Voar, voar, subir, subir... [Parte 2 - final]

Voar, voar, subir, subir... [Parte 2 - final]




Hora de voltar. Leve depressão, disfarçada numa dor de cabeça. Eu queria morar em Curitiba, mas a realidade gritava pra mim de longe. 


Retorno: Curitiba-Brasília

O voo deveria sair rumo à capital federal às 7:07 da manhã. 

Todos acomodados, aeronave lotada, agora era só esperar. 

7:10, e nem sinal de que o avião ia começar a se mexer. 

7:15, 7:20... 7:40. Barulhinho de microfone, seguido da mensagem.

"Bom dia, senhoras e senhores. Aqui quem fala é o comandante (com a situação posta, o tom de voz e o próprio comandante falando assim de cara, a mensagem era clara: lá vem merda!). "Devido a um problema de excesso de peso, o que pode interferir na performance da aeronave, solicitamos que sete passageiros voluntariamente queiram sair do voo e embarcar numa outra aeronave, provavelmente da empresa Avianca, que sairá meia hora depois do nosso". 

Tensão no ar. No ar de uma aeronave no chão, que fique bem claro.

As pessoas começaram a se entreolhar. Vários barulhos de solicitação de auxílio puderam ser ouvidos quase simultaneamente. Comissários iam de lá pra cá com copos d'água. Nova intervenção no microfone:

"Aqui é a comissária-chefe. Quero informar que somente pessoas com destino final em Brasília poderão se voluntariar, passageiros em conexão, não'.

Eu, que já estava tirando o meu cinto pra cair fora daquele avião (sabe-se lá qual era o verdadeiro problema), tive que me recostar na poltrona, frustrado. Hora de acender a minha luzinha. A própria comissária-chefe se aproximou.

"Mas o que é que está acontecendo? Nunca ouvi falar num problema desses. Qual é o risco?"
"Senhor, o que aconteceu foi que, de última hora, a companhia mudou a aeronave que faria esse trajeto, de modo que o peso que estava programado para a outra aeronave ficou muito grande para esta, impactando na performance do voo. Daí, estamos no processo de retirar parte da bagagem e dos passageiros. Mas já conseguimos o número de voluntários, já já estamos de partida".

Só que não se tratava de pressa em sair. Mas de não ter pressa em cair. Resignei-me. Eu não podia me voluntariar mesmo, então, a sorte estava lançada.

Perto de 8h, o voo partiu. De Brasília, onde chegamos duas horas depois, eu deveria sair da aeronave "com problema de performance" e ir para uma outra, que me traria de volta a Fortaleza. Lá chegando, novo aviso no microfone (acho que aquela tripulação tem vocação pra palco, só pode): "Atenção, senhoras e senhores" (ou pra circo, porque todas as informações começavam desse jeito), "... os passageiros que tem como destino final Fortaleza e Recife, por favor, permaneçam na aeronave".

Com quase a totalidade dos passageiros em pé se espremendo no corredor, os poucos que iam para Fortaleza ou Recife buscavam se identificar, naquele momento difícil em que você busca a solidariedade dos que estão enfiados na mesma bosta. Uma espécie de conforto, uma solidariedade entre estranhos. 

Logo, fomos avisados que não faríamos mais conexão, mas escala, e que não iríamos mais direto pra Fortaleza. Agora, íamos antes pra São Luís, no Maranhão. Eu, que no dia anterior mencionara aos meus companheiros de viagem que não tinha como prioridade conhecer a terra de Sarney, tive que botar meus pés por lá e sobrevoar a região, a contragosto. 

Ironias da vida modo ON. 

O que era ruim, poderia piorar, certo? Sim, claro que poderia.
Não demorou muito, de repente vários homens uniformizados começaram a entrar no avião. Eram todos de um time de futebol chamado Sampaio Corrêa, que parece ser do Maranhão. Todo o time, junto da ala técnica, estava dentro desse voo. Com menos de três minutos, uns cinco já estavam cantando um pagode cuja letra é irreproduzível, enquanto o restante dos passageiros fingia dormir (parece que isso serve pra esconder a vergonha), soltava aquele famoso sorrisinho amarelo, ou fazia cara de raiva, tentando se concentrar em alguma outra coisa. 

O que é fato é que todo esse pessoal, que certamente não tem grana pra fretar um avião só pra eles e fazer o furdúncio que quiserem, resolveram tirar a calmaria de quem estava no avião só desejando chegar a seus destinos. Por diversas vezes, a tripulação teve que fazer uso do microfone para pedir que eles parassem de pular de poltrona pra poltrona, que se comportassem e que desocupassem o corredor. A comissária-chefe, por pouco, não perde a esportiva.

Durante um momento de turbulência, com raios e tudo o mais, aqueles gremlins não paravam de batucar e cantar em coro músicas com letras cada qual mais.... peculiar, digamos. 

Ao chegarmos em São Luís e já decidido a eu mesmo sair da aeronave se aquele time fosse até Fortaleza, algum santo intercedeu por mim e tirou-os todos de lá. 

