Tudo muda

Tudo muda





Tendo feito anos bem recentemente, já perto de mais um final de ano, é inevitável deixar de pensar no que mudou, o que aconteceu nesse período que tenha me deixado mais ou menos feliz ou infeliz, saudável ou com necessidade de fazer algo por mim mesmo, com mais dinheiro ou menos dinheiro no banco. 

É aí que se justifica a Danuza Leão dessa crônica. Quando eu era um pouco mais jovem, fuçava todo domingo a internet em busca da crônica dela daquela semana. Quando ela lançou o Quase Tudo, comprei imediatamente e devorei com vontade e lia regurgitando felicidade. Claro, não sou tão ingênuo. Não concordo com todas as opiniões dela, e sei que a moça é profundamente ligada a partidos nada sérios, como o PSDB que, associado a uma coisa ou outra que ela valorizava, me fazia ficar de orelha em pé. 

Mas a leitura era fluida, o texto era gostoso e, além do mais, que mal fazia ler alguém com um ponto de vista diferente do meu? Aprendi que posso ter, sim, minha visão de mundo confrontada. Faz até bem, pra gente não se achar dono da verdade o tempo todo. Posso inclusive conviver bem com pessoas que têm visão política diferente da minha. Conheço quem inclusive se relacione afetivamente, de modo singular e plural, com pessoas de mundos completamente díspares. E não é que a Claire, da série A Sete Palmos terminou seus dias de vida ao lado de um cara com visão política super conservadora? Pois então. É possível na ficção e na realidade.

Ler Danuza Leão era divertido, um deleite, mesmo. Ficava ligeiramente amuado quando a crônica chegava ao fim e eu tinha de esperar todo um novo final de semana pra ler algo dela novamente.

Pulemos então para 2011. Comprei baratinho um livro dela carérrimo que sempre quis ler, uma coletânea de crônicas. Eu ia ter, só pra mim, 101 crônicas reunidas, não ia precisar esperar todas aquelas semanas pra lê-la, estavam todas ali!!! Resultado? Leitura chatérrima. Mal pude acreditar nas asneiras que li. Só que eu não cansei de apanhar aí.

Chegou-me às mãos o mais recente livro dela, É tudo tão simples, que me cativou pelo título. Será, pensei, que meu amor por ela seria redescoberto e eu finalmente iria ter prazer em lê-la como antes, um prazer daqueles, como um casal que faz amor depois de longa ausência do outro? Equívoco, equívoco!

Foi quando entendi que, realmente, nada passa despercebido pela ação dos dias. Que a autora mudou? Certamente. Ela mesma diz isso logo nas páginas iniciais do livro. Que mudou porque o mundo mudou, algo como mudei pra acompanhar o tempo. Certíssima. Triste daqueles que não o fazem. São massacrados pela vida, dizimados. Darwin já dizia isso, não tem novidade aí. Ou você se adapta, ou você já era. Acontece que, caminhando para a minha quarta década de vida, não dá pra ler conselhos do tipo: Se você passou dos quarenta e mora só, já que não tem empregada todo dia, facilite sua vida e aproveite pra manter uma boa silhueta. Para isso, seu jantar deve ser uma folha de alface pequena - uma só, bem frisado pela autora - e um copo d'água. 

Eu até reli, achei que tinha alguma piada ali nas entrelinhas que eu não tinha entendido. 

Não tem. É um conselho imbecil e fútil, de quem afirma no começo do livro que mudou mas, basta investigar um pouco mais adiante, e descobre-se que tem gente que gosta de se vestir com uma nova carapaça mas, retirada ela, fica a mesma velha pele de sempre. Tem jeito pra isso? Claro que tem, morrendo e nascendo de novo.

Claro que eu também mudei. Como homem e como leitor. Mas a verdade é que o que era divertido, passou a ser de uma futilidade que chega a ser uma ofensa. 

É quando concluo que, ufa!, algumas mudanças são benéficas. Sempre é tempo de descobrir o que é importante de ser feito na vida e o que não, já que tempo pra fazer tudo jamais teremos. Quem tem essa ilusão certamente faz morada em hospício. 

