Amálgama, de Rubem Fonseca



Em obra inédita, autor reúne 34 textos que são o mais do mesmo da sua literatura. Sorte nossa.


A obra que eu mais esperava esse ano, chegou. Confesso, sem auto-indulgência, que estava ansioso por esse livro desde que soube que 2013 traria nova obra de um dos meus autores favoritos.

Amálgama (Nova Fronteira, 160 páginas), mais recente livro de Rubem Fonseca, traz as velhas e boas características do autor: a profunda análise do caráter humano, a multiplicidade de nuances e vertentes que temos, a certeza de que, no fundo, nossa raça é execrável, e que poucas coisas, talvez nenhuma, nos salve de nós mesmos. A dura constatação de que estamos no limite de nós mesmos, apesar da capacidade que tínhamos (temos?) de sermos melhores (algo semelhante ao que faz Philip Roth).

Em seu novo livro, Rubem Fonseca narra, dentre tantas outras, a história de um pai que planeja matar o próprio filho por amor; uma mãe que pretende vender o filho que sua filha espera, assim que ele nascer, mas acaba tendo que desistir da empreitada; um entregador que utiliza-se de sua bicicleta de entregas para punir as pessoas que ele considera ruins (lembrando muito, embora em matizes mais simplificadas, o conto O Cobrador); um homem que, tendo concluído que não deve satisfação de sua vida a ninguém, resolve dar uma banana pra o que quer que as pessoas venham a pensar sobre ele; a história de um rapaz intrigado ao observar, de longe, que há um homem no parque que mata gatos afogados e decide fazer algo a respeito; a história de um assassino de aluguel que ainda tem algum escrúpulo.

E há também uma novidade: Rubem Fonseca, que diz que quase não lê ficção e prefere ler poesia, resolveu, dessa vez, incluir também alguns poemas. Claro, todos dentro dos temas que lhe são caros mas, ainda assim, poemas. 

Este ano, Rubem Fonseca fez 50 anos de carreira literária. É bastante tempo falando das mazelas que afligem o ser humano. Entretanto, eis aí uma fonte inesgotável: o que somos. Nos personagens de Amálgama, percebemos pessoas aparentemente comuns, mas cuja perspectiva de vida continua a ser, unicamente, apenas viver um dia após o outro. Não existe algo para além disso, porque a realidade que se impõe, a de que o real é igualmente efêmero, não produz em nós o sentimento de valorizar nada. Dignificar o Outro perdeu a razão de ser. A vida está cada vez mais banalizada, somos escombros de um prédio implodido, atesta Rubem Fonseca. E apesar de sermos muitos, viver é para poucos, posto que a maioria de nós apenas parece passar pela vida. 

Acabou-se a possibilidade de nos redimirmos. O que há é uma pletora que nos torna homens-cadáveres. E Rubem Fonseca consegue relatar cada vicissitude humana de forma magistral.

Como disse uma outra resenha sobre esse livro, na década de 60 e 70, a literatura de Rubem Fonseca tratava de mostrar as rachaduras no teto e nas paredes. Agora, ele se dedica a documentar as ruínas. 

E é exatamente isso. Para nossa sorte, ainda há quem nos abra os olhos. O que nos resta saber, é se ainda há tempo.

O amor que ousa dizer seu nome: uma homenagem à amizade

Turma do FLIPENCONTRO reunida


Alain de Botton, o popular filósofo suíço, afirma que viajar é uma arte. Até escreveu um livro sobre isso.

E, como toda arte, há aqueles que a executam com mais ou menos maestria; há ainda, simplesmente, aqueles que veem a forma de viajar do outro como uma orquestra sinfônica de Berlim, ou como uma orquestra de uma cidadezinha sem grande expressão. A viagem também está no olhar de quem viaja, dependendo de pra onde se vai, das pessoas com as quais se vai a algum lugar, da sensibilidade perceptiva.

Tendo ido à Fliporto (Feira Literária Internacional de Pernambuco) com o intuito de rever antigos afetos, conhecer pessoas com as quais só me correspondia, assim como de conhecer escritores com os quais tenho relação através de suas obras e ouvi-los discorrer a respeito de algum assunto, pude compreender a importância da amizade no contexto não apenas de uma viagem, mas da vida.

