Pagando por Sexo, de Chester Brown

Pagando por Sexo, de Chester Brown





Até bem recentemente, eu era um leitor super preconceituoso em se tratando de HQs. Talvez porque sempre fui um desenhista frustradíssimo. Lembro das minhas inúmeras tentativas de desenhar para além das bolas e palitos, sem êxito. Provavelmente por isso, nunca fui leitor de quadrinhos de super heróis (e até hoje, desprezo essa onda de filmes de heróis, sendo a única excessão o Batman, que adoro e vejo todos).

Só que ao longo da vida, essa ojeriza se estendeu a tudo o que tivesse quadrinhos. Já na adolescência, ouvi pela primeira vez o termo "graphic novel", que vem do francês, e refere-se à romances inteiros contados através de quadrinhos. Aqui no Brasil, uma editora pioneira nesse segmento é a Conrad, que tem nos quadrinhos sua matéria de trabalho, e a partir daí outras seguiram, como a Companhia das Letras, que criou o selo Quadrinhos na Cia, e tantas outras.

Eu achava que as graphic novels eram uma forma de superficializar o romance, tornando-o mais acessível, com uma linguagem quase adolescente.

Quanta ignorância.

Descobri inúmeros quadrinhos maravilhosos, romances profundos, que levam à reflexão, à dor e ao prazer em iguais medidas (basta ler Daytripper, já resenhado neste blog).

E porque hoje sou um leitor voraz de quadrinhos foi que, ao vasculhar prateleiras da livraria onde sempre vou, me deparei com o título Pagando por sexo, de Chester Brown. Com prefácio de Robert Crumb, um dos papas dos quadrinhos. Gosto de Crumb, gosto do assunto dos quadrinhos, achei o volume gostoso de pegar... Resolvi levar.


Pagando por sexo são as memórias do autor, que após o fim de um relacionamento de vários anos, resolve não mais se envolver em relacionamentos de amor romântico. A verdade é que ele abre uma verdadeira cruzada contra a ideia de amor romântico em seu livro, e sai em defesa da prostituição como algo que deveria ser aceito normalmente, tanto quanto alguém aceita o fato de você dizer, Olha, vou ali comprar o almoço. Pra ele, deveria ser simples assim.

Chester Brown narra desde o final desse relacionamento, passando por cada uma das mulheres que ele pagou para poder aliviar seus desejos sexuais, até o momento final, quando ele volta à monogamia - mas por meios bem pouco usuais.

O romance é acompanhado de uma longa seção narrada, em que o autor sai em defesa da prostituição, rebatendo cada uma das possíveis críticas em relação ao assunto, e de apêndices e notas que têm também essa intenção.

O que achei muito interessante no romance, para além da qualidade inegável dos quadrinhos, foi a forma como o autor introduziu (sem trocadilhos, por favor) a história do amor romântico (que surgiu lá no século XII, antes disso só se casava por interesse financeiro), e como sua interação com amigos e familiares o torna um homem reflexivo e estudioso para defender suas ideias.

Não existe no livro nenhuma proposta doutrinária. Tudo o que o autor quer é fazer-nos refletir acerca do tema, que é mesmo bastante controverso. As seções depois do final do romance também têm o poder de nos levar a uma reflexão bem interessante.

Eu mesmo, que me considero um cara profundamente romântico, desses que acreditam na possibilidade de encontrar alguém com quem dividir toda uma vida, passando por altos e baixos juntos etc, não me deixei abalar pela força com que o autor defende a extinção de relacionamentos baseados na monogamia (ou na "monogamia possessiva"), como ele coloca. Porque acredito que sei diferenciar uma coisa da outra. O livro me abalou, sem dúvida, por outros motivos, mas não abalou a certeza daquilo em que acredito. Entretanto, acho importante a reflexão. Além de que, sim, é um romance gráfico para lá de interessante (e picante).

Em tempos de Cinquenta tons de cinza, nada como um Pagando por sexo para juntar-se às discussões acerca de um dos maiores tabus das sociedades, que são justamente as questões de ordem sexual. Um livro que merece ser lido.