Se eu terminarei de ler o livro? Certamente. Quem nunca tentou voltar pra um ex-amor só pra depois descobrir que não dava mais certo mesmo que atire a primeira pedra. Sim, eu já descobri. Mas preciso ir até o fim, e ao virar a última página, virarei também a última pá de cal. 

E vamos para o próximo, porque a vida segue. Sempre segue.
Discurso de Ano Novo

Discurso de Ano Novo




(Discurso escrito para a confraternização da empresa onde trabalho, inspirado nas obras de Rubem Alves e Mario Sergio Cortella - dedico o texto a eles)

Boa noite a todos.
        Não vim aqui pra fazer discurso de natal. Vim aqui para falar de prazer. E não quero ouvir nenhum “that’s” durante a minha fala, entendidos? Estou aqui para que possamos, nesse momento único, no qual temos a oportunidade de compartilhar não apenas o mesmo espaço, mas a mesma comida, a mesma bebida e até as mesmas brincadeiras, fazermos também uma reflexão sobre o crepúsculo de mais um ciclo, com o fim de 2011 e o alvorecer de um outro, com o ano que se anuncia.
         Vim aqui porque sou educador no sentido mais amplo da palavra: aquele que sabe que ensinar é muito mais do que ganhar o dinheiro que vai me sustentar durante os meses do ano, que entende que ensinar é uma troca de aprendizado entre aluno e professor, que luta por melhorias e dias melhores, que reforça ideias e ideais e não se intimida diante do novo.
         Convido vocês então a fazer uma reflexão. Sabemos que o tempo foge. Ainda ontem estávamos abalados pelo onze de setembro, e no entanto vejam só, já se passaram dez anos. Toda uma década, vocês têm noção do que seja isso? Compreendi há algum tempo que não terei tempo pra tudo: não ouvirei todas as músicas que gostaria, nem lerei todos os livros que gostaria, nem verei todos os filmes, nem conhecerei todos os lugares... Partes do corpo que eu nem lembrava que tinha hoje doem e me fazem lembrar a todo instante que estão ali. É necessário aprender a arte do “abrir mão” em prol daquilo que é essencial. E o que é essencial pra você? Dinheiro, sexo, amor, amizade, companheirismo, família, gordas contas bancárias, carros imponentes? Uma vida mais simples, com menos ostentação? Repito minha pergunta: o que é essencial pra você? E junto a ela faço outra: estamos fazendo o possível pra chegar ao que realmente nos é essencial, àquilo que dizemos que realmente queremos para nós?
         A vida é assim: a gente escolhe caminhos na esperança de que eles vão nos levar a lugares de alegria. Tolos, pensamos que a alegria está no final do caminho. Um caminho pelo qual muitas vezes caminhamos distraídos, ou sem dar a ele a devida atenção ou valor, já que caminho é só caminho, e não ponto de chegada, e esquecemos que, como disse o filósofo chinês Lao-Tseu, “o bom viajante não tem planos fixos e não tenciona chegar”. Mais do que discurso de um louco, isso demonstra justamente o que é a vida: um caminho que leva a outro, sem ponto certo de chegada. E muitas vezes estamos tão preocupados em chegar nesse lugar de felicidade, que esquecemos que a alegria está é durante o caminho, nas margens.
         O mais importante, ao se perceber que um ano novo está bem aí, diante de nós, é nos permitirmos a oportunidade de absorvermos, não apenas simbolicamente, que a nós foi dada a oportunidade de recomeçar. Recomeçar em todos os sentidos da vida, passar por metamorfoses necessárias. E quem não precisa mudar sempre, renovar-se não apenas na aparência, mas na essência? Vejam só: as lagartas, cuja vida se resume em devorar as folhas das plantas pelas quais se arrasta, após terem esgotado essa fase rastejante e gastronômica, transformam-se em seres coloridos, esvoaçantes, borboletas. Assim pensou Heráclito, filósofo grego que falou da impossibilidade de entrarmos duas vezes no mesmo rio, porque a água, a luz solar, a areia sob seus pés, nem mesmo você é a mesma pessoa que entrou no rio da primeira vez.
