Que obras te fizeram ser quem tu és? Parte II - Infância

Que obras te fizeram ser quem tu és? Parte II - Infância

Refletir é sempre um presente que nos é dado, na maioria das vezes, por algum motivo inescrutável. É também algo que deve ser sempre abraçado como quem recebe flores inesperadas de alguém de quem muito se gosta: com um misto de surpresa e alegria, lembrando-se que o próximo passo é deleitar-se com a beleza das mesmas, e com o perfume.

Convidei-me a refletir, novamente, sobre aquelas obras que de alguma forma colaboraram para pavimentar meus caminhos como leitor. Como esse post terá ainda muitas outras partes, desde que eu esteja vivo para escrevê-las, escolhi algumas obras sobre as quais desejo comentar, todos ainda na época em que eu prefiro chamar de Infância: livros que li entre os 9 e 12 anos.

O primeiro deles, Meu Pé de Laranja-lima, tem uma relação interessante comigo: lembro que quem leu este livro primeiro foi minha irmã, lá pela quinta série. Por ser um livro obrigatório pra escola, já vinha com aquela expressão de "ecaaaaa", por ter que ler algo e fazer prova a respeito. Se alguém me disser que aprendeu a gostar de ler através dos livros obrigatórios (atenção pra essa palavra, hein?!) que tiveram que ler em seu tempo de escola, antes, vou ter que amarrar essa tal pessoa a uma daquelas máquinas que detectam mentiras. Porque olha, sinceramente, estou pra conhecer umzinho só que tenha descoberto a leitura dessa forma. 

Eu, que já amava ler, não descobri o amor pelos livros. Descobri outras coisas.



Capa da edição que li, lá por volta de 1927...

Através do Zezé, compreendi o que é realmente a infância; ou, pelo menos, uma infância dolorida. E tenho muito forte dentro de mim as mesmas sensações que teve o Zezé na sua própria. Vivi, de certa forma, tudo aquilo: recolhia-me em minha própria imaginação, sofria com os encantamentos do mundo, com tudo aquilo que só eu enxergava, e gostava profundamente de fazer amizade com pessoas mais velhas, que sempre me acolheram muito melhor que os colegas de minha própria idade. 

Releio esse livro quase todos os anos. Via de regra, passar alguns dias novamente na companhia desses personagens é algo tão forte e tão inominável que se tornaria um trabalho muito pesado ter que descrever essas sensações aqui. Ainda ontem me dizia o meu amor: "Esse livro é tão bom que tenho vontade de dar um exemplar dele pra cada pessoa de que gosto". E penso que isso resume de maneira maravilhosa tudo o que penso sobre este pequeno tratado de grandes coisas. Um dos livros mais ternos e sensíveis que já li na vida. Inesquecível. E pra sempre.


Publicado em 1981, O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida é, seguramente, um dos livros que mais marcou esse período da minha vida. Por volta dessa idade, tudo que fosse "de terror", policial, tivesse sangue, suspense e morte me fascinava. Esses temas me fascinam até hoje, mas à época, era de uma maneira sem medidas, eu gostava do tosco, da carnificina, do torpe.


Quando eu li este livro, a capa era essa. Atente-se para a calça do personagem. Acho que algo aí denota a minha idade...



O Escaravelho do Diabo começou a mudar isso. Claro que o que me chamou a atenção, aos 10, 11 anos, foi a palavra "diabo" no título, porque eu não tinha ideia do que diabos era um escaravelho, ou qual sua aparência (velho? Mas aí, o que seria um escara? Em dois minutos desisti de entender o bicho destrinchando a formação de seu nome. Vale lembrar que nesse tempo não existia Google; nem mesmo Yahoo nem Altavista (oi??). A ferramenta de pesquisa da época era a Enciclopédia Barsa em um zilhão de volumes, todos bem arrumadinhos na prateleira da mamãe. Alguns recortados pra ajudar nos trabalhos da escola (agradecendo aos deuses até hoje por ela nunca ter descoberto, do contrário, era surra na certa; surra esta dada pelo meu pai, diga-se de passagem). 

Mas que tipo de mudança ele pode ter trazido? Pois bem: descobri, pela primeira vez, que um livro de suspense podia ser escrito por um brasileiro (tinha o maior preconceito, achava que bons livros do gênero só podiam vir de autores da estirpe de um Edgar Allan Poe, ou de gente nascida pelas mesmas terras que ele), podia cativar o leitor completamente e, melhor ainda: tinha personagens maravilhosos, e uma trama estupenda. Fiquei tão estupefato com este romance, que lembro de ter enlouquecido a bibliotecária da minha escola, pegando o livro nada menos que 18 vezes. Não sei se eu reli o livro todas as vezes. Chegou-se a um ponto em que eu gostava de ter o livro comigo, e como não podia comprar, era esse o método. De qualquer forma, foi um livro que abriu portas, deu asas à imaginação. E foi também, a partir dele, que comecei a escrever.



Pensar em literatura, nessa época, também era sinônimo do saudoso Marcos Rey. Livros como O Mistério do Cinco Estrelas, Um Cadáver Ouve Rádio, Sozinha no Mundo, quem nunca?

De modo que, pra concluir essa postagem, não vou me referir a um único livro desse autor, mas a tudo o que ele escreveu. 


Alguns livros infanto-juvenis do autor. Infelizmente, esse autógrafo não foi pra mim. Buá.

Marcos Rey já tinha uma carreira longeva e de sucesso muitos anos antes de se aventurar a escrever para o público infanto-juvenil. Mas conheceu mesmo o dinheiro e a extrema popularidade com os livros da série Vaga-lume. 