Twice, música da banda Little Dragon - Diálogo com uma interpretação possível

Twice, música da banda Little Dragon - Diálogo com uma interpretação possível






(Esta crônica é melhor compreendida se lida após o clipe ter sido visto. Para vê-lo, clique no link)


Little Dragon é uma banda sueca à qual nunca fui apresentado formalmente. 
Ela veio parar na minha vida quando fui solicitado a interpretar o clipe acima. É uma música curta (apenas três minutos), mas o clipe traz uma miríade de interpretações possíveis.

Sabendo eu que toda obra de arte está sujeita e até, eu diria, fadada à subjetividade, fica aqui a minha contribuição a uma das leituras possíveis.

Trata-se de um vídeo lindo, que carrega em si muitas perguntas....

***

O quão tênue é a diferença entre o viver e o morrer? E qual o sentido desse espaço entre uma coisa e outra a que chamamos Vida?


Ninguém descobre uma resposta pronta pra tais questionamentos ao longo dessa jornada; ao invés disso, podemos descobrir várias respostas, enquanto tivermos tempo de nos fazer os questionamentos certos: dentre eles, o que viver realmente significa para cada ser que vive. E os possíveis desdobramentos entre estagnação e transcendência - ambos opções de uma vida, posto que temos livre-arbítrio.

A história começa com um esqueleto. Esse esqueleto representa a morte, dançando, tremulando, ela mesma cheia de vida - já que, ironicamente, a Morte não morre nunca. Vemos ao lado uma moça aparentemente ainda jovem conversando com um ser que se assemelha a um pássaro. Neste momento, compreendemos que a Morte se anuncia diante da Vida - como ocorre a cada momento, a todo instante.

A vida, que é essa coisa tão absurdamente frágil. Viver, que é escapar, diuturnamente, da morte.

Então a morte aparece apenas para mostrar-se presente, para que aqueles que têm vida saibam o valor intrínseco desse viver - e transcendam. Não como uma obrigação. Antes, como um convite.

A moça fora buscar ajuda em algo que pode ser um hospital - a necessidade de cura. Mas cura para o quê? Há remédio para a vida? Nos deparamos então com o pássaro - que pode ser ali a simbologia da imortalidade, através do pássaro imortal, Fênix - e que se predispõe a ajudá-la, e entrega a ela uma embalagem que em tudo se assemelha a um presente. E o símbolo da cruz vermelha, símbolo universal da saúde criado na Suíça e espalhado para o resto do mundo, demonstra que a ave imortal tinha interesse em restabelecer na moça a saúde - ela, que mortal era. Mas essa saúde é, tão-somente, o desejo de que ela aproveite a vida que lhe foi dada.

Fazendo uma reverência, a ave humildemente pede para que ela aceite o Maior Presente de Todos: a Vida! Com uma mesura (ao dobrar os joelhos), a moça agradece o presente e se vai. Sabendo que a moça estava fadada à morte, e sendo ela, a ave, designada a viver para sempre, ela chora pelos mortais, talvez pelos erros de percurso que nós, imperfeitos, cometemos, enquanto a moça segue o seu caminho. Ela vai então através do bosque (que simboliza tanto o acolhimento, por ser espaço fechado, quanto opressão, pelo mesmo motivo), e é então que chega a chuva - que, por sua vez, simboliza mudança. A água que vem para lavar a realidade tal como ela se encontra e levá-la embora, numa enxurrada purificadora, que leva fluidos ruins para deixar coisas outras no lugar.

Note-se o estado das árvores: ressequidas, sem folhas, sem frutos - o prenúncio da morte física.

Cansada de tanto caminhar e já sem forças para lutar, a moça recosta-se numa árvore. Mais do que simbolizar o descanso, esse recostar-se na árvore sem vida representa também o fim de uma jornada - o da jornada física - e o começo de outra.

É então que, numa outra cena, as árvores abrem espaço para o nada, e vemos a ave imortal voando à frente da moça, como a conduzi-la pelos campos oníricos da transcendência entre o que era e o que será: a transição da Vida para a Morte. 

