Tempo de escola (O tempo, de novo)


Não raro, me pego pensando na questão da finitude. Da minha, da de todos que me cercam, dessa inevitabilidade, e da aceitação que tenho deste fato, pois que é impossível sobrepujá-lo. 

É difícil, para muitos, compreender a minha visão das coisas, mas a morte para mim não é um fim, é parte de um ciclo, e embora eu não queira ir embora tão logo, não a temo. Quando eu sentir que for minha hora de recebê-la em meu amplexo, nos abraçaremos firmemente, sabendo eu que daquele abraço somente um se desvencilhará do outro e permanecerá o mesmo. 

Há alguns dias, fazendo algo que raramente faço, mas que às vezes se faz necessário, fui ao shopping com uma lista de coisas para resolver. A ideia era precisamente esta: entrar, resolver o que tinha para ser resolvido e ir embora, já que o ambiente de shopping centers, pra mim, é execrável. 

Entre uma loja e outra, uma esquina e outra, a surpresa: avistei, do lado oposto ao qual eu caminhava, uma ex-supervisora de uma escola onde estudei na infância. Ela estava sendo empurrada por uma mulher bem mais jovem, numa cadeira de rodas. O rosto meio desfocado, os cabelos ralos e grisalhos, mas ainda assim, altiva, como sempre fora em minha lembrança dos tempos de escola. Pensei na mesma hora: ninguém escapa do tempo. Lembro-me daquela mulher com o olhar ferino. Com raiva por alguma traquinagem, ela fixava o olhar no acusado e com o dedo em riste fazia até Hitler se comportar direitinho. Pelo menos é assim que ela está no meu imaginário.

Pois foi mais um templo que tombou. 

Na mesma semana, fui a uma livraria que costumo frequentar. Enquanto eu esperava minha vez na fila onde as pessoas ficam para colocar livros em papéis de presente, olhei em volta e vi outra pessoa dos tempos de colégio. Uma senhora que fora coordenadora da mesma escola, mas ela ficava responsável pelos alunos do ensino médio. O mesmo tipo de roupa, o mesmo corte de cabelo. Mas o olhar... ela sempre tivera um olhar doce, sereno. Minha memória evoca a figura de uma senhora firme, austera, mas que trazia alguma ternura no olhar. Agora, seu rosto parecia cansado, seu olhar, perdido. Lembrei-me que, há uns três anos, ela perdeu uma filha, que fazia sua residência em medicina num outro estado, num terrível acidente de carro. 

Então compreendi que ali estava não apenas o peso da idade, mas do tempo como um todo, do tempo com os acontecimentos que ele traz, e que se fazem refletir de tantas formas no corpo e na mente. Pouco tempo depois, sua outra filha, apenas um pouco mais nova do que a que falecera, chegou e ficou perto da mãe. Seu olhar também me pareceu um pouco quebrado. Eram os semblantes de duas sobreviventes.

Foi pensando nisso, e na tal coincidência de ter visto essas duas pessoas dos tempos de escola, que comecei a lembrar do muito que passou e do pouco que ficou daquele período.

Sempre que a vida me trazia para o lado de cá, aquela era a escola para onde ia, todos os dias. Onde fiz grandes amigos, que, como a maioria dos "grandes amigos" da infância, se esfacelam com o tempo. Onde me descobri como homem e ser humano, como profissional. 

Revisitei mentalmente todos os corredores, lances de escadas e salas das quais lembrava - e eu lembro de quase todas. Lembrei-me de algumas aulas, da absoluta inutilidade prática da maioria delas, mas também de professores marcantes, de momentos de dúvida e dor, de lágrimas e sorrisos, porque é dessas coisas, tão comezinhas, que se compõe o tecido da vida.

Pensei naquelas duas mulheres como símbolos do caminho da vida, sempre o fim, sempre a extinção, porque esta é a coisa mais certa enquanto respiramos. Conquanto ainda vivas, suas vidas já não vicejam, já não trazem mais o orvalho inerente à flor aberta no dia seguinte à serena chuva que caiu durante a noite. 