O grupo, composto de mais de vinte pessoas, se contarmos os agregados, germinou a possibilidade de um encontro durante o evento. E assim foi. Tendo nós nos conhecido pela internet e aproximados pelo amor aos livros, não poderia ter sido diferente. 

Assim, quero aqui registrar nominalmente meu apreço e meu afeto àqueles que, durante quatro dias, conviveram em diversos níveis de intensidade uns com os outros; e que sem dúvida, deixaram fincados no coração de cada um a força incomensurável da amizade.

Vou começar pelo grupo mais maravilhoso deste mundo, os queridos de Recife que nos receberam tão bem. E depois, em ordem aleatória.


Romero: obrigado por ter sido tão disponível o tempo todo (você queria até mesmo ir deixar-nos no aeroporto cinco da manhã!), por ser esse homem tão bem humorado, tão gentil e por ter nos acolhido tão bem. Foi também inestimável ter sido apresentado às suas pinturas, à sua arte e à delicadeza do seu trabalho. Você é um guia muito prestimoso, e sem dúvida, um amigo de alma grandiosa. Obrigado pelas risadas, pelos momentos compartilhados quando você tinha questões suas tão urgentes para resolver. Foste excepcional, e sei que tenho, em ti, um amigo.


Laura: obrigado por nos presentear com um dicionário de pernambuquês que não fica a dever em nada ao Kama Sutra (risos), por fazer a distribuição das camisas com "nossa logomarca", e por ter sido sempre tão gentil e companheira. Não convivemos tanto (bem sabemos que cada um de nós ia e vinha pra cima e pra baixo a todo instante, e alguns desencontros aconteciam), mas senti a sua generosidade, seu carinho e acolhida. Obrigado, mesmo!


Roberta: és essa menina-mulher deslumbrante. Você tem um sorriso capaz de pacificar países em guerra, é de uma energia e vitalidade sem precedentes; e ainda que com tanta coisa acontecendo paralelamente pra ti, não parou um só momento de se fazer presente. E sim, meu bem, você é muito, muito sexy! Linda, obrigado por tudo!

Jussara: que dizer dessa mulher linda, cativante, carinhosa e tão generosa? É, minha amiga, sei que sou "petiqueiro" (é isso mesmo?), mas é meu jeito, às vezes, de lidar com quem gosto ou amo. (Risos). Obrigado por ter nos acolhido tão lindamente, por esse coração que vale mais do que todas as mega-senas do mundo acumuladas, e parabéns pela família linda que você tem. Você tem uma energia tão gostosa, Jussara, que, embora abstrata, foi sem dúvida das coisas belas do nosso encontro.


Rosa: que dizer do ser humano com mais energia vital dentre todos? Que dizer da amiga há tanto tempo conquistada? Rosa, você é indescritível, e adjetivos não te alcançam. Sou muito grato por ter tido a oportunidade de ver-te mais uma vez (e que venham outras tantas!), sentir seu calor, a cor da sua amizade, a beleza da sua alegria que contagia a todos. E amizade é isso mesmo, esse contato estreito (de onde pode até sair faísca, é normal, contanto que não haja explosão!...), esse cuidado gostoso, e a promessa de que ali existe uma semente que gerará bons frutos. No nosso caso, sem dúvida temos todo um campo onde brotam lindas flores. E que seja sempre assim.


Jaziete: a preciosidade dos minutos passados contigo foram uma dádiva. Seu jeito suave, a tranquilidade do seu olhar, o respeito por cada palavra por ti proferida: sabedoria. É assim que meu eu chega a ti. Você é de uma alma repleta, você constrói tessituras que ampliam o sentido da convivência e da amizade. Espero, sinceramente, que nossa amizade seja próspera, porque tê-la por perto é como uma graça alcançada.


Jô Angélica: a minha graciosa surpresa! Jô, nem sei por onde começar a tentar fazer meu carinho por ti compreensível. Você, tal como a lagarta no casulo, abriu-se para mim como a borboleta que dali de dentro nasce, batendo as asas ampla, largamente, reconhecendo-se no mundo, predisposta a fazer aquilo para que nasceu: voar, conhecer novos horizontes. Refiro-me aqui, claro, ao horizonte da amizade. Ao fato de você ter se permitido, tão lindamente, alçar-se para o encontro conosco. Jô, que ser humano lindo você é. Tudo em você resplandece: sua voz firme, graciosa, seu jeito despojado e elegante, a força das suas palavras e atitudes. Jô, que sorte tenho eu em ter podido te presentear com algo, mais uma vez. Eu jamais sonhara que tu és como tu és, e recebi de ti o maior presente de todos: o acolhedor carinho da tua amizade. 


