Noites de Alface, de Vanessa Barbara





A dor da perda e o olhar bem humorado diante das trivialidades da vida


Quando a esposa de Otto morreu, as roupas ainda estavam pingando no varal. Essa imagem está lá, no livro, e de cara, numa ideia concretizada em algo pictórico, já antevemos a escrita de Vanessa Barbara, que faz um jogo onde entram o humor, frases poéticas e ideias que se unem a outras, fazendo-nos ter a certeza: através de uma escrita onde as palavras vão sendo sobrepostas, numa construção que só mais tarde leva a algum lugar, como num romance detetivesco, a escritora vai cativando o leitor não apenas para ler a página seguinte, mas igualmente, para se permitir ser transportado para um lugar quase bucólico, que na verdade, são dois: o lugar físico, através das descrições da vizinhança onde residem Otto e sua falecida esposa Ada, além de todo o grupo de personagens que os circundavam, e o lugar do Outro, que é também feito da dor da perda, mas também abre espaço para a leveza, as vicissitudes de uma existência comezinha, e para as complicações inesperadas que a vida traz.

Noites de Alface (Alfaguara, 168 páginas), é aparentemente um romance fragmentário. Cada capítulo leva o nome de um (ou mais de um) dos personagens, que convivem na mesma vizinhança. No capítulo em questão aquele (ou aqueles) personagens, naturalmente, terão protagonismo, embora não deixem de interagir com os demais. Assim, conhecemos um farmacêutico viciado em ler bulas de remédios e nos efeitos colaterais de cada medicamento, uma senhora esotérica e viajandona, um japonês ex-combatente de guerra que tem certeza que a duração da Segunda Guerra foi muito maior do que na realidade, uma datilógrafa que vive ligada e seus cachorros, um carteiro que faz suas entregas a esmo, e uma antropóloga casada com um marido que vive viajando (literalmente) e obcecada por esquimós. E o melhor: apesar de todas essas, digamos, peculiaridades, conseguimos crer que aquelas pessoas existem. De alguma forma, ali está aquela tia amalucada que cada um de nós temos ou tivemos, aquela prima que parece viver numa realidade paralela, aquela amiga solteirona que se joga no trabalho e na vida alheia como forma de preencher suas lacunas. É tudo vida real.

Toda essa gama de personagens, de uma forma ou de outra, acaba por tirar o sossego de Otto, que desde a morte de sua Ada, não quer sair de casa, nem lidar com a luz do dia. Sua vida esvaziou-se e, pra ele, é assim que tem que ser até o último dia. Não fosse a intervenção dos vizinhos, que vão, aos poucos, transformando seus dias, apesar de sua ranzinzice. 

E o título? Evidentemente, explicar o título é tirar do leitor o deleite de senti-lo fazer sentido durante a leitura. E é uma experiência que o leitor precisa ter. Um momento simples e caracterizado pelo bom humor que retrata justamente a beleza e a ternura de uma vida compartilhada. Um achado.

Com a proeza de uma escritora acostumada a refletir sobre aquilo que torna a vida esse gigantesco amálgama (Vanessa Barbara é cronista da Folha e do The New York Times, além de escrever uma crônica mensal no blog da editora Companhia das Letras e de ter um site onde publica crônicas sobre assuntos variados), Vanessa entrelaça as diversas tessituras por ela criadas, tornando cada parte um todo, e dando ao leitor, ao chegar à última linha, a convicção de que, em menos de duzentas páginas, cabem todo um universo.



Textos da autora -





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