A melancolia se deu não pela lembrança de um tempo que não volta - e que eu não faço questão que volte. Infância passou, dou graças e não olho pra trás com um pingo de saudade - mas pela certeza de que o fim, nem sempre, significa um novo começo. 

Às vezes um fim é apenas isto: o fim da linha, do pó ao pó, a lembrança, com ou sem saudade.

E foi no vislumbre dessas duas mulheres que, mais uma vez, eu me vi confrontado com a minha própria mortalidade. E eu, que não tenho como ter saudades de mim mesmo, me adianto em ir vivendo, da forma como eu entendo que seja a felicidade, para que, com um pouco de sorte, nos minutos finais, eu não me veja repassando minha vida com a melancolia do cair das folhas de outono.

Compreensão - conto






Agora que todos tinham compreendido, sem nenhum resquício de dúvidas, que Jason estava morto, decidiram reunir-se em um bar. O fato de que eles compreendiam o que havia acontecido não significava que eles podiam aceita-lo. Ou mesmo compreende-lo por completo. O que eles tinham agora era a prova de que ele não estava mais entre eles, até aí, entendiam. Por que ele resolvera tirar sua própria vida era uma questão completamente diferente, e isso seria provavelmente um eterno enigma para todos eles.
Eles chegaram um por um, os olhos ainda marcados pela dor, olhares que não sabiam exatamente onde se fixar. Alguns, tentavam sorrir; outros não se importavam com essa conveniência social. Eles concordavam em estar lá apenas pela memória que compartilhavam de quem Jason Worth havia sido para eles, e nada mais que isso.
Susan deu início aos que mais tarde chamariam de “a conversa”, mas isso não poderia estar mais distante da realidade. Ela havia sido a melhor amiga de Jason, e daquele momento em diante, ela se dava conta de que a vida tinha de prosseguir, ainda que para sempre um pouco pior do que ela jamais vislumbrara.
“Então... – ela disse, tomando fôlego – Eu gostaria de agradecer a todos vocês que se disponibilizaram para se fazer presentes aqui hoje. Sei que alguns fizeram um enorme esforço para vir, pelo que agradeço. Sei que a situação é complexa, árdua. Eu perdi um amigo – meu melhor amigo. Outros perderam seu esposo, pai, colega de trabalho, amante… O que não podemos nos permitir perder é a esperança. Eu não acredito nessa bobagem de que ele está em um lugar melhor, em um lugar cheio de luz, amor, ternura. Penso que essas coisas ou você atinge em vida ou nunca mais. Não se pode dizer onde diabos ele está, mas uma coisa é certa: ele não está aqui, e é por causa da nossa dor que nos reunimos.”
“Você acha que seremos capazes de falar sobre isso? Catarse em grupo seria algo bom, uma vez que a única coisa que a maioria de nós tem em comum aqui é Jason, que por acaso não está nem aqui para compartilhar esse algo em comum?” – Evelyn, sua ex-esposa, disse friamente. Ela tinha problemas com Helen, a mulher com quem Jason estava casado quando resolveu partir antes de todo mundo.
“Se não conseguirmos colocar questões pessoais de lado num momento como este, o que afinal isso diz sobre nós mesmos, com esse comportamento de crianças que foram proibidas de brincar no playground?” – Carl questionou. Ele não conhecia bem os outros, exceto Helen, mas sabia que talvez fosse a voz neutra no meio da tormenta que ele via se aproximar, e foi por isso que ele se manifestou. Ele achava que precisava fazê-lo. Jason e ele haviam trabalhado juntos por muitos anos, ele precisava daquele diálogo para tentar digerir o assunto, assim como para fazer jus à memória do colega. Eles se amavam, e nada poderia fazê-lo entender o que houve de verdade.
O silêncio se estabeleceu à mesa. Até que a última pessoa envolvida nessa história decidiu dar seu recado.
“Parece-me que uma conversa aqui, nesse momento, é impossível. Que vergonha à memória de meu pai. ‘Percebe esse ambiente em que você foi criada, Sarah?’, ele diria. Eu só posso enxergar que há muitas cicatrizes do passado, e a coisa mais necessária aqui – falar sobre sua própria forma de encarar a dor, procurar uma mão amiga num momento de necessidade – está indisponível agora. Que triste. Mesmo assim, compreensível. Nós somos todos muito diferentes, com formas de enxergar determinados acontecimentos de forma absolutamente particular. Muito tempo já se passou, mas vocês ainda parecem ter muitas questões pessoais para resolver. Provavelmente seria melhor se elas foram deixadas sem resposta, pessoal. Do que adianta, a esse ponto? Portanto, eu tenho uma sugestão a fazer: já que não conseguimos conversar, por que não escrevemos? A ideia é a seguinte: sugiro que todos nós escrevamos uma carta para ele. Podemos falar sobre nossa dor, expressar nosso sofrimento como se estivéssemos falando diretamente com ele. Além do mais, o processo torna as coisas mais simples para todos os envolvidos. A outra parte da ideia é cada um pegar o endereço do outro e, terminada a carta, mandaremos cópias para cada um, de modo que terminaremos por saber o que cada um de nós pensa e sente de uma forma que não cause constrangimento nem dor aos outros, que não ressuscita nenhum fantasma do passado, e ainda abre um canal para que possamos dizer o que realmente desejamos. Concordam?
Concordaram. Papéis e canetas foram retiradas de bolsas e sacolas. Endereços foram anotados, e depois de um curto aceno de cabeça ou sorriso, todos foram para suas casas com o intuito de realizar suas tarefas.