E novamente a chuva - a compreensão de que a transição realmente está a acontecer, com algo indo e outra coisa vindo. E a Morte em cima de uma nuvem a recebê-la. Nesse momento, creio que trata-se de uma forma criada apenas para dialogar com os nossos pré-conceitos, retirando a ideia de que, numa nuvem, somente algo divino e etéreo poderia estar a nos aguardar. Não, é como se a música quisesse nos dizer, a Morte ocupa todos os espaços, e dentro da fragilidade da vida, temos que saber disso - e aceitar.

Voltando para o que realmente tem significado, o mundo dos que ainda permanecem vivos, a moça se deixa levar por uma música que está no ar para que ela, e somente ela (até porque só há ela na cena, a ave imortal já se recolheu, posto que já cumpriu o seu papel ao entregar à moça a Vida para que ela fizesse o que bem entendesse), possa ouvir. 

É quando nos deparamos com a mais bela cena de todas: no que a música toca, a moça se vê diante de uma elevação. Ao chegar praticamente ao topo, ela se depara com a Morte tocando flauta para ela, como o flautista de Hamelin, que seduzia os ratos do reino e os levava para onde quisesse, a Morte seduz a moça até onde ela está a tocar a canção. Nesse momento, ela compreende, com um misto de aceitação e surpresa, que ela elevou-se como ser, ela saiu de onde estava para um lugar mais alto (evoluiu espiritualmente), mas, como a vida é boa, como a vida é tão magnificamente boa, há o espanto. É então que ela solta o presente que a ave imortal dera para ela - a moça, então, abre mão da vida física, que rola ladeira abaixo. A Vida, insisto, essa coisa tão frágil que basta soltar para que se perca, segue então para onde a moça não mais pode alcançá-la, consciente que está de sua própria mortalidade (e também da sua evolução, da necessidade de desapegar-se da Vida para ir a algum outro lugar, rumo ao Desconhecido).

E como ela é apenas mortal - portanto, repleta de dúvidas, de medos, de anseios, ela estaca no meio do caminho entre o presente (a Vida que a ave imortal dera a ela para que a moça dela pudesse usufruir enquanto tivesse tempo), o Presente (o hoje, que se finda com o crepúsculo) e a certeza de que seu tempo estava chegando ao fim.

Sabiamente, é quando as cortinas se fecham, o que pode significar tanto que sim, ali foi o fim do espetáculo, quanto a opção para o espectador de imaginar o que ela pode ter escolhido, afinal.

Mas enfim, o que seria o "twice" (duas vezes) do título da música? A compreensão de que há aqui a Vida física, a vida de corpo, e temos a outra Vida - aquela através do espelho, a Vida do Outro Lado, o grande e eterno mistério. As duas vezes em que vivemos. 

E a verdade é que podem ser muitas mais. Mas essas duas vezes estão repletas de significados, porque são justamente a vida que vivemos aqui, e a vida que podemos ter após esta, que nos mostra as estradas que trilhamos.

E, ao final das contas, cabe a nós, e somente a nós, escolher o caminho da transcendência que desejamos seguir.  Se é que a desejamos.

Quando a saudade termina

Quando a saudade termina



Dia desses, dirigi-me ao aeroporto para esperar alguém que amo imensamente. Tendo eu chegado lá com quase uma hora de antecedência à chegada do voo (já que chegava de madrugada e eu tive medo de não despertar a tempo de chegar ao aeroporto, acabei acordando muito mais cedo, daí resolvi ir logo pra lá com um livro na mão e garantir que não deixaria de receber meu aguardado amor), sentei-me e pus-me a ler o livro que levara, Como ficar sozinho, do Jonathan Franzen. Ficar sozinho era a última coisa que eu queria ali, e logo eu percebi que não estava, por muitos motivos.

O primeiro deles era a pluralidade de pessoas ao meu redor. Logo ao sentar-me, duas pessoas se aproximaram e sentaram ao meu lado, uma delas tossindo muito, o que me desconcentrava da leitura. Antigamente, eu conseguia ler com o barulho de um ataque terrorista acontecendo ao meu lado, mas de uns tempos pra cá, só consigo ler ou escrever no mais absoluto silêncio. Coisas da idade. Mas divago... Essas mesmas duas pessoas passaram a conversar futilidades, enquanto também aguardavam alguém. Impaciente, e com medo de pegar o que quer que aquele rapaz tossindo tivesse a oferecer aos meus pulmões, levantei-me e fui para a frente do portão de desembarque.