Comecei a corresponder-me com o autor em meados de 1992, e mandamos cartas um para o outro até dois meses antes de sua morte, em 1999. Através delas, descobri que o Marcos adorava seu público jovem, mas gostava ainda mais quando estes cresciam e migravam para seus livros para adultos, seu grande orgulho e paixão.

Marcos foi um grande incentivador da minha própria escrita, e não há uma letra que eu escreva em termos de ficção que não pense que a origem de tudo tem o nome dele cravado de cima à baixo.  

Sempre achei os personagens do Marcos absolutamente críveis, e repletos de conteúdo. A sensação que eu tinha era a de que seus personagens já vinham com uma história, um passado. E isso significava muito pra mim. Como esquecer o espetacular O Último Mamífero do Martinelli?, seu primeiro livro para adultos que li; assim como Fantoches!, outro livrinho curto para jovens em transição para a fase adulta da vida. Visitar o universo de Marcos Rey é algo que se faz sempre com os dois pés fincados no prazer. É um submundo que não se vulgariza, pelo contrário: através da escrita do Marcos, torna-se arte. 


Sou extremamente grato por ter tido acesso a esses livros (e inúmeros outros), quando ainda tinha dentes de leite na boca. Minha vida teria sido outra, bem menos bonita, e eu seria outro homem, bem menos atento às agruras e delícias do viver, se os livros que li nessa fase da vida não tivessem vindo me salvar, embora eu não goste da ideia de ser salvo. Não no sentido  que lembra o religioso. Ser salvo pela literatura, porém, nos dá uma outra perspectiva para esses poucos anos que passamos a caminhar, buscar caminhos e perscrutar desígnios.
Madonna: o segundo show em São Paulo - impressões

Madonna: o segundo show em São Paulo - impressões




Nunca pensei que algum dia na vida iria a um show da Madonna.

Os motivos são muitos: quando mais novo, não achava que um dia teria dinheiro pra isso (ingresso, passagens de avião, hospedagem - mas ainda bem que esse pensamento é apenas um tosco devaneio/delírio infanto-juvenil). Também nunca fui um ardoroso fã da artista. Cheguei a comprar alguns álbuns dela quando adolescente, baixei outros, que ouvia, depois deixava pra lá, muito porque meus ouvidos foram se voltando para coisas que ouço mais, até hoje, como jazz, música clássica e rock. 

Até que, no meio do caminho, aconteceu o Amor.

Contando já mais de trinta anos, observando o mundo à minha volta e fazendo as necessárias leituras de tudo o que me cerca - assim como também do sublime, do não-dito, dos interstícios - , compreendo que há poucas coisas que o Amor não é capaz de fazer, todas elas, coisas ruins. Amar transforma homens e mulheres, exerce sobre cada um de nós um poder avassalador que beira o sobrenatural - talvez porque seja, mesmo. 

Assim foi que, por Amor, por vontade de conhecer cada vez mais o mundo da pessoa amada e adentrar nele, por saber ser esta pessoa todo um universo extraordinário de infinitas possibilidades e grande sabedoria, inteligência e grande exemplar de beleza humana - em todos os sentidos da palavra - , permiti-me (e me permitirei, sempre) adentrar nos meandros do mundo alheio, aconchegar-me no Desconhecido para mim que o Outro tem a desnovelar para o meu próprio universo. E o que seria do amor e do amar sem suas trocas? E Madonna veio parar na minha - nossa - vida.

Ingressos e passagens foram comprados com enorme antecedência, e quando menos esperamos, lá estávamos.

Quero dizer, com um orgulho pouco velado, que fui sorteado para ficar numa área muito próxima à cantora e, podendo levar um acompanhante, ficamos lá juntos, o que nos permitiu ter o privilégio de ter uma visão ainda mais espetacular do show.



O show começa com um trio entoando cantos gregorianos, em um ambiente que lembra uma catedral. Um sino puxado para todos os lados termina por quebrar um vidro, de onde se vê Madonna dentro de um confessionário, suspenso. É então que ela sai do véu por trás deste confessionário e percebe-se que ela tem um rifle nas mãos. Madonna começa a cantar Girl Gone Wild, a primeira faixa do novo álbum, MDNA. Começa aí o bloco (o primeiro, de um total de quatro) chamado Transgressão (alguém aí consegue ver isso como novidade na carreira da cantora?) que, se não é exatamente algo inédito para ela, certamente torna-se inovador ao fazer uso de expressões e cenários de violência, quando é perceptível que ela está exorcizando seus demônios particulares, como suas desavenças com o irmão, e o divórcio tumultuado de Guy Ritchie. 

Segue-se a tudo isso o bloco Profecia, que é onde fica situada a famosa rusga dela com Lady Gaga (que pra mim é marketing total, e nada mais), quando ela canta Express yourself seguida de Born this way. Diz-se que Gaga inspirou-se livremente na música de Madonna para compor a melodia de sua canção. Eu, particularmente, não enxergo essa semelhança, mas... O que importa é que a profecia, aqui, diz respeito às questões da cultura pop, com essa de ela ser copiada por outros artistas, passando por essa mistura retrô com algo futurista (como quando ela canta Give me all your luvin' com roupas de cheerleaders americanas e pompons que em algo remetem aos anos 80, mas com uma banda que canta suspensa, acima das cabeças de todo mundo, lembrando que a música, assim como o som que Madonna faz, está acima e avante de tudo). O bloco termina com Masterpiece, ou seja, de forma sublime: a música gira em torno de alguém que ama profundamente, e compara o ser amado a uma obra-prima. Assim, a profecia maior é a do amor que é construído, como uma obra de arte; a profecia maior é a do Amor realizado, tal qual uma pintura, uma escultura, um livro, cuja arte fale por si só: aqui está o produto final, não apenas para que seja venerado por aqueles que se dispuserem a olhar para ele, mas para que seja visto e analisado por gerações ainda no porvir, e compreendam o que é este verdadeiramente extraordinário sentimento. 