                                                                       ***

Meu amado filho da puta,


Sempre achei você egoísta. E no fim das contas, você acabou cometendo o ato mais egoísta de todos, o que só prova que eu estava certa. Eu não vou desperdiçar meu tempo aqui questionando suas motivações, ou mesmo se você as tinha. Deveria ter, ainda que você fosse um homem sem dívidas, não parecesse ser ou estar infeliz ou deprimido, tinha uma família amável e afetuosa... Então por que, me pergunto, você simplesmente desistiu? Por outro lado, não seria legítimo, não seria um direito que todos nós temos, o de desistir? Algumas pessoas desistem de fumar, outras, de um emprego, de suas famílias, de velhos hábitos. Outros desistem de si mesmos, e assim, decidem acabar com tudo desistindo de suas vidas. Me parece injusto, parece estranho e obscuro, porque fomos todos deixados no escuro, e não acho que um dia compreenderemos sua atitude. Mas era uma decisão sua, Jason, e como sua mais antiga e melhor amiga, é meu dever compreendê-lo.
Eu disse a mim mesma incontáveis vezes que eu não levaria para o lado pessoal. Você não desistiu de mim – ou de Evelyn, Helen ou Sarah... Nem de ninguém. Sabe o que você jogou fora? O que você tinha o direito máximo de jogar for a, algo que pertencia apenas a você, e a ninguém mais: sua vida.
Você se lembra de quando nos conhecemos, Jason? Quando nossos pais nos apresentaram no meu aniversário de cinco anos? Você tinha um ano a mais que eu e já se sentia como se fosse o rei do pedaço, como um cão que tem que urinar em todos os cantos para dizer aos outros que estamos em seu território.
Entretanto, eu não me importei. Aquela festa era minha. Eu era o centro de todas as atenções, você era só um ator num papel coadjuvante... Eu não poderia prever, contudo, que você seria o maior personagem da minha vida. Não importava quantos namorados eu tivesse – e Deus sabe que eu não tive tantos quantos poderia ter tido – não importava quantos parentes e amigos estivessem ao meu redor, foi você, Jason, que esteve sempre lá durante todas as trajetórias da minha vida. E nós permanecemos juntos por trinta e seis anos. Isso não te parece incrível? Fomos amigos por mais tempo do que muita gente vive, Jason! Claro, meu amigo egoísta, você sempre teve sua própria maneira de enxergar as coisas, e foi precisamente isso que fez você abreviar uma amizade que certamente duraria mais de sessenta anos.
Você foi amado, Jason. Você é amado. Você sabe quantas pessoas no mundo podem ouvir estas palavras e de fato sentir que são amadas sem um só segundo de desonestidade? Não muitas. Não muitas, meu amigo. E você sabia que nosso amor era a coisa mais perfeita que já foi concebida. O amor sem demandas, sem preocupações, sem mentiras. Se isso não é Deus no seu estado mais puro, então Deus realmente não existe.
Como ser humano, jamais poderei obter as respostas que quero, para que eu possa compreender o que fez você pular daquele décimo andar numa tarde tão bonita, às vistas de todo mundo. Mas como amiga, eu sei apenas que devo compreendê-lo: eu aceito o que você fez, e jamais direi que você não tinha o direito de fazê-lo. Você, certamente, tinha.
O que não vai minimizar a sua ausência aqui, seu puto. Nunca, nunca.