Suca: sempre te quis um bem virtual enorme. Sua inteligência e senso de humor sempre me arrebataram. Porém, quando nos vimos, diante de tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, não nos aproximamos logo. Aos poucos, pude ir compreendendo melhor o seu olhar, seus trejeitos, sua delicadeza tão singularmente bela. Foi de uma alegria tão indizível, te conhecer, que fiquei deveras com saudade. Obrigado pela amizade, e por ajudar a construir o caminho que, dentro do mundo virtual e fora dele, nos levou um ao outro.


Silvia: não te reconheci assim que te vi, no café da manhã. "Essa daqui é a Silvia", alguém me disse. E eu pensei que você fosse uma das donas da pousada. Aos poucos fui entendendo que você é a mulher da foto do Facebook. Também aos poucos, compreendi que você tem uma história bela e árdua, como são as histórias atemporais; e senti a sua força, sua aura suave, delicada e ao mesmo tempo, impávida: ali estava uma mulher forte, mas que não perdeu a doçura diante das mazelas do mundo. É assim que te vejo, e foi essa a verdade, ainda que minha, que se assomou em mim durante aqueles quatro dias. Você é uma mulher linda, Silvia, e fiquei muito grato pelos momentos de convivência.


Cristine: inicialmente, tive o impacto que você disse que todo mundo tem. Pensava: "Mas como é incisiva! Como é dura!" De fato, você não deixa por menos. Aos poucos, entretanto, descobri também uma mulher absolutamente doce (mais até do que imagina, talvez), generosa, e inteligentíssima. Você é dessas pessoas que se tornam cúmplices de alma, Cristine. Que ao tocar e permitir-se ser tocada, transforma o comum em sublime. E isso, por si só, já é muito.


Priscila: convivemos tão pouco, não foi? Mas eu percebia a sua gentileza, a sua simpatia e cuidado. Gostei imensamente de ter te conhecido, sei que valeu a pena refazermos o sorteio pra que você também estivesse entre nós, né? Obrigado.


Helena: tu te transformas num mulherão ao transbordar de tanta sensibilidade. Convivemos pouquinho, ainda mais estando nós em lugares diferentes na cidade... mas eu pude perceber, de observar, mesmo, que você é dessas cujo afeto é maior do que seu corpo, do tamanho da sua alma, e esta, não tem limites. Que bom que estás conosco.


Hira: Hira querida, como foi bom te rever! Você também faz parte dessas que, inicialmente, tem um semblante de quem tem autoridade pra mandar prender e pra mandar soltar (e ai de quem desobedecer!). Mas já na primeira vez que te vi, em Fortaleza, ao olhar pra você, aproximando-se da mesa, séria, e pensar justamente que você estava por demais séria, logo em seguida você se saiu com essa: "Que tanto abraço e beijo é esse? Eu também quero!" E aquele sorrisão abriu-se. Você sorri com a sinceridade de uma criança, Hira, e eu notei isso desde aquele dia. É muito bom compartilhar com você sua visão e conhecimento de mundo, sua sabedoria e suas opiniões, as mais diversas. Concordando plenamente ou não, o mágico é poder ouvir-te e descobrir, perceber, fazer a troca. Que venham os próximos encontros!


Lucila: mas você é mesmo uma "Ludmila Safada", né? Doida pra me pegar! (E até que me pegou mesmo, por uns 10 segundos!). Olha, não sei de onde você tirou que iríamos "bater os chifres, mas que iríamos acabar por nos entender". Acho que nos entendemos sem bater os chifres, não foi? Tudo bem que você queria muito e tanto, e eu, às vezes, estava aéreo, no meu mundinho autista. Mas sou assim mesmo, desse espírito de me deslocar para dentro de mim mesmo, e o mundo se perde lá fora... De todo modo, saiba: ter sido seu amigo secreto foi muito bom. Adorei. E adorei ainda mais poder conhecê-la, e você ter deixado eu apertá-la quando eu bem entendesse, que delícia! Da próxima vez quero morder também, viu? (Risos)