         Acredito piamente nas metamorfoses e ressurreições. É por isso que ensino. Porque acredito que somos seres imperfeitos que vamos nos lapidando ao longo da vida. Somos seres que não nascem prontos. Eu não sou um sapato, nem uma sandália da Monsenhor Tabosa, que nasce pronto e vai se gastando. Eu nasço não-pronto e vou me fazendo. Por que não aproveitarmos esse momento e começarmos 2012 com essa determinação? Veja bem, eu não digo meta. Essa palavra parece já vir carregada de sofrimento, de esforço doloroso, de trabalho de gladiador. Eu falo em determinação porque basta isso para nos transformarmos em seres humanos melhores: querermos. Porque o passo seguinte, que é fazer por onde, vem com a sabedoria que somente tem aqueles que sabem onde querem chegar e estão verdadeiramente dispostos a isso. Vale lembrar que os conhecimentos nos dão meios para viver. A sabedoria nos dá razões para viver. Sábias são as pessoas que sabem viver. Tolo é aquele que, tendo defendido tese sobre barcos e mapas, não sonha com horizontes, não planeja viagens, não imagina portos. Anda sempre em terra firme por medo de naufrágio. Sabedoria não é uma graça. Por outro lado, também não pode ser ensinada. Sabedoria é a voz do corpo. Dorme, inconsciente, como o personagem do desenho infantil e, assim como ela, pode ser despertada com o beijo certo daquele que se predispuser a isso.
         Há coisas que só fazemos bem se não pensarmos no que estamos fazendo: andar, levar comida à boca, subir escada, andar de bicicleta, fazer amor. E o que dizer de todas as outras que exigem ponderação, reflexão, vontade?
         É certo que na vida queremos ter prazer. Não apenas o prazer carnal, mas toda forma de prazer, que muitas vezes, dada a vida apressada que levamos, parece ter sido esquecida. E acabamos por esquecer de nós mesmos. Esquecemos também que, para além de todas as misérias, o ser humano tem um destino de felicidade. Devemos reencontrar o Paraíso. Advém desse ato de fé minha filosofia de educação: o objetivo da educação é aumentar as possibilidades de prazer e alegria.
         E prazer e alegria são coisas distintas: prazer só acontece se o corpo tiver posse daquilo que lhe dá prazer: o sorvete ansiado num dia quente, o suco a ser bebido, o corpo desejado. O prazer se farta logo. Quantos sorvetes sou capaz de tomar até que de objeto de prazer ele se torne causa de sofrimento? Quantos copos de suco até o corpo dizer “Não agüento mais!”, quantos orgasmos até o corpo cansar e desejar um merecido repouso? O prazer tem vida curta. O evangelho do prazer reza: “Bem-aventurados os que têm fome, porque serão saciados”.
         A alegria, por outro lado, não precisa da posse do objeto desejado para existir. Lembro do rosto de uma amiga que não está mais aqui, mas essa simples memória me traz alegria. Sentimos alegria vendo um filme bom, lendo um bom livro ou observando uma criança simplesmente existir, uma paisagem bonita numa viagem, um sorriso que nos aconchega e nos faz sentir que somos bem-vindos. A alegria nunca se farta. Alegria pede mais alegria. Da alegria nunca se diz, “Chega! Cansei de ser alegre!”, “Estou satisfeito!”. O evangelho da alegria reza: “Bem-aventurados os que têm fome, porque terão mais fome!”.
         A vida resulta de uma aposta e está construída sobre incertezas. Se você quer fazer algo para Deus, uma promessa divina para o ano que se inicia, e todos os outros, não ofereça a Deus caminhadas até Canindé nem subir escadas de joelho. Deus não sorri com sofrimento. Ofereça a Deus um poema, uma música que você gosta, uma oração no silêncio do seu quarto que muitas vezes não encontramos nem dentro de nós mesmos.
         Agora, se você quer fazer algo por si mesmo, comece o ano determinado a viver com sabedoria, buscando o prazer e a alegria, que podem sim caminhar juntos, compreendendo que devemos buscar aquilo que nos é essencial. Se você ainda não sabe o que é o seu essencial, investigue, cerque-se de pessoas que te ajudem nesse processo. Mas antes de tudo isso, queira, queira verdadeiramente ser uma pessoa melhor. Viver não é só uma caminhada de altos e baixos. Viver é saber que, seja lá o que for aquilo em que você acredite, existe um propósito. Não fomos simplesmente jogados aqui. Eu, pelo menos, não acredito, não sinto isso. Mas não podemos esquecer que temos a obrigação de deixarmos o mundo um pouco melhor do que quando chegamos nele. É uma tarefa árdua? Sem dúvida. Mas é igualmente possível.
           Recomece. Revitalize-se. Renasça.
           Um extraordinário 2012 a todos.
         