                                                        Amarei você até o fim,


                                                                                              Susan.

                            ***

J. –

Eu poderia estar aqui dizendo coisas horríveis sobre você, mas não vou. Não porque eu não quero que você pense coisas ruins a meu respeito. Eu silenciei muitas vezes quando éramos casados simplesmente porque tinha medo do que você pensaria, mas quando Sarah surgiu com essa excelente ideia, eu disse a mim mesma: agora é a hora de me vingar! Agora vou dizer tudo que ficou entalado durante todos esses anos, vou cuspir tudo!
Contudo, sua presence é ainda muito forte, J. O silêncio me arrebata, e todos os meus planos de dizer o que eu quero permanecem dentro de mim, e eu sei que aqui essas palavras ficarão para sempre; como um câncer, me devorando de dentro pra fora, um desconhecido em silêncio.
Você sabe a dor que me causou quando me deixou pela Helen. Minha vontade era de vê-lo morto. E agora que você de fato está morto, eu não faço ideia do que realmente queria. O que eu sei de verdade é que está tudo frio e vazio aqui dentro, como tem sido desde o dia que você saiu da nossa casa. A única diferença é que agora o frio será permanente. Nos tempos de antigamente, você pegava a Sarah na minha casa, eu via você, apertava a sua mão, sentia seu cheiro. Você sorria pra mim, eu sorria de volta pra você, você dava as costas e ia embora, de mãos dadas com Sarah. Por muitos anos eu queria que aquela mão fosse a minha mão, embora eu soubesse que minhas mãos não seriam mais abraçadas pelas suas. Nunca mais.
Por que você teve que se matar, J.? A Helen estava te fazendo infeliz? Você estava mortalmente doente? Você foi tão idiota, J. E tão jovem. Como é que eu vou perdoá-lo pelas coisas que você me fez? Como é que eu vou te perdoar por ter me abandonado pela segunda vez? Você acha que eu posso superar mais essa? Não posso, J. Minha vida acabou da primeira vez. E acabou de novo, agora. Como um ser humano é capaz de imputer tal destino a outro? Pelo menos eu não sou covarde, como você. Eu continuarei vivendo, mesmo que na maior parte do tempo eu esteja apenas metade viva. Ou talvez você estivesse certo. Qual o sentido em viver quando a vida parece não ter mais sentido algum? Eis algo que eu devo considerar, em algum momento pelas estradas da vida. Por enquanto, tudo o que eu sinto é essa dor imensa no peito. É porque era nele que você habitava, e onde você não mais faz morada, e não mais fará. Eu não tenho como suportar isso.
Vá se foder, J.  

                                                Evelyn.