Estava difícil querer existir depois de tanta loucura a bordo daquela aeronave. Minha cabeça dava voltas. Tudo que eu queria era vencer o próximo voo, que teria a duração de 56 minutos, de acordo com o comandante. E chegar. E ao chegar, partir de volta. 

Fortaleza virou um front. E eu nunca fui preparado pra guerras do caos urbano. Ainda morro no asfalto, mesmo. 

Eu, que tanto reclamo de voar.
Voar, voar, subir, subir... [Parte 1]

Voar, voar, subir, subir... [Parte 1]


[Para ler ao som de Byafra e seu O Sonho de Ícaro - aqui. Porque nada como essa música kitsch pra ilustrar os momentos descritos abaixo]





Malas prontas.

Tudo certo para conhecer Curitiba, uma capital que até então era um mistério pra mim. A ideia era aproveitar ao máximo as horas de folga numa cidade razoavelmente cosmopolita e de temperatura amena. Mas essa crônica não é sobre a cidade. É sobre o movimento feito para chegar lá, e para sair de lá. Conquanto não tenha sido vítima do tal "caos aéreo", que, ainda que não esteja resolvido, anda razoavelmente amenizado; vivi situações de voo, numa única viagem, que me foram absolutamente inesperadas. E é de fatos surpreendentes que se faz uma viagem. Mas da próxima vez que quiserem me surpreender no voo, abandonem um livro nas poltronas ao meu lado, larguem algo muito bom pra eu arregimentar pra mim. Surpresas como as mencionadas abaixo, quero passar longe das próximas vezes.


Fortaleza-Rio - duas horas da manhã.


Adentrei na aeronave achando tudo nela muito velho. Digo, o design do avião me parecia... antigo. Quando entrei, a impressão se confirmou quando reparei nas poltronas, no espaço para guardar a bagagem de mão... e piorou quando vi o espaço entre minha poltrona e a da frente. Eu, que não sou alto, me antevi numa lata de apresuntado. Só que até aí, nenhuma novidade. Quem nunca ouviu falar sobre esses pequenos detalhes, seja nos aviões da Gol, da TAM, da Varig, Vasp ou da Transbrasil? (É, reclamação vem de longe). 


Resolvi pegar o livro que estava lendo (Elogio da Madrasta, do Mario Vargas Llosa), acendi a luz e mandei ver. É bom relembrar o horário: duas da manhã. Costumo estar dormindo nesse horário e, sem demora, meu cérebro resolveu me lembrar deste detalhe...


"... solicitamos imediatamente a presença de um médico munido de seu CRM!", ouvi uma voz bradando firmemente em um microfone. O avião, até então, seguia em paz. Tudo escuro, tranquilo: calmaria. Acordei achando que estava sonhando. Quase deixo o livro cair no chão, mas me recompus depressa e o apanhei a caminho do chão. Parece que há mesmo uma emergência a não sei quantas centenas de metros de altura.


Quando olhei para o lado, vi um amigo meu, que tinha ido no mesmo pequeno grupo que eu, em pé no corredor do avião, parado. Ele não se mexia. E a esposa dele estava grávida. Em menos de três segundos, eu já tinha várias hipóteses na minha cabeça: a esposa dele estava precisando de ajuda, e ele, apesar de ser médico, não conseguia fazer nada e precisou pedir auxílio. Ou então ele estava esperando pra ver se outro médico tomaria a frente da situação. Ou quem estava passando mal era ele mesmo. Ou algum dos pilotos (já que eu não ouvia nenhum tipo de comoção, nenhuma balbúrdia, nada. Aquilo só podia estar acontecendo dentro da cabine dos pilotos!). 

Em seguida vi este meu amigo indo, junto com um comissário de bordo, até uma poltrona mais à frente. Passou pela minha cabeça que o avião ia cair. Depois eu disse a mim mesmo, Não, idiota, claro que não. Ninguém passando mal derruba um avião. Aí lembrei a história que um conhecido me contou que alguém num voo em que ele estava certa vez, acabou morrendo. E tiveram que levar o cadáver sentadinho até o fim da viagem, já que ninguém podia mexer. Que situação.

Ocorre que soube, em poucos minutos, que aquela que ouvi já era a terceira chamada de pedido por médico. E que a pessoa que passou mais tinha tido algo como um ataque de epilepsia - que ele nunca tinha tido antes - mas que agora estava aparentemente voltando ao normal e não ia morrer por causa daquilo. Não naquele momento, pelo menos. E muito menos derrubar um avião. 

Chegamos no Galeão, no Rio de Janeiro, exaustos. Obviamente, todos os passageiros acabaram por acordar e ficar acompanhando, atentos, o que se passava. O estado de tensão era enorme, e a impressão, ao desembarcar no Rio, era a de que eu havia sido triturado.

A espera para o próximo voo foi de mais de duas horas. 


Rio de Janeiro-Curitiba - por volta de 9h da manhã


Completamente estropiado, eu e mais os quatro que foram comigo aguardamos o voo seguinte na sala de embarque. Este foi mais tranquilo. Alguma turbulência, e só. O sono continuava a me perseguir. Inesperadamente, neste avião dava até pra esticar melhor as pernas. E quando a cidade apareceu ao meu redor, senti a alegria se avolumando. Eu estava, enfim, no céu.