O que acontece no meio, de Martha Medeiros

O que acontece no meio, de Martha Medeiros

Vida é o que existe entre o nascimento e a morte. O que acontece no meio é o que importa.

No meio, a gente descobre que sexo sem amor também vale a pena, mas é ginástica, não tem transcendência nenhuma. Que tudo o que faz você voltar pra casa de mãos abanando (sem uma emoção, um conhecimento, uma surpresa, uma paz, uma ideia) foi perda de tempo.

Que a primeira metade da vida é muito boa, mas da metade pro fim pode ser ainda melhor, se a gente aprendeu alguma coisa com os tropeços lá do início. Que o pensamento é uma aventura sem igual. Que é preciso abrir a nossa caixa preta de vez em quando, apesar do medo do que vamos encontrar lá dentro. Que maduro é aquele que mata no peito as vertigens e os espantos.

No meio, a gente descobre que sofremos mais com as coisas que imaginamos que estejam acontecendo do que com as que acontecem de fato. Que amar é lapidação, e não destruição. Que certos riscos compensam – o difícil é saber previamente quais. Que subir na vida é algo para se fazer sem pressa.

Que é preciso dar uma colher de chá para o acaso. Que tudo que é muito rápido pode ser bem frustrante. Que Veneza, Mykonos, Bali e Patagônia são lugares excitantes, mas que incrível mesmo é se sentir feliz dentro da própria casa. Que a vontade é quase sempre mais forte que a razão. Quase? Ora, é sempre mais forte.

No meio, a gente descobre que reconhecer um problema é o primeiro passo para resolvê-lo. Que é muito narcisista ficar se consumindo consigo próprio. Que todas as escolhas geram dúvida, todas. Que depois de lutar pelo direito de ser diferente, chega a bendita hora de se permitir a indiferença.

Que adultos se divertem muito mais do que os adolescentes. Que uma perda, qualquer perda, é um aperitivo da morte – mas não é a morte, que essa só acontece no fim, e ainda estamos falando do meio.




No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco e da caixa postal, mas a senha que nos revela a nós mesmos. Que passar pela vida à toa é um desperdício imperdoável. Que as mesmas coisas que nos exibem também nos escondem (escrever, por exemplo).

Que tocar na dor do outro exige delicadeza. Que ser feliz pode ser uma decisão, não apenas uma contingência. Que não é preciso se estressar tanto em busca do orgasmo, há outras coisas que também levam ao clímax: um poema, um gol, um show, um beijo.

No meio, a gente descobre que fazer a coisa certa é sempre um ato revolucionário. Que é mais produtivo agir do que reagir. Que a vida não oferece opção: ou você segue, ou você segue. Que a pior maneira de avaliar a si mesmo é se comparando com os demais. Que a verdadeira paz é aquela que nasce da verdade. E que harmonizar o que pensamos, sentimos e fazemos é um desafio que leva uma vida toda, esse meio todo.



