Que obras te fizeram ser quem tu és? Parte II - Infância

Que obras te fizeram ser quem tu és? Parte II - Infância

Refletir é sempre um presente que nos é dado, na maioria das vezes, por algum motivo inescrutável. É também algo que deve ser sempre abraçado como quem recebe flores inesperadas de alguém de quem muito se gosta: com um misto de surpresa e alegria, lembrando-se que o próximo passo é deleitar-se com a beleza das mesmas, e com o perfume.

Convidei-me a refletir, novamente, sobre aquelas obras que de alguma forma colaboraram para pavimentar meus caminhos como leitor. Como esse post terá ainda muitas outras partes, desde que eu esteja vivo para escrevê-las, escolhi algumas obras sobre as quais desejo comentar, todos ainda na época em que eu prefiro chamar de Infância: livros que li entre os 9 e 12 anos.

O primeiro deles, Meu Pé de Laranja-lima, tem uma relação interessante comigo: lembro que quem leu este livro primeiro foi minha irmã, lá pela quinta série. Por ser um livro obrigatório pra escola, já vinha com aquela expressão de "ecaaaaa", por ter que ler algo e fazer prova a respeito. Se alguém me disser que aprendeu a gostar de ler através dos livros obrigatórios (atenção pra essa palavra, hein?!) que tiveram que ler em seu tempo de escola, antes, vou ter que amarrar essa tal pessoa a uma daquelas máquinas que detectam mentiras. Porque olha, sinceramente, estou pra conhecer umzinho só que tenha descoberto a leitura dessa forma. 

Eu, que já amava ler, não descobri o amor pelos livros. Descobri outras coisas.



Capa da edição que li, lá por volta de 1927...

Através do Zezé, compreendi o que é realmente a infância; ou, pelo menos, uma infância dolorida. E tenho muito forte dentro de mim as mesmas sensações que teve o Zezé na sua própria. Vivi, de certa forma, tudo aquilo: recolhia-me em minha própria imaginação, sofria com os encantamentos do mundo, com tudo aquilo que só eu enxergava, e gostava profundamente de fazer amizade com pessoas mais velhas, que sempre me acolheram muito melhor que os colegas de minha própria idade. 

Releio esse livro quase todos os anos. Via de regra, passar alguns dias novamente na companhia desses personagens é algo tão forte e tão inominável que se tornaria um trabalho muito pesado ter que descrever essas sensações aqui. Ainda ontem me dizia o meu amor: "Esse livro é tão bom que tenho vontade de dar um exemplar dele pra cada pessoa de que gosto". E penso que isso resume de maneira maravilhosa tudo o que penso sobre este pequeno tratado de grandes coisas. Um dos livros mais ternos e sensíveis que já li na vida. Inesquecível. E pra sempre.


Publicado em 1981, O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida é, seguramente, um dos livros que mais marcou esse período da minha vida. Por volta dessa idade, tudo que fosse "de terror", policial, tivesse sangue, suspense e morte me fascinava. Esses temas me fascinam até hoje, mas à época, era de uma maneira sem medidas, eu gostava do tosco, da carnificina, do torpe.


Quando eu li este livro, a capa era essa. Atente-se para a calça do personagem. Acho que algo aí denota a minha idade...



O Escaravelho do Diabo começou a mudar isso. Claro que o que me chamou a atenção, aos 10, 11 anos, foi a palavra "diabo" no título, porque eu não tinha ideia do que diabos era um escaravelho, ou qual sua aparência (velho? Mas aí, o que seria um escara? Em dois minutos desisti de entender o bicho destrinchando a formação de seu nome. Vale lembrar que nesse tempo não existia Google; nem mesmo Yahoo nem Altavista (oi??). A ferramenta de pesquisa da época era a Enciclopédia Barsa em um zilhão de volumes, todos bem arrumadinhos na prateleira da mamãe. Alguns recortados pra ajudar nos trabalhos da escola (agradecendo aos deuses até hoje por ela nunca ter descoberto, do contrário, era surra na certa; surra esta dada pelo meu pai, diga-se de passagem). 

Mas que tipo de mudança ele pode ter trazido? Pois bem: descobri, pela primeira vez, que um livro de suspense podia ser escrito por um brasileiro (tinha o maior preconceito, achava que bons livros do gênero só podiam vir de autores da estirpe de um Edgar Allan Poe, ou de gente nascida pelas mesmas terras que ele), podia cativar o leitor completamente e, melhor ainda: tinha personagens maravilhosos, e uma trama estupenda. Fiquei tão estupefato com este romance, que lembro de ter enlouquecido a bibliotecária da minha escola, pegando o livro nada menos que 18 vezes. Não sei se eu reli o livro todas as vezes. Chegou-se a um ponto em que eu gostava de ter o livro comigo, e como não podia comprar, era esse o método. De qualquer forma, foi um livro que abriu portas, deu asas à imaginação. E foi também, a partir dele, que comecei a escrever.