No terceiro bloco, intitulado Masculino/Feminino, Madonna escolheu a dedo canções suas que trabalham a questão da imagem, de como o ser humano pode ser visto, quer ser visto e é visto, e que, o que sobra na verdade, é que podemos ser tudo e nada, somos resquícios de ambos os sexos, somos realidade e quimera. É um bloco sensacional, em que músicas como Vogue, Candy Shop, Human Nature, Nobody Knows Me são executadas, transmitindo essa mensagem que é, no mínimo, um tapa na cara de todo mundo. 

O último bloco, Redenção, traz Madonna vestida em roupas que a tornam uma mulher quase medieval, pronta para dizer a todos que sim, ela é uma pecadora, mas que gosta disso (pra mim, a melhor música do novo álbum). É nesse bloco também que Like a Prayer é executada de uma forma tão transcendental que me emocionou ao ponto de me levar às lágrimas. Todos os seus bailarinos formam um imenso coral, enquanto escritos em hebráico aparecem na tela de led atrás deles. É um número lindo, rico, grandioso e que faz nossos espíritos se elevarem às alturas.

Ao final, Madonna volta ao palco mais modernosa, cantando junto com seus bailarinos e bailarinas a última música, Celebration, que é precisamente isso: uma maneira de dizer que a vida deve ser uma celebração, esse agregar de sons, ritmos, cores, luzes, e que embora o show vá chegando ao fim, a vida, que é o que temos de celebrar, continua.

E que ótima maneira de concluir o espetáculo.

Tive uma certeza gigantesca, terminado o show: Madonna faz jus àquela máxima de que, na verdade, não importam certas características relativas à grandeza. Digo isso porque, sabidamente, Madonna não tem uma grande voz, no sentido de alcançar grandes notas. Mas ela prova que faz uso formidável daquilo que tem. É simplesmente sensacional ver uma mulher de cinquenta e quatro anos dançando, interpretando, cantando e interagindo com o público da maneira que eu vi na noite de 05 de dezembro. Foi, sem dúvida, o maior espetáculo que já vi, em todos os sentidos sensoriais possíveis.

Se estar ao lado de quem amo ajudou nessa sensação? Sem dúvida. Engrandeceu ainda mais o evento, tornando-o ainda mais único e especial. Poderia ser diferente? Nunca. Foi um dia especial que entrou para a minha biografia, e sei que jamais esquecerei dele. 

Mas o óbvio, não importam os detratores, é que Madonna é, sim, a maior entertainer do cenário de música pop do mundo. Não importa quem veio depois dela, ninguém conseguiu, e dificilmente conseguirá superar, aquela que é, seguramente, um grande ícone.

Longa vida a esta mulher sinônimo de força, sagacidade e inteligência. 

Longa vida ao Amor, que constrói pontes.

Madonna, nos vemos novamente em 2016!
Parar de ler: as relações de amor e ódio com os livros

Parar de ler: as relações de amor e ódio com os livros






É instintivo. Intrínseco, mesmo. 


Às vezes, embora eu continue apaixonado pelo objeto livro, detesto ler. E é assim, exatamente assim, que me encontro hoje.

O ato remonta a anos passados. Ainda criança, eu terminava um livro, já meio aporrinhado, pegava outro, começava, me chateava logo e colocava de lado. Pegava outro, a mesma coisa. Por essa época, eu achava que devia ter alguma coisa muito errada comigo. Como assim, o menino conhecido na escola por ser louco por livros, sem um livro? Era como se eu estivesse abdicando a alguma espécie de reinado. Mas acontecia. Era quando eu me esforçava, me forçava, até que aparecia algo que me chamava muito a atenção, e o amor pela leitura voltava.

Com o passar do tempo, fui compreendendo que esse tipo de relação se dá com tudo na vida: livros, amigos, lugares, amores. Virou parte da sua vida, pode anotar: uma hora você vai amar, noutra, vai querer mandar pra longe. Ou você vai querer correr pra longe, tanto faz. É assim que as relações vão se construindo, destruindo, ou simplesmente se deixando estar. Os altos e baixos são inevitáveis.

Mas veja bem: não deixei de falar sobre literatura, nem de discuti-la. Abandonei, por algum tempo, a leitura. O que não quer dizer que eu não vá insistir de novo daqui a alguns dias, se bem me conheço. Mas não me vejo conseguindo sentir esse amor assim, tão de súbito. E amor pra mim, se não seduz nem arrebata, fenece.

A verdade é que o cansaço dos afazeres tirou o sentido de certas coisas pra mim. Parece que quero me fechar em copas, com bem poucas coisas e pessoas (essenciais) perto de mim. Para todo o mais, fechado. Até segunda ordem, não adianta bater, ninguém entra.

Foi então que me veio a compreensão: é chegada a hora de dedicar à escrita o tempo que eu devoto à leitura. Dar vazão às próprias ideias, à criação pelo simples prazer de criar, de brincar de Deus, de soprar no barro e fazer dele gente, e ao final, obra lapidada, dizer também: Parla!

Alguns autores dizem que é impossível escrever se você não for um bom leitor. Eu sou. Sempre serei. Nesse momento, em abstinência, mas sempre serei. 

Há em mim essa dualidade, essa dicotomia que vai para além das explicações e rotulações possíveis. Sou o alegre e o triste. E, sobretudo, o ocaso, o crepúsculo, que surge com o fim de um dia, qualquer dia. Afinal, conceito este inventado apenas para vender calendários. Ainda mais isso, ter de aturar a abjeta noção de tempo, mais uma criação humana. Lógico.



Que vale viver cem anos e olhar pra trás e não enxergar dez sequer?


