade onírica de Kafka, que compreendiam que ambas se misturavam, não diferindo tanto assim. O narrador, então um garoto, já não sabe lidar com esse amálgama de sentimentos, e já antevemos o homem que, aos 40, estará narrando sua vida para um gravador, apenas para colocar pra fora o que acha que deve. 

Talvez como saída para a dor, o garoto apaixona-se quase ao mesmo tempo por um amigo e pela prima dele. Essa paixão, que vai e volta ao longo do monólogo, é uma vertente voraz para o garoto que se transformou em homem e sempre se permitiu exercer sua sexualidade fora do dito convencional, embora não sem um preço a pagar por isso. 

Junto desse crescer, observamos a mãe do garoto e de seu irmão, que nunca conseguiu superar a morte do marido - na verdade, nunca conseguiu passar pela fase do luto e, tornando-se uma mulher ranzinza, de uma cretinice abjeta, e que só conseguiu dos filhos um misto de sentimentos confusos de dor e culpa. Não é à toa que, em dado momento, o narrador menciona que a mãe é uma das razões por seu irmão ser esquizofrênico. Naturalmente, está aí demonstrado não uma atribuição de algo a alguém, mas a ira de um filho por ter que lidar com a mãe complicada e o único irmão, com problemas psiquiátricos - e carregar esses dois pesos mortos sozinho e a angústia e revolta que isso traz.

Se temos ao longo do livro momentos fugazes, é porque a vida também é composta deles. Há pessoas que passam e não deixam marcas, há momentos que deixam marcas cujos protagonistas foram irrelevantes, mas não a experiência em si mesma. Assim é para qualquer um de nós. Nenhum dos momentos narrados, entretanto - os questionamentos de sua sexualidade, a dor pela morte do pai, nunca superada, a ira contra o irmão esquizofrênico junto do sentimento de obrigação para com ele, uma transa com um garoto travestido - deixa de exercer no leitor o impacto necessário para compreendermos que estamos lendo a respeito de uma vida substancial, ainda que não diferente de tantas pessoas que nós mesmos conhecemos ao longo de nossas próprias vidas.
André Viana

O que torna O doente, então, um romance que devemos correr para ler? 

Simples: pela sua forma narrativa, rápida e ao mesmo tempo densa e original. Ao longo da leitura, o narrador vai pautando sua vida pelas impressões de tudo o que viveu. E o que não é isso senão a nossa própria vida passada diante dos olhos, através da narrativa de ficção? É desse adensamento, das suas relações com o cinema, com a literatura, música, das artes em geral, que podemos sentir o narrador de forma pulsante, este homem que não tem nome porque pode ser qualquer um de nós (e, de quebra, ainda recebemos diversas dicas literárias através da sua visão de mundo). 

Mas é sobretudo por essa mixórdia de relações com os outros e consigo mesmo, que O doente se mostra um livro inequivocamente necessário. Não apenas porque acabamos por nos identificar com o narrador, ou identificar pessoas que conhecemos, e sim porque é através de obras como esta que temos a capacidade de conhecer - e quem sabe compreender - um pouco mais da nossa própria humanidade - ou falta dela. 

Sem dúvida, um dos melhores livros lidos em 2014. Sem dúvida, um dos melhores livros lidos em um longo tempo.



Avaliação final: Que Complexo de Portnoy o quê! O doente é uma porrada de livro, apesar de ter pouco mais de cem páginas. Mas certeza: é ler e não conseguir parar de pensar nele por vários dias. Aguente a pancada, porque vale a pena!
COMPARTILHAR:

+1

0 Comentario "O Doente, de André Viana"

Postar um comentário