Pensar em literatura, nessa época, também era sinônimo do saudoso Marcos Rey. Livros como O Mistério do Cinco Estrelas, Um Cadáver Ouve Rádio, Sozinha no Mundo, quem nunca?

De modo que, pra concluir essa postagem, não vou me referir a um único livro desse autor, mas a tudo o que ele escreveu. 


Alguns livros infanto-juvenis do autor. Infelizmente, esse autógrafo não foi pra mim. Buá.

Marcos Rey já tinha uma carreira longeva e de sucesso muitos anos antes de se aventurar a escrever para o público infanto-juvenil. Mas conheceu mesmo o dinheiro e a extrema popularidade com os livros da série Vaga-lume. 

Comecei a corresponder-me com o autor em meados de 1992, e mandamos cartas um para o outro até dois meses antes de sua morte, em 1999. Através delas, descobri que o Marcos adorava seu público jovem, mas gostava ainda mais quando estes cresciam e migravam para seus livros para adultos, seu grande orgulho e paixão.

Marcos foi um grande incentivador da minha própria escrita, e não há uma letra que eu escreva em termos de ficção que não pense que a origem de tudo tem o nome dele cravado de cima à baixo.  

Sempre achei os personagens do Marcos absolutamente críveis, e repletos de conteúdo. A sensação que eu tinha era a de que seus personagens já vinham com uma história, um passado. E isso significava muito pra mim. Como esquecer o espetacular O Último Mamífero do Martinelli?, seu primeiro livro para adultos que li; assim como Fantoches!, outro livrinho curto para jovens em transição para a fase adulta da vida. Visitar o universo de Marcos Rey é algo que se faz sempre com os dois pés fincados no prazer. É um submundo que não se vulgariza, pelo contrário: através da escrita do Marcos, torna-se arte. 


Sou extremamente grato por ter tido acesso a esses livros (e inúmeros outros), quando ainda tinha dentes de leite na boca. Minha vida teria sido outra, bem menos bonita, e eu seria outro homem, bem menos atento às agruras e delícias do viver, se os livros que li nessa fase da vida não tivessem vindo me salvar, embora eu não goste da ideia de ser salvo. Não no sentido  que lembra o religioso. Ser salvo pela literatura, porém, nos dá uma outra perspectiva para esses poucos anos que passamos a caminhar, buscar caminhos e perscrutar desígnios.
Madonna: o segundo show em São Paulo - impressões

Madonna: o segundo show em São Paulo - impressões




Nunca pensei que algum dia na vida iria a um show da Madonna.

Os motivos são muitos: quando mais novo, não achava que um dia teria dinheiro pra isso (ingresso, passagens de avião, hospedagem - mas ainda bem que esse pensamento é apenas um tosco devaneio/delírio infanto-juvenil). Também nunca fui um ardoroso fã da artista. Cheguei a comprar alguns álbuns dela quando adolescente, baixei outros, que ouvia, depois deixava pra lá, muito porque meus ouvidos foram se voltando para coisas que ouço mais, até hoje, como jazz, música clássica e rock. 

Até que, no meio do caminho, aconteceu o Amor.

Contando já mais de trinta anos, observando o mundo à minha volta e fazendo as necessárias leituras de tudo o que me cerca - assim como também do sublime, do não-dito, dos interstícios - , compreendo que há poucas coisas que o Amor não é capaz de fazer, todas elas, coisas ruins. Amar transforma homens e mulheres, exerce sobre cada um de nós um poder avassalador que beira o sobrenatural - talvez porque seja, mesmo. 

Assim foi que, por Amor, por vontade de conhecer cada vez mais o mundo da pessoa amada e adentrar nele, por saber ser esta pessoa todo um universo extraordinário de infinitas possibilidades e grande sabedoria, inteligência e grande exemplar de beleza humana - em todos os sentidos da palavra - , permiti-me (e me permitirei, sempre) adentrar nos meandros do mundo alheio, aconchegar-me no Desconhecido para mim que o Outro tem a desnovelar para o meu próprio universo. E o que seria do amor e do amar sem suas trocas? E Madonna veio parar na minha - nossa - vida.

Ingressos e passagens foram comprados com enorme antecedência, e quando menos esperamos, lá estávamos.

Quero dizer, com um orgulho pouco velado, que fui sorteado para ficar numa área muito próxima à cantora e, podendo levar um acompanhante, ficamos lá juntos, o que nos permitiu ter o privilégio de ter uma visão ainda mais espetacular do show.