                        ***

Meu amado imortal –

        Como posso eu começar a explicar o inexplicável? Como jamais serei capaz de justificar para mim mesma, e para os que me interpelarem, o que você fez a si mesmo e, por conseguinte, a nós?
        Passo os meus dias me perguntando: você sofreu? Foi dolorido? O que passou pela sua cabeça durante sua queda da varanda, até chegar ao solo? Você se arrependeu durante os poucos segundos que levou até você atingir o chão? Você pensou em mim? Por que você fez o que fez? Foi por causa de mim? Eu estava fazendo algo errado? Ou foi simplesmente algo que você se sentiu impelido a fazer? Você simplesmente estava lá na varanda e se perguntou como seria se sua vida acabasse no pátio lá embaixo, se as pessoas sentiriam sua falta, se a queda seria alguma espécie de símbolo para os que ficaram... Sim, meu amado, às vezes eu acho que você apenas se sentiu tentado a cair, simples assim. Pelo menos isso torna as coisas mais fáceis pra mim.
        Você ainda lembra da primeira vez que nos vimos? Foi tão bonito, ver você no Central Park, lendo um volume com todos os contos da Virginia Woolf. Tempos depois, nos diríamos que Virginia nos uniu, e não nossas “essências desrespeitosas e maléficas”, como sua ex-esposa coloca a questão. Ambos éramos pessoas que precisavam de uma companhia verdadeira. O que quer que tenha nos colocado lá, naquele momento, o fez para que fôssemos um todo, completos, sem rachaduras, para que pudéssemos ter nossas existências justificadas e dignificadas. Agora também me passa pela cabeça que a Virginia nos separou...
        Se há algo de que sentirei falta, amor, é o fato de que não o terei aqui para ver seu cabelo ficando lentamente branco, de ouvir sua voz cantando no banheiro – e das piadas que eu fazia sobre isso – , de sentir seu cheiro, seu toque, sua forma de encarar a vida... Não vou mais ter seu beijo de boa noite, nem vê-lo mais adentrar pela porta da frente com aquele sorriso. Não era eu que ia mencionar uma coisa da qual sentiria falta? Percebe? É impossível mencionar uma coisa apenas. Ou todas as coisas na verdade o tornam único. Sim, certamente é isso.
        Continuarei a luta, entretando. O que não significa, amado, que eu seguirei em frente. Que eu um dia superarei isso. Meu coração e minha alma se esvaíram para a água que corre na sarjeta. Por um instante, me revoltei: como você pôde me abandonar? Como você pôde desistir do nosso amor? E mais do que tudo: por que, em nome de Deus, Jason? Era o que eu costumava pensar. Mas não é uma pergunta que eu deva responder. Provavelmente nem para você responder. É apenas a realidade, e é isso que às vezes ela nos faz. Como o que está fazendo a mim agora, drenando minhas forças vitais para lutar contra o que eu tenho que lutar.
        Agora, tudo o que sei é que estarei aqui até que não estarei mais, quando, então, eu estarei com você. Que seja breve.

Eternamente sua,


Helen.

                                               ***

Jason, meu amigo,


            Sua filha veio com essa ideia de escrever pra você, e eu não faço ideia de como realmente escrever cartas, mas todos concordamos em fazer isso, e eu estou aqui, fazendo o que esperam de mim. Não é isso o que nós todos tentamos fazer, o que é esperado da gente?   
            Todo mundo no trabalho sente a sua falta, cara. O que diabos foi que houve, meu irmão? Você era sempre só sorrisos, fazendo todo mundo rir no escritório. Jamais poderíamos imaginar que algo assim aconteceria. Pelo menos, não com você. Alguns de nós ainda estão tontos. Eu inclusive. Por que você nunca me contou que estava com problemas, Jason? Poderíamos ter sido mais do que apenas colegas de trabalho, cara. Digo, nós éramos amigos, mas talvez eu pudesse ter te ajudado... Nossa. Até a Marlene anda chorando pela sua morte, no escritório. Aquela puta que fala de todo mundo e fez com que a Joan fosse demitida mês passado. Parece que mesmo nela ainda restam sentimentos. As coisas têm caminhado devagar por lá, meu amigo. Você nos motivava. Você nos deu uma força completamente necessárias em tempos sombrios. Onde é que você está agora, cara?
            Tentei te entender e descobri que não dá. Você sempre se gabava da sua família maravilhosa, você tinha um dos salários mais altos da empresa, você fazia as coisas que curtia... A única coisa que posso concluir é que nem mesmo todas essas coisas podem garantir felicidade e alegria. Mas se essas coisas, que parecem ser essenciais à vida não te eram suficientes, então o que te faltava? Talvez você estivesse tão para além da vida, talvez você fosse tão maior que a vida propriamente dita, que não conseguia viver sob sua própria pele. Tanto faz, cara. As lágrimas já começaram a escorrer pelo meu rosto. Preciso parar de escrever isso.