Alice Munro - Perfil literário

Alice Munro - Perfil literário




Em muitos sentidos, 2011 já deu o que tinha que dar. Entretanto, das coisas boas que ele trouxe e deixou, a mais notável sem dúvida foi a escritora canadense Alice Munro.

Já havia ouvido falar dessa escritora. Anos atrás, já havia inclusive lido um de seus contos, mas como foi leitura obrigatória na faculdade, não li com prazer. 

Esse ano, porém, resolvi que era chegada a hora de adentrar em seu universo literário. Por quê, não sei. Sempre me fascina o que ocorre comigo (e com qualquer bom leitor): um certo autor ou livro lhe cai nas mãos, você descobre que aquele não é bem o momento dele, e em algum momento num lugar chamado futuro, aquele mesmo livro ou autor ressurge, e você descobre que ali estava um autor/obra que vai fazer toda a diferença na sua vida. 

Alice Munro começou a escrever ainda na década de 60, e desde então, publicou 14 livros, todos eles de contos. A maioria dos seus contos se passam na região do Canadá onde ela mora, e assim como na obra de Flannery O'Connor, suas histórias são permeadas de personagens que se confrontam com questões fincadas na terra em que habitam, mas que representam o universo humano, ou seja: são histórias atemporais, que poderiam acontecer em qualquer lugar. Com personagens fortes e complexos, Alice é capaz de capturar a alma e os sentimentos humanos de forma ampla e abrangente. Em seus contos, fica clara a compreensão da autora da essência dos homens, e da complexidade das mulheres, tendo sido dito que Alice é a versão feminina de Anton Tchekhov.

Possivelmente. O certo é que, em se tratando de Alice Munro, o que importa é o momento de epifania, o momento de iluminação do(s) personagem(s), o detalhe revelador, súbito, conciso. Alice é capaz de, num único parágrafo, descrever todo um diálogo: o leitor entende, através daquela narração, que ali houve todo um diálogo que palavras diretas nenhuma conseguiriam revelar.

Com uma prosa clara, que revela as ambiguidades da vida, Munro tem um estilo que coloca o fantástico junto ao comum, quase como se fossem (porque talvez sejam mesmo) uma única coisa, intrinsecamente ligadas. Seus contos são tão fortes e profundos que alguns críticos afirmam que eles, por si só, têm valores de romance.

Ganhadora do prêmio Man Booker International de 2009, e uma eterna candidata ao Nobel, Alice chegou aos 80 anos em 2011 e, espero eu, ainda viverá o suficiente pra publicar vários outros livros. 

Infelizmente, no Brasil temos apenas três livros dela publicados: o já mencionado Felicidade Demais; Fugitiva e Ódio, amizade, namoro, amor, casamento. Os dois primeiros saíram pela Companhia das Letras, e o último, pela editora Globo.

Ao ler Felicidade Demais esse ano, senti aquele impulso gutural e inexplicável, a me dizer que essa escritora ainda tem muito a me oferecer. E como tem. Referência para cineastas como Pedro Almodóvar (que inclusive fez referência a ela em seu mais recente filme, A pele que habito), e tendo inclusive um de seus contos transformado em filme que concorreu ao Oscar (Longe dela, com Julie Christie, em 2006), Alice é uma escritora vigorosa como poucas, de uma complexidade e leveza que é ao mesmo tempo literatura que te agarra e te faz sentir o que é ser humano. Com tudo de bom e de ruim que vem agregado a essa condição. 




Medianeras, de Gustavo Taretto

Medianeras, de Gustavo Taretto



Com o subtítulo de "Buenos Aires na era do amor virtual", Medianeras, filme do argentino Gustavo Taretto, não poderia ser mais universal.

O filme conta a história de Martin, um designer de homepages e Mariana, vitrinista de lojas. Ambos vivem suas vidas solitárias e enclausuradas, cada qual ocupando um quitinete de pouco mais de quarenta metros quadrados e levando uma vida sem brilho e sem luz.

