Dignidade

Dignidade




Eu vinha caminhando pela calçada, com o único destino de chegar ao meu carro, estacionado a uns trezentos metros dali. Já passava de uma da tarde, o sol a pino, a camisa já úmida em alguns pontos, o pensamento no carro, em chegar em casa e comunicar às pessoas interessadas que eu acabara de sair dos Correios, onde havia postado para elas o que havia sido prometido, na água da geladeira, no almoço, quando, ao cruzar uma esquina para chegar até a calçada seguinte, um senhor me abordou.

Ele não pediu licença, não desejou boa tarde, me viu e foi logo dizendo, numa voz baixa mas audível: moço, você sabe onde fica a rua tal? Eu olhei de esguelha e vi que o homem não oferecia riscos, parei. Sempre tive péssimo senso de localização. Disse a ele que me desse alguns segundos, eu já tinha ouvido falar naquela rua, mas tinha que me situar, pra saber para qual direção ela ficava. Ele ficou olhando pra mim, todo esperando. 

Enquanto eu pensava, olhei pra ele de forma mais ampla. Era um senhor baixo, atarracado, muito magrinho, pele morena e frágil. Estava com cara de quem, assim como eu, precisava muito de água. Sua camisa xadrez, puída, dançava solta pelo seu corpo, como a dizer que já vestira alguém mais corpulento antes, e sua calça bege estava completamente molhada na parte interna. Em algum momento na sua caminhada, ele não aguentara e urinara nas calças. Foi quando compreendi que ele não apenas não sabia onde ficava a rua que procurava. Ele estava perdido.

Perguntei de onde ele vinha. Era de longe, muito longe dali. E, segundo ele, a pé. Comecei a ficar preocupado. Fiz perguntas óbvias, como o nome dele, onde ele morava, o dia da semana em que estávamos. Senti-o um pouco desorientado e apreensivo, mas ele respondeu tudo, ainda que não bem certo quanto ao dia da semana. Tudo bem, até eu esqueço, às vezes.

Conduzi-o até uma esquina que dava numa avenida grande, onde os ônibus passam e o levariam até onde ele queria ir. Enquanto andávamos, ele me contou, ao ser perguntado, que tinha esposa e filhos, mas que "eles vivem a vida deles, meu filho". Suspirei. Comuniquei pra ele qual o ônibus que ele deveria pegar, mostrei a parada e, ao atravessar a avenida, segurando-o pelo punho, tomei a decisão de eu mesmo levá-lo pra onde ele queria ir. Era na direção oposta à minha casa mas - dane-se! - não era tão longe de onde estávamos. 

Falei pra ele a respeito de levá-lo lá. Pensando que ia ouvi-lo agradecido, o que ouvi foi um sonoro e arrastado NÃAAAO, seguido de um "desculpe, mas de jeito nenhum eu quero incomodar o senhor". Eu, que tenho pelo menos uns 40 anos a menos que ele. Senhor. Insisti: "Não vai me incomodar, é longe pra ir à pé, mas de carro são uns 5 a 10 minutos...". Não, ele retrucou. Eu tentei uma última vez: "Mas o senhor está é com medo de mim? Eu não faço mal a uma mosca...". Não. 

Não fiquei chateado. Fiquei triste, mas não por ele ter rejeitado minha oferta. Fiquei triste pelo que esse não representava. Pelo que estava nas entrelinhas: não, não me acho digno de incomodar uma pessoa que está numa escala social diferente da minha. Não, não tenho coragem de entrar no seu carro com cheiro de urina. Não, ninguém nunca fez isso por mim, por que fariam agora? Não, eu já sou um velho, um traste, e não quero ser o fardo que todos os dias já me fazem crer que sou.

Estava ali, bem ao meu lado, um triste recorte da falta de dignidade humana.

Antes que lágrimas me viesse aos olhos, falei, desanuviando os pensamentos: "Pois tudo bem. Vou levar o senhor até a parada do ônibus e esperar que ele chegue. 

Enquanto esperávamos, ele perguntou nome, o que eu fazia ("Sou professor"), disse que admirava "quem sabia muito e passava para os outros", e que um tio dele, há muitos e muitos anos, tinha dito a ele que estudasse se ele quisesse ser alguém, mas que ele nunca tinha terminado nem os primeiros anos escolares. Ao que eu respondi, mesmo sabendo que ele não entenderia: "Mesmo assim, o senhor fique certo de que é alguém". Como eu supunha, ele ficou calado. E eu, fechado dentro de mim mesmo. 

Então o ônibus apareceu no horizonte e eu disse, Olhe, meu senhor, hora de ir. Quando o ônibus parar, o senhor mostra sua carteira de gratuidade, eu me encarrego de falar com o motorista onde o senhor vai descer". Ele: "Eu nem sei como posso lhe agradecer. De todo coração, meu filho. Eu nem sei".

Na mesma hora, pensei: "Chegando em casa, meu senhor. Chegando em casa", mas não disse. 

Ele entrou no ônibus, eu expliquei ao motorista, as portas se fecharam e, em questão de segundos, o veículo sumiu da minha vista.

Dei as costas e segui para o meu carro. 

Foi um dia difícil.