Porra, cara, a gente ainda tá tão perdido.

Carl.

                                                           ***

Querido pai

            Levei 23 anos para chamar você de “pai” sem me repugnar. Somente agora, após a sua morte, eu me sinto à vontade para chama-lo de pai e lamento não tê-lo feito nos últimos 22, desde que comecei a falar.
            Eu ainda me lembro vê-lo tentando fazer com que fôssemos mais próximos, fazer com que nos apegássemos mais, que demonstrássemos mais carinho. Mas haviam as dificuldades familiares, o fato de que você e a mãe estarem sempre discutindo.... Isso me fez deixar o sentimento de “família” de lado. Eu amo você, e eu amo a mãe, apesar do seu deplorável estado mental, às vezes. Sei que vocês se divorciaram porque chegou uma hora em que você não conseguia mais suportar o comportamento dela. E eu entendo tudo isso. Sei que quando fazemos tudo o que pensamos ser possível para amar alguém, mas só um dos lados está tentando fazer dar certo, ao invés de ambos, a melhor solução é seguir caminhos separados, como fizeram. Mas você também tem de me compreender. Como eu poderia me aproximar de qualquer um de vocês, vendo-os gritando e brigando e dizendo todas as coisas que ouvi vocês dizerem em minha presença? Seria humanamente impossível, pai. Por isso foi que me agarrei somente aos meus amigos. Eles sempre foram minha verdadeira família. Porém, agora que perdi você, entendo melhor o que são os vínculos familiares, agora que sei o que significa perder um pai. Havia amor, pai, um amor emocionalmente distante, mas você foi amado.
            Outra coisa que jamais entenderei é você ter nos privado de tudo aquilo que poderíamos ter nos tornado, de tudo o que ainda poderíamos fazer. Não podemos dizer que não estávamos tentando. Sei que você estava tentando arduamente compensar o tempo perdido. Sabíamos que jamais seria a mesma coisa, afinal de contas, você perdeu a oportunidade de ser um pai quando dos meus primeiros passos: deixou de me colocar no colo, me ensinar a andar de bicicleta, no que acreditar quando eu terminasse meu primeiro namoro, e até no primeiro beijo que eu dei num garoto.
            Então, quando eu lhe disse que o amor não era uma opção, que não escolhemos aqueles que amaremos, você esteve presente para mim, mais forte do que nunca. Você me abraçou forte e disse que era o pai mais feliz do mundo. Disse que não havia nada que eu não pudesse resistir e lutar, que o fato de que Lucy e eu estávamos juntas só fazia você me amar mais. Você me dizia essas coisas enquanto me abraçava, com as lágrimas lhe escorrendo pelo rosto, e eu estava lá, paralisada diante da sua reação positiva, quando pensei que iríamos nos distanciar. Mas não, pai, daquele momento em diante eu tinha um pai de verdade, e eu sabia disso. Isso foi há quatro anos, e eu e Lucy ainda estamos juntas. Temos uma bonita relação, pai, uma da qual você sempre afirmou se orgulhar e que certamente continuaria lhe orguhando. O amor acontece entre pessoas, independente de seus gêneros, conforme você me ensinou.
            Mas então, veio a surpresa.
            Noite passada, ao organizar as gavetas que você deixou, encontrei sua carta para Helen, pai. Você dizia que não poderia viver sem ela. Que ela era a mulher que você amava, aquela que você cuidaria durante toda a sua vida, e até além disso. Como eu planejo que seja entre mim e Lucy.
            Não me pareceu uma carta de despedida, mal tinha seis linhas, e estava por terminar. Corri para o telefone e liguei para Helen, perguntando-a se ela sabia dessa carta não terminada, e por que você dizia aquelas coisas para ela. Ela me contou que havia dado início a um tratamento quimioterápico na semana anterior. Era leucemia, foi o que me disse. Nem pude acreditar. No fundo do meu coração, eu sei que você não fez o que fez somente por causa da doença de Helen. Você seria covarde se tivesse se matado por conta disso. Ela me disse que as células cancerígenas se espalharam, mas que ela vai continuar lutando. Eu sei que ela vai.
            Tenho esperança de que tudo chegue logo ao fim. Não sei o que quero dizer com “fim”. Tudo o que sei é que o tempo vai passar, papai, e você continuará a ser meu pai. Há o Amor... e há a Vida, no caminho. Mas podemos deixar de acreditar? Não, não podemos. Sua lembrança permanecerá dentro de mim, pai, e eu sei que você jamais morrerá enquanto estiver aqui, dentro de mim.
Obrigada por ser meu pai.