Sem conseguir ler em pé com tanta gente indo e vindo, comecei a observar tudo o que me cercava: vi uma jovem a esperar ansiosamente alguém com quem encontrou-se logo em seguida, advinda de um voo anterior ao que eu aguardava, e dar-lhe um abraço apertado ainda através das placas de ferro de um metro e meio que separam os que chegam dos que esperam, vi uma avó brincar com seu neto, graciosa em suas caduquices. Vi um rapaz aguardando impacientemente alguém que certamente amava muito, tal seu estado emocional e nervosismo. 

Era gente de todas as formas e cores - um espetáculo rico em pluralidade.

(Lembrei-me imediatamente do programa que Astrid Fontenelle apresenta no GNT, que lida justamente com as peculiaridades das chegadas (e partidas). Um programa bem produzido, bonito de se ver, e que deve ter aumentado em muito as vendas de lencinhos de papel)

A palavra chegar, em português, advém do Latim PLICARE, que significa dobrar
Quando os barcos chegavam aos portos, usava-se a expressão plicare velam, ou seja, "dobrar, enrolar a vela". Não me admira, então, a ideia de que dobrar, ou enrolar a vela, seja exatamente a ideia de guardar

Quando o alguém que esperamos chega, dobramos a vela. Guardamos a pessoa dentro de um abraço, de um beijo carinhoso, de um aperto de mãos sincero, dentro de um olhar que registra o que a alma, e apenas ela, é capaz de enxergar: termina, ali, a saudade.

Foi quando compreendi que mais do que as partidas, que também são inerentes à vida, as chegadas é que marcam o começo de tudo. É o renascimento da fé, das certezas por vezes adormecidas dentro da gente. A chegada de um novo emprego, de uma surpresa, de um livro ansiosamente aguardado, de um amigo, um marido, uma esposa, um namorado, um irmão. São todas coisas que guardam, que encerram em si a ideia de que a vida é feita de luminosidade. A chegada de alguém ou alguma coisa que era esperada por nós cessa qualquer ideia de finitude ou temor, é como se, na vida, fosse introjetada ainda mais vida. É a certeza de que o que vale na jornada que fazemos enquanto aqui permanecemos, é mesmo o viver. E não existe nada mais extraordinário do que sentir-se (e ver-se) de braços abertos para receber o amor.

E, no meu caso, foi assim. Não fiquei de braços abertos, talvez pelo meu nível de ansiedade. Contudo, vi o amor chegar ao abrir de portas, e a luz adentrar na noite escura sob a égide da qual eu havia me dirigido até ali. Havia chegado, enfim. E foi lindo. E é assim que será, a cada novo dia que chegar. Se eu estava sozinho, já não estava mais.

Quando a saudade termina, é que começam os dias lindos.
A biografia de Amy Winehouse, contada por seu pai

A biografia de Amy Winehouse, contada por seu pai

Capa da versão que li, norte-americana
Acabo de ler a biografia de Amy Winehouse através do olhar (muitas vezes complacente) do pai.

Trata-se de um relato verdadeiramente amoroso, de um homem que, sim, era o melhor amigo da sua filha (embora, como ele mesmo diga, não que ela sempre ouvisse seus conselhos), e que provavelmente precisava desse exercício catártico para enfrentar a dor da perda.

Amy, my daughter (numa tradução literal, "Amy, minha filha", ou na versão em português a ser lançada pela editora Record em agosto, num título escabrosa e desnecessariamente longo, Amy - a história da cantora contada por seu pai) começa com o pai narrando seus últimos momentos com a filha, que foram lindos, que estava realmente lutando pra se livrar do alcoolismo - e que estava a caminho de uma apresentação numa outra cidade quando, no dia seguinte, sábado, 23 de julho de 2011, recebeu a notícia de que sua filha estava morta. 

A partir daí, Mitch Winehouse passa a contar a história da filha desde o seu nascimento, até todos os anos que realmente importam para alguém que se interesse pela história de sua filha, ou seja: os anos de 2004 em diante, nos quais todas as agonias passadas pela família Winehouse e pessoas ligadas à ela foram exacerbadamente veiculadas pela mídia mundial. 