Henrique: que dizer da maior expressão de amizade, força, amor e sabedoria que a vida já trouxe até mim? Obrigado pelos dias de convivência em Olinda, onde aprendi - aprendo sempre - a ser um pouco melhor. Onde compartilhar um quarto se tornou também sinônimo da mais profícua relação de se dar mútuo, ao sabor das brincadeiras, boas conversas e garantia de bom humor. Saber que você existe nesse mundo torna a vida um lugar de coisas belas. Que não nos percamos nunca, meu querido, porque cada instante de convivência é também um instante da mais pura força e magia, para além da compreensão. Há esse encontro de almas que se locupletam e se regozijam com o sentimento mais verdadeiro, atemporal. Ter em você meu melhor amigo é a maior dádiva de todas. Um presente que se renova sempre na expectativa de te reencontrar. Ad eternum...


Que as próximas viagens possam me trazer ou me levar até cada um de vocês. 

Que a amizade, o amor, o desejo de compartilhar e a literatura continuem a nos unir.

E que venham os próximos capítulos!



Sangue Quente, de Claudia Tajes

Sangue Quente, de Claudia Tajes


Humor e sagacidade como canais para tratar de temas mundanos e tão caros a cada um de nós - mas sem a descartabilidade dos dias atuais.


Sempre que ouço falar de Claudia Tajes, seu nome vem associado ao adjetivo "engraçada". E isso me incomoda desde então. Não, isso nada tem a ver com uma possível ranzinzice deste que vos escreve. O problema é que essa palavra vem, invariavelmente, acompanhada da ideia de algo superficial e descartável. No Brasil, a ideia do riso ainda está muito atrelada a coisas do naipe dos programas de humor que passam aos sábados e domingos, e que vomitam mau-gosto, clichês, preconceito e bizarrices sem precedente em qualquer outra televisão do mundo. 

E olhe que Claudia Tajes também escreve para a TV. Mas quanto a isso, quem quiser que procure no Google.

Ouvi falar desta escritora pela primeira vez quando o livro A vida sexual da mulher feia começou a ficar famoso. Com um título desses, seria impossível não abrir um sorriso logo de cara ou, pelo menos, arquear uma sobrancelha, intrigado. Isso foi lá em 2005, e eu não pude evitar, a não ser procurar lê-lo.

De fato, a escrita de Claudia é leve, flui com a rapidez com a qual correm os nossos dias, cada vez mais dinâmicos. Mas não é uma bobagem.

Sangue Quente (L&PM, 136 páginas), que tem como subtítulo Contos com alguma raiva, já se entrega desde o título, como tem que ser numa literatura que se propõe incisiva: trata-se de um livro de contos (o primeiro da autora) e todos eles estão reunidos sob a égide do calor, do sangue latino que ferve nas veias. 

Os motivos são muitos: vão desde fins de relacionamentos, problemas de família, serviço ruim prestado por empresas telefônicas, as dificuldades de se gerenciar um negócio. Os personagens são muitos, e eles somos nós, as pessoas com as quais convivemos ou temos de conviver. Em 136 páginas, Claudia Tajes consegue reunir os mais diversificados tipos, e é precisamente aí que se encontra sua arte maior, e que a tornará duradoura: são histórias curtas, mas que dão a medida precisa do que é ser humano, com direito às nossas raivas do dia a dia, nossas dúvidas, angústias, medos. Sim, o livro é engraçado. Em alguns momentos, ri alto. Mas mais do que isso - e assim como nos outros livros da autora - o que temos em Claudia Tajes são homens e mulheres exercendo o seu direito (e dever) de ser gente, no sentido mais profundo da palavra. O direito de sermos canalhas, hipócritas, histéricos, apaixonados, ingênuos, atabalhoados, incompreendidos, mal-compreendidos... em última análise, falhos. Imperfeitos. 

O humor é utilizado para examinar a nossa própria solidão, (se somos o que somos, como não rir de tudo isso?) nossa inadequação perante o mundo, e nossa eterna busca seja lá pelo que for. A literatura de Claudia Tajes é capaz de mencionar Cassandra Rios, e também de ser tão contemporânea que chega a ser quase libertina. E libertária. 