Sarah.
Stephen King, oito anos depois

Stephen King, oito anos depois

Quando se tem trinta e poucos anos, ao olhar para trás pode-se ter a impressão de que apenas alguns anos se passaram, ou de que uma vida inteira, de certa forma, ficou atrás de si, tal é a dinâmica em que se vive hoje.

Às vezes parece-me que trinta e poucos é a adolescência da fase adulta da vida. Essa incipiência que prediz o que será, mas que por enquanto é apenas um "parece-ser". 

Ao longo do tempo, na minha formação como leitor, muita coisa boa e ruim foi lida, muita coisa que me ajudou para criar o leitor que hoje sou - assim como o professor, o amigo, o dono de opiniões próprias, o homem. Sem arrependimentos. Olho para a quantidade de livros que tenho e que já li, e me dou conta de que a maioria das minhas horas de esbórnia foram gastas entre o que estava lendo e o que queria ler, o livro seguinte, a página seguinte. 

No meio de todo esse universo, há um escritor, dentre tantos outros, que sempre esteve comigo, mesmo quando não estava na minha cabeceira, e é dele e da experiência de lê-lo que quero tratar hoje.

O primeiro livro do Stephen King que peguei pra ler foi A hora da zona morta, e eu devia ter uns  dez anos. Nunca antes eu tinha lido nada que me absorvesse tanto. E olha que este romance tem um pano de fundo meio político, e embora essa seja hoje uma das minhas paixões, naquela época, isso seria algo que tornaria o livro mais confuso e lento aos olhos de uma criança. E lembro que tornou, mesmo. Eu entendia pouco essa parte, mas prossegui porque a história em si era maravilhosa.

O interesse pelo autor, até então um completo desconhecido pra mim (quem não era, quando se tem dez anos? Pedro Bandeira ou Monteiro Lobato, no máximo), adveio do filme Cemitério maldito, que eu havia assistido com a minha irmã em alguma noite após nossos pais terem ido dormir. Ali, de olhos vidrados, apareceu uma informação: "based on the novel by Stephen King". Calculei, do alto da minha sabedoria, que aquele homem deveria ter escrito a história na qual se baseava aquele filme. Como naquele tempo minha memória era até boa, o nome ficou guardado.

Daí que, quando minha mãe me levou para a biblioteca do trabalho dela, aquele nome me saltou aos olhos assim que o vi, e peguei o primeiro livro dele que minha mão tocou (naquele ponto, qualquer um servia, afinal).

Depois veio O cemitério, baseado no já mencionado filme. A partir daí, intercalando com outras leituras, li outros clássicos do autor, como O iluminado, e tempos depois, À espera de um milagre, uma das obras mais emocionantes que já li na vida.


Dessa maneira os anos foram passando, com os livros do autor adentrando a minha vida de alguma maneira, sempre me seduzindo pela prosa bem urdida, personagens bem construídos e pela trama extremamente intrigante. 