O que me levou a ler este livro, que flui muito bem, foi o meu interesse em saber o que o pai - justamente por ser o pai e eu saber que eles eram muito próximos - tinha a dizer sobre a vida da filha. Se você busca fofocas ou revelações bombásticas, esqueça. Este livro é uma longa e penosa declaração de amor de um pai para sua filha, disponibilizando para os interessados tudo aquilo que ele conseguiu enxergar - e ver - no decorrer dos quase 10 anos em que lutou, ao lado da filha, contra seu vício em drogas lícitas e ilícitas.

O livro é bem escrito, embora tenha uma série de repetições que poderiam ter passado na revisão, mas convenhamos: Mitch escreve bem. Escreveu um livro de trezentas páginas (em português parece que tem 380) que conduz o leitor, se não pela leveza dos acontecimentos, ao menos pela leveza da escrita, o que já é um alento.

Provavelmente, Mitch Winehouse sabe que será julgado pela mídia e pelos leitores como um pai que, embora sempre tenha estado ao lado da filha, também foi responsável, até certo ponto, por muitas das atitudes dela ao ver que, mesmo não tendo condições de agir por si própria, não interferia com mais severidade, mas que nunca - nunca - deixou de lutar pela vida do ser humano que mais amava no mundo.

A infância da cantora, as brincadeiras em família, os anos de estudo, as brigas, o divórcio, os primeiros usos de drogas, sua paixão obsessiva pelo homem que a apresentou às drogas, Blake Fielder-Civil, a tempestiva relação de Mitch com a família dele... a relação de tudo isso com a formação da personalidade que a cantora tinha e viria a ter - está tudo lá, de uma maneira bonita, pessoal e profundamente humana.

Curioso que sou a respeito da natureza do homem, daquilo que o move e o faz sentir e agir sobre o mundo, intrigado pelas questões do mundo das drogas e o poder que ela inflige àqueles que delas fazem uso, num nível psíquico e físico, e amante do jazz, tanto o clássico quanto o contemporâneo, não poderia deixar de ler a visão do pai sobre tudo o que houve. O livro é tão envolvente, que várias vezes, quando ela tinha uma melhora na sua relação abusiva com entorpecentes, eu cheguei a pensar, Ah, agora ela consegue!, como se eu não soubesse como tudo havia terminado.

O livro é seguramente emocionante, eu me vi de olhos marejados uma meia dúzia de vezes, não porque a narrativa seja melosa, mas porque há momentos em que você se pergunta: Como as pessoas ao redor dela conseguiram suportar tanto? Sem dúvida, porque havia amor. Outros motivos, cada qual sabe dos seus. Mas sobretudo porque havia amor. O que, sem dúvida, tocará no coração daqueles que sabem o que significa esse sentimento.

É um livro valioso para aqueles que gostam da cantora, um livro interessante para quem se interessa pelo objeto humano e, sem dúvida, imperdível para quem gostaria de entender mais o que transforma um ícone numa tragédia.

E, apesar de soar estranho, é, sim, um livro lindo.

Contém álbum de fotos inéditas do acervo da família. Todo o lucro das vendas será revertido para  a fundação Amy Winehouse, que apóia jovens com problemas com drogas, álcool e ajustes sociais.


Capa da versão brasileira, a sair em agosto



Intimidade, de Hanif Kureishi








O que significa ser íntimo de alguém? Que implicâncias e desdobramentos pode a intimidade trazer para as relações humanas?

Vivendo uma época na qual se faz odes à superficialidade, aos relacionamentos fugazes, à efemeridade dos sentimentos - onde, do copo em que se bebe água às amizades, tudo é descartável, Hanif Kureishi, em seu livro Intimidade (Companhia das Letras, 2000), não busca responder a essas perguntas, mas fazer uma análise do que são os relacionamentos humanos nos tempos que correm - e também indagações acerca do que vem a significar para cada um de nós a ativa entrega ao que existe de mais complexo e profundo no outro. 