Medianeras, aliás, é o nome que se dá à lateral do prédio que não tem janelas e não serve pra nada (conforme figura acima).

Assim, o filme levanta o questionamento bastante contemporâneo de estarmos vivendo, cada dia mais, vidas virtuais. Como é dito no começo do filme, temos canais de TV a cabo demais, internet, podemos estudar, trabalhar e até fazer sexo pelo computador, de modo que, somando-se à insegurança, medo da violência gratuita, medo de lidar com o outro e várias outros agravantes, vamos criando fobias sociais que levam à obesidade, hipocondria, suicídio, falta de desejo, falta de afeto, estresse, sedentarismo, dentre tantas outras mazelas. Nesse contexto, a arquitetura e a fotografia de Buenos Aires acaba sendo um terceiro personagem, metáfora para a vida claustrofóbica construída dentro de urbes cada vez mais repletas de prédios e prédios que parecem nos tirar o ar.

Uma listagem de tanta coisa ruim pode fazer parecer que o filme é pesado. Mas não é, pelo contrário. É uma comédia saborosa, divertida e sim, muito gostosa de ser vista. O filme tem grandes momentos, e um roteiro que privilegia a inteligência do leitor. 

Questionando a solidão de cada um nos grandes contextos urbanos, a película nos faz sentir que estamos dentro de um livro de "Onde está Wally?", em que a loucura do dia a dia e o nervosismo nos tornam cego para encontrar aquilo que realmente buscamos, ainda que nem sempre saibamos o que é realmente que estamos a buscar. Vivemos num mundo que nos proporciona cada vez mais formas de nos comunicar, e no entanto, nunca fomos tão solitários.

Aqui mesmo, no Brasil, segundo o censo de 2010, mais e mais apartamentos estão sendo ocupados por somente um morador. O que torna as pessoas, sedentas por amor, sucesso profissional e pessoal, a estar cada vez mais fechadas dentro de si mesmas, quando, em teoria, tantos meios há de se fazer ouvir, de se chegar ao Outro? 

É por essas e outras que o filme retrata qualquer cidade do mundo contemporâneo, e é também por questionamentos desse tipo que deve-se assistir Medianeras: porque se trata de um retrato do nosso tempo, onde nós mesmos nos enxergamos.


A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar

A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar

Dizer que Pedro Almodóvar é um dos cineastas mais criativos do cinema atual é uma obviedade. Como muitos cineastas prolíficos, tem uma carreira repleta de altos e baixos. Mas ao final deste A Pele que Habito, tive a certeza de ter sido acertado em cheio.




Almodóvar utiliza-se da história de Richard Ledgard, um cirurgião plástico sem escrúpulos, para levar o espectador a refletir sobre questões morais que serão sempre atuais.

Tendo perdido a esposa num acidente, Richard se torna obsessivo para chegar a uma pele perfeita, que poderia ter salvado sua esposa. É então que acontece uma segunda tragédia em sua vida, e a partir daí, ele arquiteta um plano que vai levá-lo ao mais profundo extremo para atingir seus objetivos, com um final capaz de deixar o espectador inebriado.


Num filme que mistura referências a Frankenstein e à extraordinária escritora canadense Alice Munro (esta aparecendo no filme desde o começo, quando um de seus livros na bandeja levada ao personagem Vera, e cujo estilo Almodóvar usou em vários momentos da película), e críticas às obsessões da ciência e por conseguinte, do Homem, é impossível não se entregar à trama, logo que os primeiros (e lentos) minutos se vão.


Assim como fez em Abraços Partidos, Almodóvar usou-se do recurso de flashback para explicar o filme ao espectador e fazê-lo juntar os pedaços do quebra-cabeça e mantê-lo num suspense psicológico de fazê-lo vidrar.


A questão central do filme é a identidade. O que somos por fora, na nossa imagem, naquilo que se apresenta fisicamente para o mundo, e nossa psiquê, aquilo que somos por baixo da pele que habitamos. Como se dá essa guerra interior? Como vencê-la? É possível? 