Aí, em 2006, li Cell (Celular), assim que o livro foi lançado. Achei-o fraco. Bem fraco. Nunca gostei de histórias de zumbi, e aquela não me cativou. King havia mudado ou algo havia mudado em mim?

Nunca respondi a essa pergunta (embora eu soubesse a resposta desde sempre: nem eu era mais o mesmo como leitor, nem ele o mesmo jovem de vinte e poucos anos que escrevera Carrie, a estranha, lógico). Nunca me importei de verdade com minha auto-provocação. O certo é que o tempo passou.

Foram longos oito anos de inverno. Sempre muito prolífico, King publica pelo menos um livro por ano. E eu sempre o compro, se não no mesmo ano, no ano seguinte, quando consigo adquiri-lo por um preço melhor. Acumulei várias obras dele, portanto.

Até que, este ano, ganhei Doctor Sleep de presente. A tão esperada continuação de O iluminado, finalmente materializada diante de mim. Resolvi, então, que quase uma década depois, eu retornaria ao King. 

E foi quando eu compreendi, verdadeiramente, que ninguém tem um sobrenome desses à toa. Não vou dizer que estes anos todos sem ler uma obra do autor fizeram bem a mim, por eu agora poder fazer um julgamento de valor com "mais propriedade" ou algo que o valha. Absolutamente. Provavelmente eu deveria ter continuado a lê-lo. Mas foram tantas e tão extraordinárias as descobertas nos últimos anos, com outros autores chegando à minha vida e eu recebendo-os de braços abertos, que o preconceito por ele ser um "autor best-seller" me fizeram torcer o nariz e refutá-lo, apesar de saber que um dia, em algum momento, eu retornaria para sua obra (daí a razão de eu continuar comprando seus livros).

Doctor Sleep, ainda sem tradução para o português, é uma sequência genial para um romance clássico. Comparações têm havido, e haverão sempre. Como o próprio autor comenta numa nota após o livro, sua escrita mudou ao longo dos anos, e a verdade é que hoje é bem mais difícil assustar as pessoas do que nos tempos kitsch dos anos 80. 




Ler Stephen King, contudo, continua a ser um momento de fruição. O ato da leitura por si mesmo já encerra essa característica. Enredados pelas intempéries da vida, nós, amantes da literatura, sabemos o poder que um bom livro tem. Com Stephen King, entretanto, o sentido da leitura ganha outros parâmetros. Quem conhece o autor, sabe da sua tendência a ser verborrágico, por vezes. D'outras tantas, os leitores consideram seus finais bastante pífios. O que eu tenho a dizer sobre isso é: a literatura não é um rio que desemboca no mar. A literatura é um oceano que se derrama e se espalha pelo todo, por tudo, e em lugar nenhum. Não há finais ruins: há finais diferentes daqueles que você gostaria. E, se ele se alonga, às vezes, sua dita prolixidade apenas ajuda na construção dos personagens e da trama. É como ele constrói a trama para o leitor: quem achar ruim que vá ler gibi.


Pegar um livro de Stephen King também não significa que você vai ler um "livro de terror". Suas tramas vão muito além disso, e sua obra, bastante vasta, fala por si só. Quatro estações, por exemplo, é um livro composto por quatro novelas que deram origem a três filmes: Um sonho de liberdade, O aprendiz e Conta comigo. Nenhum deles, filme de terror. Ao contrário. Filmes poéticos, que falam da amizade, da ressurreição, da superação dos próprios medos, traumas e limites, e da capacidade de escapar de situações extremas.

Leia sua obra sem fazer pré-julgamentos, dispa-se de preconceito, e você encontrará um autor para amar. Percebo que, desta vez, não o abandonarei por tanto tempo. Se porventura voltar a passar algum tempo sem lê-lo, será por um período breve. Agora, quero dedicar-me a descobrir o que ainda não li. Longo inverno novamente? Jamais.

Acredite: Stephen King será lido daqui a muitos e muitos anos. Será estudado em cursos de literatura de grandes universidades, e sem dúvida, permanecerá entre nós mesmo quando não estiver mais neste lado da vida.