A intensidade do viver - jamais dimensionada pela irresponsabilidade e inconsequência - é o que conta. Esqueçamos o tempo. Contemos apenas com as boas companhias, bons amigos, um amor pra caminhar junto e te ajudar a crescer, e boas leituras, claro.


Leituras estas que me recuso a fazer, por enquanto.

Assim sendo, é hora também de concluir esta postagem. E ir fazer jus à decisão: entregar-me ao ato de criar. 
Da nostalgia dos amores pretéritos

Da nostalgia dos amores pretéritos



Saí de casa dia desses sem pretensões, e fui esbarrar na livraria Cultura, lugar onde grande parte dos vendedores já me conhece pelo nome, de "tão pouco" que ando por lá.

Ao caminhar pelas muitas prateleiras, deparei-me com uma antiga paixão: um DVD de uma banda chamada The Pretenders, da qual comecei a gostar ainda lá pelos doze anos, e numa paixão sem medidas que foi adentrando pela adolescência e rapidamente chegou até a idade mais jovem da fase adulta da minha vida. Passei quase 15 anos em uma paixão plena. Por eles, viajei metade do país num ônibus, numa época em que eu não tinha dinheiro pra pagar viagem de avião; fiz meus grandes amigos irem num show da vocalista - Chrissie Hynde - que teve aqui em Fortaleza, e o mais interessante de tudo: vivenciei um grande amor, eu diria até que o namoro em que sinto que fui mais profundamente amado, durante essa época da minha vida.

Pode até ser que eu seja mais amado hoje, não sei, cada pessoa que entra em nossas vidas demonstra o amor de uma forma diferente, (e bem sei que demonstrações exacerbadas não garantem amor eterno nem verdadeiro, embora saiba - e sinta - que explicitar bem-querer só faz bem ao casal) de modo que é uma incógnita. Mas a sensação é essa. 

Por idos de 2002, num amor jovem - mas não juvenil - , já tão forte e intenso, lembro-me que os CDs da banda já eram dificílimos de encontrar. No entanto, vez por outra eu recebia um. Como? A outra parte fazendo mágicas, vasculhando reentrâncias, galerias, os lugares mais obscuros da cidade, para encontrá-los. E os encontrou. Hoje, tenho todos. Só um ou dois comprei. Todos os mais difíceis, esgotados, recebi. Não precisa dizer que cada vez mais o Amor também se apoderava de cada reentrância minha, a ponto de fazer enormes planos para o futuro, de querer casar, essas coisas todas. 

O namoro - não o Amor - acabou, entretanto. Durou o que podia ter durado, sendo dois seres que se amavam ainda tão jovens, tão ingênuos das coisas do coração, tão imaturos para compreender que certas coisas têm de ser encaradas com parcimônia, diligência, paciência e devoção. Acabou-se, depois de muito drama, inúmeras idas e vindas. Um dia foi e nunca mais. 

Assim foi que hoje, mais de uma semana depois de ter comprado o DVD da banda, que é o registro de um show de 2010 em Londres, resolvi assisti-lo. Eu o havia comprado por pura nostalgia. Era o único DVD deles que eu ainda não tinha. 

Agora entendo porquê retardei tanto assisti-lo. Lembro de ter pensado que não havia gostado tanto assim da lista de músicas, e deixei-o de lado. Só que, ao apertar o play, compreendi a verdadeira razão: Chrissie Hynde começou a cantar, e tudo voltou. Os cheiros, os gostos, as risadas, as lembranças das surpresas, o dormir junto, a troca de olhares apaixonados, tudo o que essa banda representou naqueles anos de namoro, sobretudo porque ela era a minha maior e melhor trilha sonora.

Foi então que me dei conta de que, não importa quanto o tempo passe, há coisas que não são enterradas. São superadas, porque há de se continuar vivendo, e logo eu, que acredito piamente na capacidade transformadora do Amor, não iria viver de memórias. Mas confesso que não deu. 

Desliguei o DVD lá pela quinta música, quando há pelo menos umas duas meu cérebro já não estava mais ali, naquele show à minha frente. As imagens que se faziam presentes eram a de todas as lembranças de mais de dez anos atrás. 

Tal como pais que nunca desarrumam o quarto do filho morto, existem memórias tão pungentes que não conseguimos ir lá e desarrumá-las. 

Hoje, nem grandes amigos, nem inimigos, morando longe, cada qual com sua vida estabelecida, sabemos que foi algo infinitamente belo, que ficou. Ficou para nos ensinar, e certamente nos ensina ainda, muita, muita coisa. Inclusive coisas que não queremos para nós mesmos, o que por si só já é de um valor incomensurável.

Não esquecer o passado não quer dizer que ele ainda seja presente. Quer dizer que, ao sabermos que terminou ali um ciclo, convocamos o que há de mais forte e verdadeiro em nós mesmos para não repeti-lo. Porque passados dez anos, sou muitos outros dentro daquele mesmo Marco. Sou um homem melhor, embora ainda repleto de falhas, e sei que algumas convicções que eu tinha mudaram, porque pessoas que surgiram na minha vida me fizeram mudar, seja pra melhor ou pra pior. E algumas outras simplesmente permanecem as mesmas. Como continuar a acreditar na doçura do Amor, na amizade, num mundo menos injusto. 

Há coisas para as quais não consigo voltar. Ver um DVD dos Pretenders sem lembrar daquela época é uma delas. E há coisas para as quais o que volta é o coração - e me puxa de volta para o presente, fazendo de mim um homem melhor para quem agora caminha comigo. 

E que sei e sinto que pode e é, sim, o amor que sempre almejei pra mim.

A Culpa é das Estrelas, de John Green

A Culpa é das Estrelas, de John Green


             Tudo começou com Nicholas Sparks, até onde a memória me serve, mas posso estar enganado.