O narrador e protagonista do livro, Jay (que pode muito bem ser uma intertextualidade com Jay Gatsby, do livro de F. Scott Fitzgerald, uma vez que ambos têm personalidades que não temem em agir sobre determinadas convenções), começa dizendo que, no dia seguinte, vai abandonar esposa e filhos, e não mais voltará. 

A partir daí, o livro passa a ser uma reflexão sobre essa questão, em que tudo se passa no curtíssimo espaço de tempo de 24 horas; uma vez que, no dia seguinte, sua afirmação inicial já terá que ter se cumprido.

Hanif Kureishi passa, através do seu personagem, a colocar diante de nós uma jornada reflexiva e confessional de um homem cuja vida foi moldada seguindo as regras de uma cultura baseada em sexo, farras e a quebra de tabus e convenções sociais. Desses seres humanos que, por prezarem tanto a liberdade, acabam cerceando a si mesmos de viver a vida plenamente. Jay não tem apreço pela moralidade nem pela religião, tripudia da ideia de estabilidade e se posiciona de forma rebelde diante de posicionamentos mais convencionais.

Casado há seis anos com uma mulher que ele não suporta mais, Jay começa então a pensar em Nina, uma amante que teve durante esses seis anos, uma espécie de Lolita para ele, e que o abandonou em dado momento, o que não o impediu de continuar a se envolver com outras mulheres. Jay é egoísta e irresponsável, e confessa coisas embaraçosas a respeito de sua vida de homem casado.

Ele é atraído pelo caos, pelo obscuro, pelos caminhos tortuosos, e não consegue mais lidar com a disciplina, prezo pelo decoro e responsabilidade de sua esposa. Dessa forma, ambos sofrem dentro de uma relação onde não há conexão alguma, embora não estejam sempre brigando tempestuosamente.

A preocupação de Jay é com a sua obsessão pela liberdade - e, até certo ponto, para com seus filhos. Talvez por esse motivo, ele busque trocar ideias com dois amigos. Victor, que já trilhou o mesmo caminho antes, e Assif, o oposto do primeiro: completamente fiel à esposa e aos ideais de um casamento, é consciente das dificuldades de uma relação, mas tem certeza de que fez a escolha certa e se mantém completamente equilibrado (dentro daquilo que é a forma dele de entender o que seja equilíbrio conjugal) na sua relação com a esposa. 

Embora Jay já tenha se decidido, sua consciência continua a dizer-lhe que sua ação terá consequências. Mas, não importando o que seu amigo Assif possa dizer, tudo o que ele consegue vislumbrar é uma vida repleta de sensualidade ao lado de outras mulheres, e nenhum vínculo afetivo. No fim das contas, ele se entrega a este ideal, sem se preocupar com mais ninguém - provavelmente nem com ele mesmo.

Através deste curto romance, podemos testemunhar a dissecação de um indivíduo completamente desiludido, que nunca se ajustou mental ou emocionalmente. Como muitos de sua própria geração (e certamente da seguinte), ele tende a ver o mundo com olhos menos complacentes, e mais sedentos pela quebra constante de convenções e barreiras. A confusão dos seus pensamentos, desejos e até ideologias políticas ficam evidentes durante todo o livro. 

Sua narrativa brutalmente honesta e degradante do passado e presente transmitem a mensagem de um certo desespero, associados ao espírito cansado, combalido e quebrado de um homem que sempre prezou pela emoção da velocidade na vida, mas que, no momento, tem uma existência estagnada. 

Dentro de um romance muito bem construído, notável em sua profundidade e complexidade de emoções, que vai e volta no tempo com destreza, encontramos a mente de um homem profundamente desorientado, que nos lembra que a vida pode tomar rumos absurdamente indesejados, mas que isso não é muito, quando compreendemos que, para nos sentirmos plenos, podemos tentar ser e fazer muitas coisas, mas que não devemos concretizar a maioria delas. Não por autocensura apenas, mas pela compreensão profunda e lenta, dessas que afundam na gente apenas com o passar dos anos, de que, embora plurais, nós, humanos, não funcionamos quando fragmentados. 

Às vezes precisamos ser lembrados disso, para que possamos achar nosso próprio espaço não apenas no mundo, mas no mundo que compartilhamos com aqueles cuja vida íntima faz parte também daquilo que somos.