O show começa com um trio entoando cantos gregorianos, em um ambiente que lembra uma catedral. Um sino puxado para todos os lados termina por quebrar um vidro, de onde se vê Madonna dentro de um confessionário, suspenso. É então que ela sai do véu por trás deste confessionário e percebe-se que ela tem um rifle nas mãos. Madonna começa a cantar Girl Gone Wild, a primeira faixa do novo álbum, MDNA. Começa aí o bloco (o primeiro, de um total de quatro) chamado Transgressão (alguém aí consegue ver isso como novidade na carreira da cantora?) que, se não é exatamente algo inédito para ela, certamente torna-se inovador ao fazer uso de expressões e cenários de violência, quando é perceptível que ela está exorcizando seus demônios particulares, como suas desavenças com o irmão, e o divórcio tumultuado de Guy Ritchie. 

Segue-se a tudo isso o bloco Profecia, que é onde fica situada a famosa rusga dela com Lady Gaga (que pra mim é marketing total, e nada mais), quando ela canta Express yourself seguida de Born this way. Diz-se que Gaga inspirou-se livremente na música de Madonna para compor a melodia de sua canção. Eu, particularmente, não enxergo essa semelhança, mas... O que importa é que a profecia, aqui, diz respeito às questões da cultura pop, com essa de ela ser copiada por outros artistas, passando por essa mistura retrô com algo futurista (como quando ela canta Give me all your luvin' com roupas de cheerleaders americanas e pompons que em algo remetem aos anos 80, mas com uma banda que canta suspensa, acima das cabeças de todo mundo, lembrando que a música, assim como o som que Madonna faz, está acima e avante de tudo). O bloco termina com Masterpiece, ou seja, de forma sublime: a música gira em torno de alguém que ama profundamente, e compara o ser amado a uma obra-prima. Assim, a profecia maior é a do amor que é construído, como uma obra de arte; a profecia maior é a do Amor realizado, tal qual uma pintura, uma escultura, um livro, cuja arte fale por si só: aqui está o produto final, não apenas para que seja venerado por aqueles que se dispuserem a olhar para ele, mas para que seja visto e analisado por gerações ainda no porvir, e compreendam o que é este verdadeiramente extraordinário sentimento. 

No terceiro bloco, intitulado Masculino/Feminino, Madonna escolheu a dedo canções suas que trabalham a questão da imagem, de como o ser humano pode ser visto, quer ser visto e é visto, e que, o que sobra na verdade, é que podemos ser tudo e nada, somos resquícios de ambos os sexos, somos realidade e quimera. É um bloco sensacional, em que músicas como Vogue, Candy Shop, Human Nature, Nobody Knows Me são executadas, transmitindo essa mensagem que é, no mínimo, um tapa na cara de todo mundo. 

O último bloco, Redenção, traz Madonna vestida em roupas que a tornam uma mulher quase medieval, pronta para dizer a todos que sim, ela é uma pecadora, mas que gosta disso (pra mim, a melhor música do novo álbum). É nesse bloco também que Like a Prayer é executada de uma forma tão transcendental que me emocionou ao ponto de me levar às lágrimas. Todos os seus bailarinos formam um imenso coral, enquanto escritos em hebráico aparecem na tela de led atrás deles. É um número lindo, rico, grandioso e que faz nossos espíritos se elevarem às alturas.

Ao final, Madonna volta ao palco mais modernosa, cantando junto com seus bailarinos e bailarinas a última música, Celebration, que é precisamente isso: uma maneira de dizer que a vida deve ser uma celebração, esse agregar de sons, ritmos, cores, luzes, e que embora o show vá chegando ao fim, a vida, que é o que temos de celebrar, continua.

E que ótima maneira de concluir o espetáculo.

Tive uma certeza gigantesca, terminado o show: Madonna faz jus àquela máxima de que, na verdade, não importam certas características relativas à grandeza. Digo isso porque, sabidamente, Madonna não tem uma grande voz, no sentido de alcançar grandes notas. Mas ela prova que faz uso formidável daquilo que tem. É simplesmente sensacional ver uma mulher de cinquenta e quatro anos dançando, interpretando, cantando e interagindo com o público da maneira que eu vi na noite de 05 de dezembro. Foi, sem dúvida, o maior espetáculo que já vi, em todos os sentidos sensoriais possíveis.

Se estar ao lado de quem amo ajudou nessa sensação? Sem dúvida. Engrandeceu ainda mais o evento, tornando-o ainda mais único e especial. Poderia ser diferente? Nunca. Foi um dia especial que entrou para a minha biografia, e sei que jamais esquecerei dele. 

Mas o óbvio, não importam os detratores, é que Madonna é, sim, a maior entertainer do cenário de música pop do mundo. Não importa quem veio depois dela, ninguém conseguiu, e dificilmente conseguirá superar, aquela que é, seguramente, um grande ícone.

Longa vida a esta mulher sinônimo de força, sagacidade e inteligência. 

Longa vida ao Amor, que constrói pontes.

Madonna, nos vemos novamente em 2016!