Antes, não se tinha notícias de homens escrevendo romances voltados majoritariamente para o público feminino, e foi através dos livros dele que o gênero foi se abrindo para outros escritores homens, como é moda nesses tempos contemporâneos: alguém faz sucesso com um tipo de livro, e logo uma horda de outros escritores de repente ganham as prateleiras com mais do mesmo. Basta ver o que já saiu na esteira do afamado Cinquenta tons de cinza e Diário de um banana

Foi aí que, nos últimos 10 anos, mais ou menos, as editoras e autores perceberam que, se quiserem ganhar público, têm de ter um diferencial.

Por muitos motivos, quase todos dele bem honrosos, fazendo do autor quase uma Madre Teresa de Calcutá versão nerd, John Green resolveu escrever uma história de amor, digamos, diferente.

O livro A culpa é das estrelas saiu nos Estados Unidos e no Brasil este ano. Na capa, já temos de cara uma recomendação do autor de outro livro que fez bastante sucesso por aqui, A menina que roubava livros. O título faz referência à peça Julius Ceasar, de Shakespeare, na qual, em dado momento, é dito: "A culpa, meu caro Brutus, não é das nossas estrelas, mas de nós mesmos, por sermos subalternos". A ideia do autor é mostrar que sim, há momentos na vida em que, mesmo que você faça tudo bonitinho, ainda assim a vida vai lá e CRAU, tira o teu chão sem você ter feito por onde merecer, ao menos aparentemente (já que os espíritas, dentre outras religiões, vão sempre dizer que isso tem a ver com vidas passadas, que você está pagando agora o que fez em outra encarnação (e pelo visto sendo cobrado com juros e correção) etc etc. Pode ser. Vai saber).

O romance é narrado por Hazel Grace (Hazel em Português significa avelã, e Grace, graça, por aí você já começa a tirar a onda simbólica que o autor quer transmitir), uma menina de 16 anos que tem câncer desde que "virou mulher", como ela mesma diz, já que descobriu o câncer assim que menstruou pela primeira vez. Hazel tem um senso de humor (negríssimo e engraçadíssimo) incrível, e não se faz de vítima em momento algum. Mas, a vida lhe trouxe limitações: ela tem que usar uma cânula no nariz, que é ligada ao Felipe, que é como ela chama o carrinho com o oxigênio, que ela tem de levar pra onde for. 

Lá pelas tantas, num grupo de apoio ao câncer infantil, Hazel se depara com Augustus Waters (outro nome simbólico, já que o nome dele seria algo como águas calmas, em Português, sendo que desta vez, parte do nome vem do Latim, e parte do Inglês), um menino lindíssimo, cujo câncer parece estar em remissão que foi lá para transmitir aos outros que nem todo mundo está condenado a morrer. Augustus já teve uma perna levada pelo câncer (como também é colocado no livro, dessa forma), e usa uma perna mecânica, assim como o Roberto Carlos. A diferença é que o Augustus não morre de vergonha da sua, nem se recusa a falar sobre o assunto. 

Evidentemente que, apesar de todas as recusas, já que Hazel sabe que vai morrer e se enxerga como uma "granada", já que a qualquer momento pode fazer boom e deixar marcas em todos aqueles cuja vida ela tocar, eles se apaixonam. É aí onde entra o diferencial do John Green, que juntou humor negro, filosofia para adolescentes, romance e amor, com câncer. E o interessante é: funciona. Não é um livro triste, nem pesado. Você realmente se diverte com o livro. Mas voltando.

A família do Augustus enche a casa de almofadas com mensagens do tipo "eu sou forte e vou vencer essa" pela casa inteira. Pra onde se olhe, tem uma almofada, uma faixa, algo para encher de força quem se achar condenado a uma morte prematura.

No meio disso tudo, Hazel apresenta para o Augustus um livro chamado Uma aflição imperial, que se torna o livro de cabeceira de Hazel e claro, Augustus acaba por lê-lo também. Só que o livro termina subitamente, no meio de um parágrafo, como se a narradora, que era uma menina com câncer, tivesse morrido ali, e, por motivos óbvios, não tivesse podido continuar o livro. O problema é que o sonho de Hazel é poder falar com o autor e perguntar a ele o que aconteceu com a mãe da personagem, seu hamster, um tal de homem das tulipas, o papagaio, a calopsita etc. Enfim, ela quer encher o saco do autor pra saber o que foi que aconteceu depois daquele fatídico parágrafo cortado ao meio.

É claro que ela consegue visitar o autor - que mora na Holanda - , e é claro que ela tem as respostas dela. Só que não. Nada acontece como deveria, mas isso você só vai saber lendo o livro, meu caro leitor, isso aqui não é resumão pra pegar antes da prova, meninos e meninas.

Claramente concebido para atingir o público adolescente, A culpa é das estrelas vai um pouco além disso. É um livro divertido, capaz de nos fazer pensar um pouco na fragilidade da vida, no quanto tudo é fugaz, e que devemos, realmente, valorizar nossos momentos neste planeta - porque, quando menos percebermos, já éramos. Todos esses clichês juntos, mas é aí que entra outro pequeno diferencial: o livro não é um tratado sobre o carpe diem. É, mais aproximadamente, um canto para almas possivelmente repletas de dor, deixando-as mais leves e ternas. Claro que vai virar filme, claro que vai fazer rios de dinheiro e levar gente disposta a rir e chorar ao cinema. Conquanto o final, a seu modo, também me tenha parecido por demais abrupto, gostei do resultado, como um todo. É um livro interessante para todos aqueles que são adolescentes, seja cronologicamente, seja na alma: certos questionamentos não têm idade. Nem tempo.
Os Filhos dos Dias, de Eduardo Galeano

Os Filhos dos Dias, de Eduardo Galeano




Pesquisando sobre o acaso, cada vez me deparo com mais explicações possíveis e plausíveis. Há até um livro muito interessante sobre o assunto, O Andar do Bêbado, que se propõe a explicar essas forças aleatórias que fazem certas coisas ser o que são.

