Flor do deserto: o nascimento de Vênus





"Todo dia ela faz tudo sempre igual", canta Chico em seu "Cotidiano".

E é mesmo assim. Costumo rechaçar incisivamente quem me diz que odeia rotina. Como se pode odiar a rotina, sendo que ela se faz necessária à vida de qualquer ser humano? Imagine se um dia você dorme à noite e trabalha pela manhã, no outro, você dorme pela manhã, trabalha à tarde e estuda à noite, no outro estuda à tarde, trabalha à noite e por aí vai. O corpo da gente enlouqueceria, e em poucos meses, seríamos os próprios zumbis de qualquer série de sucesso. A rotina é essencial para qualquer ser da espécie homo sapiens. Não quer rotina? Seja um peixe. Uma tábua de passar. Assim, você nem vai saber os dias que passam. Rotina é essencial, o que não é essencial é a mesmice. E são duas coisas completamente distintas.

Quem compreende que a rotina faz parte da vida, é capaz de jamais viver um único dia da pasmaceira que a mesmice traz. Isso porque, com o senso adquirido de que antes de tudo somos um animal que tem de acatar os limites impostos pela sua própria condição, começamos a tentar acalentar a vida de modo a percebermos a peculiaridade de cada momento. E, assim, embora tenha-se que seguir a demanda dos dias, pode-se percebê-los de forma diferente. E isso é um olhar que, para quem não nasce com ele, não se desespere!, é um exercício diário. Basta tentar, e começar a ver beleza onde antes só havia gente passando e carros furando o sinal vermelho.

É aqui que entra a tal sensibilidade que faz a vida valer a pena.

Dia desses, saía eu de casa para mais uma aula. O sol parecia borbulhar em cada poro, as pessoas agoniadas em toda parte; uns tão cansados que o andar chegava a ser quase um arrastado, outros apressavam o passo pra ver se saíam daquele sol escaldante. Tudo à minha volta derretia, ou era essa a sensação que eu tinha. Dentro do carro, vidros fechados, ar condicionado ligado. Sabia eu estar numa situação melhor do que qualquer pessoa fora dele; mesmo assim, ainda estava com calor. Olhei pra frente, e voltei a ver o semáforo abrir e fechar e o carro não se mover.

Foi quando do caos absoluto nasceu o choro da criança vindo ao mundo: luz, som, matizes, vida: enquanto as pessoas buzinavam para os carros parados sem fazer com que por conta disso estes adquirissem o poder de locomoção, enquanto o sol brilhava tanto que nos cegava, enquanto cada pessoa corria no seu ritmo pra chegar onde quer que tivesse de chegar, enquanto as horas passavam, de repente, tudo parou.

Olhando para o lado oposto da rua, vi um homem chamar uma mulher em voz alta. Ela estacou. Ele começou a caminhar na direção dela, que estava parada na calçada. Ambos não tinham mais do que vinte e poucos anos, e pareciam ignorar tudo mais à sua volta. E ignoravam. Ela estava séria, o semblante do rosto um pouco fechado, como se estivesse tomando um remédio com gosto ruim. Era a claridade, que não permitia a ela enxergar o que dali via. Ela apressou o passo, lépido, o sorriso no rosto do tamanho da sua felicidade. Ela desfez-se, e sorriu também. 

Agora, já bem diante dela, o tal homem a abraçou como se a reencontrasse depois de meses em que um dos dois estivesse sequestrado. Mesmo dali, eu via a emoção nos seus olhos. Ele a abraçava, depois a soltava e passava a mão em seu rosto, em seu cabelo, como a tentar enxergá-la através do toque, sentindo-a para além do contato físico. Ela meio sem jeito, mas receptiva. 

[O barulho caótico ao redor, o trânsito engarrafado, pessoas indo e vindo. Não para aqueles dois].

Então, beijaram-se ternamente, não de maneira ostensiva, apenas com a delicadeza de quem se via e se reconhecia como que para sempre. 

Fazia-se ali a tecitura urdida para além dos tempos, pois que ainda um dia eles venham a se perder, eternizavam, os dois, um sentimento que seria sempre parte da biografia daquele Amor, que os tornava uno ali. Se seriam um com o outro por todos os dias? Não sei. E ainda bem que não sei. Eles podem muito bem estar se amando maravilhosamente agora, podem estar discutindo algum assunto que lhes é caro, ou podem não existir mais um para o outro.

Não interessa. O instante ficou. Vários dias já se passaram, e a vida cotidiana vai requerendo outras histórias, para que possa, ainda que em um número reduzido de anos, ser eterna.