Vitória Valentina, de Elvira Vigna









Há alguns anos, tive um choque ao ler Daytripper, dos cartunistas brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá. Até então, eu tinha verdadeira ojeriza àquilo que se convencionou chamar de "graphic novel", ou romance gráfico: o escritor cria uma trama, geralmente inédita (digo isso porque há também muitas adaptações de romances consagrados), e une a imagens que podem, ou não, ser também criação do escritor.

Foi a partir do mencionado Daytripper que vieram em seguida Fun Home (Alison Bechdel), Pagando por sexo (Chester Brown), A máquina de Goldberg (Vanessa Barbara) e muitos outros. Finalmente eu havia entendido como, sob muitos aspectos, a união de palavras + imagem poderia dar um resultado tão sui generis.

Qual não foi minha surpresa, então, quando me veio parar nas mãos o mais novo trabalho da Elvira Vigna, escritora que descobri em 2010 com o romance Nada a dizer

Elvira é dessas escritoras cuja obra tira o nosso chão. Pegue qualquer livro dela, e você será chacoalhado. Todos são romances pouco convencionais. Ler Elvira Vigna é saber que nada é o que parece; têm-se a impressão de estar num jogo de espelhos. A narrativa vai, volta, volta mais ainda, corre lá pra frente - e o leitor vai montando os pedaços e construindo os sentidos. Quando tudo se encaixa, a certeza que fica é que quem determina muito do que está ali, impresso sobre o papel, é o leitor. Porque é exatamente assim com a vida real: você faz a sua leitura diante dos fatos. Sofrimento, prazer, delírios, tesões, pancadarias e assassinatos: tudo depende do olhar, e cada olhar é regido pelo que há dentro do olhar de quem olha, e pelo que há fora, e isso muda quando quem olha sou eu, você, o Zé ou a Elvira Vigna.



Vitória Valentina (editora Lamparina, 128 páginas) não poderia ser diferente disso. O romance vai e volta no tempo, é construído com pedaços de um quebra-cabeça e aos poucos vai adquirindo corpo e sentido(s). Começa com uma tragédia numa favela: um casal mata um outro casal de vizinhos para roubá-los. Só que na fuga eles não encontram sorte melhor e também morrem num acidente de moto. Os filhos dos casais, (Carla) Vitória Valentina e Nando, terminam por ficarem amigos e crescem juntos. Nando é negro, é gay, e pra lutar contra seu medo atávico de motos, resolve ser motoboy. Carla torna-se professora, mas também trabalha como uma espécie de "babá-professora" pra ganhar mais uns trocados. E Nando, para complementar a sua renda, vende fotos de interesse para portais da internet. Nando e Carla tornam-se cúmplices, unidos pela força de uma enorme amizade construída a base das adversidades pelas quais passaram e passam na favela. Acontece que um dia Nando vê uma entrega de dinheiro, que sai das mãos de um empresário até então sem máculas e vai parar nas mãos de um traficante. Como fator complicador, temos o fato de que o dono do portal de notícias resolve armar um plano para pegar empresário e traficante em flagrante, só que o plano dá errado, claro, e é aí que os protagonistas têm que buscar usar da sagacidade e resiliência pra sair da enrascada. Nesse ínterim, surgem o desejo, a abnegação, a tolerância consigo mesmo e com os outros.



Num texto afiado repleto de humor e perspicácia, Elvira Vigna critica esses valores cada vez mais em voga na nossa sociedade, como o consumismo, a força do poder econômico que oprime os que dependem da sua vontade, e um libelo contra o machismo, e a favor da liberdade do ser e de ser, tudo isso numa junção perfeita entre texto e imagens em preto-e-branco que, como a própria autora define, são imagens "sujas". Um deleite para os olhos, mesmo que muitas vezes representem aquelas velhas questões sociais que continuam aí, pra quem quiser ver, e que continuam doendo naqueles que ainda não se "icebergdificaram".

O livro é curto, delicado e profundo, como tudo o que sai de dentro dessa autora que existe para tirar a literatura brasileira do marasmo, e que deveria ser muito mais reconhecida e lida neste país. Um dia será, mas enquanto esse dia não chega, temos a sorte de ter uma escritora de tal envergadura sempre criando, inventando e colocando para o mundo não as suas verdades, mas seus questionamentos e suas indignações. E é por isso que devemos ler Vitória Valentina. É por isso que devemos prestar muito mais atenção na arte desta escritora sem precedentes.


http://www.vigna.com.br - site da autora


http://www.lamparina.com.br -  site da editora que ajudou a trazer a Vitória Valentina ao mundo.
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2 Comentarios "Vitória Valentina, de Elvira Vigna"

  1. Sempre penso em ler Elvira Vigna, mas os livros me pareciam ter temáticas longe de meu interesse. Entretanto, amo uma literatura de tirar o nosso chão. Muito obrigada pela dica!
    Abraços.

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    Respostas
    1. Pode ter certeza que os livros da Elvira têm essa capacidade, Nina. Pegue o "Deixei ele lá e vim" ou "Nada a dizer", por exemplo... e se prepare!

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