E foi por ler obras como Os Filhos dos Dias, mais recente livro do escritor uruguaio Eduardo Galeano, que não consigo entender o que torna este homem tão admirado no Brasil e em certos lugares da América Latina.

A premissa é interessante: o autor utilizou-se do formato calendário, e escreveu uma história (cada história tem uma página somente) para cada dia do ano. São relatos curtos, a maioria tendo acontecido naquele dia específico no calendário, e todas terminando com um questionamento ou reflexão. 

A sensação que o leitor tem é a de que o autor tinha um compromisso com sua editora, digamos algo como Dostoiévski, que foi ameaçado por seu editor e, se não entregasse uma obra dentro de "X" dias, não receberia mais um centavo em direitos autorais dali em diante, e pôs-se a escrever algo para cumprir um contrato. A diferença é que, no caso do velho Dosto, o resultado foi o clássico O Jogador, enquanto com Galeano, foi este livro que, francamente, não vale os minutos que se gasta lendo-o no banheiro.

O autor aparentemente foi ao site da Wikipedia, jogou lá as datas do ano, pescou historinhas que vão desde antes de Cristo até os dias de hoje e saiu usando o velho e bom Ctrl + C, Ctrl + V, dava um polimentozinho em cada história e terminava com uma dúzia de palavras que tanto serviam pra preencher espaço como pra não dizer coisa com coisa.

O livro é chato, maçante, e ao terminar, temos a nítida sensação de que o que tínhamos na mão nada mais era que um tremendo estorvo. O autor não consegue ser original em seus comentários, suas pseudo-reflexões são fracas, estapafúrdias, e o livro inteiro tem um tom letárgico, como se o livro tivesse sendo escrito à força.

A certeza que tenho é que, depois desse livro, Eduardo Galeano, nunca mais!


Pagando por Sexo, de Chester Brown

Pagando por Sexo, de Chester Brown





Até bem recentemente, eu era um leitor super preconceituoso em se tratando de HQs. Talvez porque sempre fui um desenhista frustradíssimo. Lembro das minhas inúmeras tentativas de desenhar para além das bolas e palitos, sem êxito. Provavelmente por isso, nunca fui leitor de quadrinhos de super heróis (e até hoje, desprezo essa onda de filmes de heróis, sendo a única excessão o Batman, que adoro e vejo todos).

Só que ao longo da vida, essa ojeriza se estendeu a tudo o que tivesse quadrinhos. Já na adolescência, ouvi pela primeira vez o termo "graphic novel", que vem do francês, e refere-se à romances inteiros contados através de quadrinhos. Aqui no Brasil, uma editora pioneira nesse segmento é a Conrad, que tem nos quadrinhos sua matéria de trabalho, e a partir daí outras seguiram, como a Companhia das Letras, que criou o selo Quadrinhos na Cia, e tantas outras.

Eu achava que as graphic novels eram uma forma de superficializar o romance, tornando-o mais acessível, com uma linguagem quase adolescente.

Quanta ignorância.

Descobri inúmeros quadrinhos maravilhosos, romances profundos, que levam à reflexão, à dor e ao prazer em iguais medidas (basta ler Daytripper, já resenhado neste blog).

E porque hoje sou um leitor voraz de quadrinhos foi que, ao vasculhar prateleiras da livraria onde sempre vou, me deparei com o título Pagando por sexo, de Chester Brown. Com prefácio de Robert Crumb, um dos papas dos quadrinhos. Gosto de Crumb, gosto do assunto dos quadrinhos, achei o volume gostoso de pegar... Resolvi levar.


Pagando por sexo são as memórias do autor, que após o fim de um relacionamento de vários anos, resolve não mais se envolver em relacionamentos de amor romântico. A verdade é que ele abre uma verdadeira cruzada contra a ideia de amor romântico em seu livro, e sai em defesa da prostituição como algo que deveria ser aceito normalmente, tanto quanto alguém aceita o fato de você dizer, Olha, vou ali comprar o almoço. Pra ele, deveria ser simples assim.

Chester Brown narra desde o final desse relacionamento, passando por cada uma das mulheres que ele pagou para poder aliviar seus desejos sexuais, até o momento final, quando ele volta à monogamia - mas por meios bem pouco usuais.

O romance é acompanhado de uma longa seção narrada, em que o autor sai em defesa da prostituição, rebatendo cada uma das possíveis críticas em relação ao assunto, e de apêndices e notas que têm também essa intenção.

O que achei muito interessante no romance, para além da qualidade inegável dos quadrinhos, foi a forma como o autor introduziu (sem trocadilhos, por favor) a história do amor romântico (que surgiu lá no século XII, antes disso só se casava por interesse financeiro), e como sua interação com amigos e familiares o torna um homem reflexivo e estudioso para defender suas ideias.

Não existe no livro nenhuma proposta doutrinária. Tudo o que o autor quer é fazer-nos refletir acerca do tema, que é mesmo bastante controverso. As seções depois do final do romance também têm o poder de nos levar a uma reflexão bem interessante.

Eu mesmo, que me considero um cara profundamente romântico, desses que acreditam na possibilidade de encontrar alguém com quem dividir toda uma vida, passando por altos e baixos juntos etc, não me deixei abalar pela força com que o autor defende a extinção de relacionamentos baseados na monogamia (ou na "monogamia possessiva"), como ele coloca. Porque acredito que sei diferenciar uma coisa da outra. O livro me abalou, sem dúvida, por outros motivos, mas não abalou a certeza daquilo em que acredito. Entretanto, acho importante a reflexão. Além de que, sim, é um romance gráfico para lá de interessante (e picante).