Em algumas dezenas de contos curtos, somos transportados para nossas próprias vidas e levados a refletir sobre o que somos, o que temos diante e adiante de nós. Com o humor que lhe é característico, mas com o devido tom de forma a jamais banalizar o tema, a sensação, terminada a leitura, é a de que encontramos um livro repleto de vida. Repleto daquilo que somos, que nos torna humanos e que sim, nos dá direito a dar boas risadas, porque até que o último dia chegue, é mesmo preciso rir de si, da vida, do trágico. A força de sua literatura fica nas entrelinhas. A beleza e a graça, a cada virada de página.

Que venham os próximos.

Claudia Tajes

Noites de Alface, de Vanessa Barbara

Noites de Alface, de Vanessa Barbara





A dor da perda e o olhar bem humorado diante das trivialidades da vida


Quando a esposa de Otto morreu, as roupas ainda estavam pingando no varal. Essa imagem está lá, no livro, e de cara, numa ideia concretizada em algo pictórico, já antevemos a escrita de Vanessa Barbara, que faz um jogo onde entram o humor, frases poéticas e ideias que se unem a outras, fazendo-nos ter a certeza: através de uma escrita onde as palavras vão sendo sobrepostas, numa construção que só mais tarde leva a algum lugar, como num romance detetivesco, a escritora vai cativando o leitor não apenas para ler a página seguinte, mas igualmente, para se permitir ser transportado para um lugar quase bucólico, que na verdade, são dois: o lugar físico, através das descrições da vizinhança onde residem Otto e sua falecida esposa Ada, além de todo o grupo de personagens que os circundavam, e o lugar do Outro, que é também feito da dor da perda, mas também abre espaço para a leveza, as vicissitudes de uma existência comezinha, e para as complicações inesperadas que a vida traz.

Noites de Alface (Alfaguara, 168 páginas), é aparentemente um romance fragmentário. Cada capítulo leva o nome de um (ou mais de um) dos personagens, que convivem na mesma vizinhança. No capítulo em questão aquele (ou aqueles) personagens, naturalmente, terão protagonismo, embora não deixem de interagir com os demais. Assim, conhecemos um farmacêutico viciado em ler bulas de remédios e nos efeitos colaterais de cada medicamento, uma senhora esotérica e viajandona, um japonês ex-combatente de guerra que tem certeza que a duração da Segunda Guerra foi muito maior do que na realidade, uma datilógrafa que vive ligada e seus cachorros, um carteiro que faz suas entregas a esmo, e uma antropóloga casada com um marido que vive viajando (literalmente) e obcecada por esquimós. E o melhor: apesar de todas essas, digamos, peculiaridades, conseguimos crer que aquelas pessoas existem. De alguma forma, ali está aquela tia amalucada que cada um de nós temos ou tivemos, aquela prima que parece viver numa realidade paralela, aquela amiga solteirona que se joga no trabalho e na vida alheia como forma de preencher suas lacunas. É tudo vida real.

Toda essa gama de personagens, de uma forma ou de outra, acaba por tirar o sossego de Otto, que desde a morte de sua Ada, não quer sair de casa, nem lidar com a luz do dia. Sua vida esvaziou-se e, pra ele, é assim que tem que ser até o último dia. Não fosse a intervenção dos vizinhos, que vão, aos poucos, transformando seus dias, apesar de sua ranzinzice. 

E o título? Evidentemente, explicar o título é tirar do leitor o deleite de senti-lo fazer sentido durante a leitura. E é uma experiência que o leitor precisa ter. Um momento simples e caracterizado pelo bom humor que retrata justamente a beleza e a ternura de uma vida compartilhada. Um achado.

Com a proeza de uma escritora acostumada a refletir sobre aquilo que torna a vida esse gigantesco amálgama (Vanessa Barbara é cronista da Folha e do The New York Times, além de escrever uma crônica mensal no blog da editora Companhia das Letras e de ter um site onde publica crônicas sobre assuntos variados), Vanessa entrelaça as diversas tessituras por ela criadas, tornando cada parte um todo, e dando ao leitor, ao chegar à última linha, a convicção de que, em menos de duzentas páginas, cabem todo um universo.



Textos da autora -