Em tempos de Cinquenta tons de cinza, nada como um Pagando por sexo para juntar-se às discussões acerca de um dos maiores tabus das sociedades, que são justamente as questões de ordem sexual. Um livro que merece ser lido.

Twice, música da banda Little Dragon - Diálogo com uma interpretação possível

Twice, música da banda Little Dragon - Diálogo com uma interpretação possível






(Esta crônica é melhor compreendida se lida após o clipe ter sido visto. Para vê-lo, clique no link)


Little Dragon é uma banda sueca à qual nunca fui apresentado formalmente. 
Ela veio parar na minha vida quando fui solicitado a interpretar o clipe acima. É uma música curta (apenas três minutos), mas o clipe traz uma miríade de interpretações possíveis.

Sabendo eu que toda obra de arte está sujeita e até, eu diria, fadada à subjetividade, fica aqui a minha contribuição a uma das leituras possíveis.

Trata-se de um vídeo lindo, que carrega em si muitas perguntas....

***

O quão tênue é a diferença entre o viver e o morrer? E qual o sentido desse espaço entre uma coisa e outra a que chamamos Vida?


Ninguém descobre uma resposta pronta pra tais questionamentos ao longo dessa jornada; ao invés disso, podemos descobrir várias respostas, enquanto tivermos tempo de nos fazer os questionamentos certos: dentre eles, o que viver realmente significa para cada ser que vive. E os possíveis desdobramentos entre estagnação e transcendência - ambos opções de uma vida, posto que temos livre-arbítrio.

A história começa com um esqueleto. Esse esqueleto representa a morte, dançando, tremulando, ela mesma cheia de vida - já que, ironicamente, a Morte não morre nunca. Vemos ao lado uma moça aparentemente ainda jovem conversando com um ser que se assemelha a um pássaro. Neste momento, compreendemos que a Morte se anuncia diante da Vida - como ocorre a cada momento, a todo instante.

A vida, que é essa coisa tão absurdamente frágil. Viver, que é escapar, diuturnamente, da morte.

Então a morte aparece apenas para mostrar-se presente, para que aqueles que têm vida saibam o valor intrínseco desse viver - e transcendam. Não como uma obrigação. Antes, como um convite.

A moça fora buscar ajuda em algo que pode ser um hospital - a necessidade de cura. Mas cura para o quê? Há remédio para a vida? Nos deparamos então com o pássaro - que pode ser ali a simbologia da imortalidade, através do pássaro imortal, Fênix - e que se predispõe a ajudá-la, e entrega a ela uma embalagem que em tudo se assemelha a um presente. E o símbolo da cruz vermelha, símbolo universal da saúde criado na Suíça e espalhado para o resto do mundo, demonstra que a ave imortal tinha interesse em restabelecer na moça a saúde - ela, que mortal era. Mas essa saúde é, tão-somente, o desejo de que ela aproveite a vida que lhe foi dada.

Fazendo uma reverência, a ave humildemente pede para que ela aceite o Maior Presente de Todos: a Vida! Com uma mesura (ao dobrar os joelhos), a moça agradece o presente e se vai. Sabendo que a moça estava fadada à morte, e sendo ela, a ave, designada a viver para sempre, ela chora pelos mortais, talvez pelos erros de percurso que nós, imperfeitos, cometemos, enquanto a moça segue o seu caminho. Ela vai então através do bosque (que simboliza tanto o acolhimento, por ser espaço fechado, quanto opressão, pelo mesmo motivo), e é então que chega a chuva - que, por sua vez, simboliza mudança. A água que vem para lavar a realidade tal como ela se encontra e levá-la embora, numa enxurrada purificadora, que leva fluidos ruins para deixar coisas outras no lugar.

Note-se o estado das árvores: ressequidas, sem folhas, sem frutos - o prenúncio da morte física.

Cansada de tanto caminhar e já sem forças para lutar, a moça recosta-se numa árvore. Mais do que simbolizar o descanso, esse recostar-se na árvore sem vida representa também o fim de uma jornada - o da jornada física - e o começo de outra.

É então que, numa outra cena, as árvores abrem espaço para o nada, e vemos a ave imortal voando à frente da moça, como a conduzi-la pelos campos oníricos da transcendência entre o que era e o que será: a transição da Vida para a Morte. 

E novamente a chuva - a compreensão de que a transição realmente está a acontecer, com algo indo e outra coisa vindo. E a Morte em cima de uma nuvem a recebê-la. Nesse momento, creio que trata-se de uma forma criada apenas para dialogar com os nossos pré-conceitos, retirando a ideia de que, numa nuvem, somente algo divino e etéreo poderia estar a nos aguardar. Não, é como se a música quisesse nos dizer, a Morte ocupa todos os espaços, e dentro da fragilidade da vida, temos que saber disso - e aceitar.

Voltando para o que realmente tem significado, o mundo dos que ainda permanecem vivos, a moça se deixa levar por uma música que está no ar para que ela, e somente ela (até porque só há ela na cena, a ave imortal já se recolheu, posto que já cumpriu o seu papel ao entregar à moça a Vida para que ela fizesse o que bem entendesse), possa ouvir. 

É quando nos deparamos com a mais bela cena de todas: no que a música toca, a moça se vê diante de uma elevação. Ao chegar praticamente ao topo, ela se depara com a Morte tocando flauta para ela, como o flautista de Hamelin, que seduzia os ratos do reino e os levava para onde quisesse, a Morte seduz a moça até onde ela está a tocar a canção. Nesse momento, ela compreende, com um misto de aceitação e surpresa, que ela elevou-se como ser, ela saiu de onde estava para um lugar mais alto (evoluiu espiritualmente), mas, como a vida é boa, como a vida é tão magnificamente boa, há o espanto. É então que ela solta o presente que a ave imortal dera para ela - a moça, então, abre mão da vida física, que rola ladeira abaixo. A Vida, insisto, essa coisa tão frágil que basta soltar para que se perca, segue então para onde a moça não mais pode alcançá-la, consciente que está de sua própria mortalidade (e também da sua evolução, da necessidade de desapegar-se da Vida para ir a algum outro lugar, rumo ao Desconhecido).

E como ela é apenas mortal - portanto, repleta de dúvidas, de medos, de anseios, ela estaca no meio do caminho entre o presente (a Vida que a ave imortal dera a ela para que a moça dela pudesse usufruir enquanto tivesse tempo), o Presente (o hoje, que se finda com o crepúsculo) e a certeza de que seu tempo estava chegando ao fim.

Sabiamente, é quando as cortinas se fecham, o que pode significar tanto que sim, ali foi o fim do espetáculo, quanto a opção para o espectador de imaginar o que ela pode ter escolhido, afinal.

Mas enfim, o que seria o "twice" (duas vezes) do título da música? A compreensão de que há aqui a Vida física, a vida de corpo, e temos a outra Vida - aquela através do espelho, a Vida do Outro Lado, o grande e eterno mistério. As duas vezes em que vivemos. 

E a verdade é que podem ser muitas mais. Mas essas duas vezes estão repletas de significados, porque são justamente a vida que vivemos aqui, e a vida que podemos ter após esta, que nos mostra as estradas que trilhamos.

E, ao final das contas, cabe a nós, e somente a nós, escolher o caminho da transcendência que desejamos seguir.  Se é que a desejamos.

Quando a saudade termina

Quando a saudade termina



Dia desses, dirigi-me ao aeroporto para esperar alguém que amo imensamente. Tendo eu chegado lá com quase uma hora de antecedência à chegada do voo (já que chegava de madrugada e eu tive medo de não despertar a tempo de chegar ao aeroporto, acabei acordando muito mais cedo, daí resolvi ir logo pra lá com um livro na mão e garantir que não deixaria de receber meu aguardado amor), sentei-me e pus-me a ler o livro que levara, Como ficar sozinho, do Jonathan Franzen. Ficar sozinho era a última coisa que eu queria ali, e logo eu percebi que não estava, por muitos motivos.

O primeiro deles era a pluralidade de pessoas ao meu redor. Logo ao sentar-me, duas pessoas se aproximaram e sentaram ao meu lado, uma delas tossindo muito, o que me desconcentrava da leitura. Antigamente, eu conseguia ler com o barulho de um ataque terrorista acontecendo ao meu lado, mas de uns tempos pra cá, só consigo ler ou escrever no mais absoluto silêncio. Coisas da idade. Mas divago... Essas mesmas duas pessoas passaram a conversar futilidades, enquanto também aguardavam alguém. Impaciente, e com medo de pegar o que quer que aquele rapaz tossindo tivesse a oferecer aos meus pulmões, levantei-me e fui para a frente do portão de desembarque.

Sem conseguir ler em pé com tanta gente indo e vindo, comecei a observar tudo o que me cercava: vi uma jovem a esperar ansiosamente alguém com quem encontrou-se logo em seguida, advinda de um voo anterior ao que eu aguardava, e dar-lhe um abraço apertado ainda através das placas de ferro de um metro e meio que separam os que chegam dos que esperam, vi uma avó brincar com seu neto, graciosa em suas caduquices. Vi um rapaz aguardando impacientemente alguém que certamente amava muito, tal seu estado emocional e nervosismo. 

Era gente de todas as formas e cores - um espetáculo rico em pluralidade.

(Lembrei-me imediatamente do programa que Astrid Fontenelle apresenta no GNT, que lida justamente com as peculiaridades das chegadas (e partidas). Um programa bem produzido, bonito de se ver, e que deve ter aumentado em muito as vendas de lencinhos de papel)

A palavra chegar, em português, advém do Latim PLICARE, que significa dobrar
Quando os barcos chegavam aos portos, usava-se a expressão plicare velam, ou seja, "dobrar, enrolar a vela". Não me admira, então, a ideia de que dobrar, ou enrolar a vela, seja exatamente a ideia de guardar

Quando o alguém que esperamos chega, dobramos a vela. Guardamos a pessoa dentro de um abraço, de um beijo carinhoso, de um aperto de mãos sincero, dentro de um olhar que registra o que a alma, e apenas ela, é capaz de enxergar: termina, ali, a saudade.

Foi quando compreendi que mais do que as partidas, que também são inerentes à vida, as chegadas é que marcam o começo de tudo. É o renascimento da fé, das certezas por vezes adormecidas dentro da gente. A chegada de um novo emprego, de uma surpresa, de um livro ansiosamente aguardado, de um amigo, um marido, uma esposa, um namorado, um irmão. São todas coisas que guardam, que encerram em si a ideia de que a vida é feita de luminosidade. A chegada de alguém ou alguma coisa que era esperada por nós cessa qualquer ideia de finitude ou temor, é como se, na vida, fosse introjetada ainda mais vida. É a certeza de que o que vale na jornada que fazemos enquanto aqui permanecemos, é mesmo o viver. E não existe nada mais extraordinário do que sentir-se (e ver-se) de braços abertos para receber o amor.

E, no meu caso, foi assim. Não fiquei de braços abertos, talvez pelo meu nível de ansiedade. Contudo, vi o amor chegar ao abrir de portas, e a luz adentrar na noite escura sob a égide da qual eu havia me dirigido até ali. Havia chegado, enfim. E foi lindo. E é assim que será, a cada novo dia que chegar. Se eu estava sozinho, já não estava mais.

Quando a saudade termina, é que começam os dias lindos.