Na sociedade plural em que vivemos, com seus valores em constante processo de metamorfose, Almodóvar nos apresenta um filme mais escuro, menos colorido, menos iluminado - justamente porque a mente humana é esse lugar ainda com tanto a iluminar. Cabe a nós refletirmos sobre o filme, e iluminarmos nossos lugares escuros.
O Medo de Errar - Martha Medeiros

O Medo de Errar - Martha Medeiros

A gente é a soma das nossas decisões. 
É uma frase da qual sempre gostei, mas lembrei dela outro dia num local inusitado: dentro do súper. Comprar maionese, band-aid e iogurte, por exemplo, hoje requer expertise. Tem maionese tradicional, light, premium, com leite, com ômega 3, com limão, com ovos “free range”. Band-aid, há de todos os formatos e tamanhos, nas versões transparente, extratransparente, colorido, temático, flexível. 

Absorvente com aba e sem aba, com perfume e sem perfume, cobertura seca ou suave. Creme dental contra o amarelamento, contra o tártaro, contra o mau hálito, contra a cárie, contra as bactérias. É o melhor dos mundos: aumentou a diversificação. E com ela, o medo de errar. 
Assim como antes era mais fácil fazer compras, também era mais fácil viver. Para ser feliz, bastava estudar (magistério para as moças), fazer uma faculdade (Medicina, Engenharia ou Direito para os rapazes), casar (com o sexo oposto), ter filhos (no mínimo dois) e manter a família estruturada até o fim do dias. Era a maionese tradicional.

Hoje, existem várias “marcas” de felicidade. Casar, não casar, juntar, ficar, separar. Homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher. Ter filhos biológicos, adotar, inseminação artificial, barriga de aluguel – ou simplesmente não tê-los. 

Fazer intercâmbio, abrir o próprio negócio, tentar um concurso público, entrar para a faculdade. Mas estudar o quê? Só de cursos técnicos, profissionalizantes e universitários, há centenas. Computação Gráfica ou Informática Biomédica? Editoração ou Ciências Moleculares? Moda, Geofísica ou Engenharia de Petróleo?

A vida padronizada podia ser menos estimulante, mas oferecia mais segurança, era fácil “acertar” e se sentir um adulto. Já a expansão de ofertas tornou tudo mais empolgante, só que incentivou a infantilização: sem saber ao certo o que é melhor para si, surgiu o medo de crescer. 

Todos parecem ter 10 anos menos. Quem tem 17, age como se tivesse 7. Quem tem 28, parece ter 18. Quem tem 39, vive como se fossem 29. Quem tem 40, 50, 60, mesma coisa. Por um lado, é ótimo ter um espírito jovial e a aparência idem, mas até quando se pode adiar a maturidade? 

Só nos tornamos verdadeiramente adultos quando perdemos o medo de errar. Não somos apenas a soma das nossas escolhas, mas também das nossas renúncias. Crescer é tomar decisões e, depois, conviver pacificamente com a dúvida. Adolescentes prorrogam suas escolhas porque querem ter certeza absoluta – errar lhes parece a morte. 

Adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada, e sabem também que só a morte física é definitiva. Já “morreram” diante de fracassos e frustrações, e voltaram pra vida. Ao entender que é normal morrer várias vezes numa única existência, perdemos o medo – e finalmente crescemos. 
Nêmesis, de Philip Roth

Nêmesis, de Philip Roth

A Companhia das Letras acaba de lançar o romance mais recente do Philip Roth, que era a minha aposta pro Nobel desse ano, que foi pra um poeta sueco que nunca teve livro nenhum traduzido no Brasil. Dane-se. 

Nêmesis é um dos livros curtos que Roth vem escrevendo nos últimos anos, e que fazem parte de um grupo de livros que deverão ser publicados num volume só em algum momento da vida editorial do autor. 

Como alguns devem saber, Nêmesis (do latim, "dar aquilo que é merecido") é a deusa grega da vingança, que jogava sua ira naqueles que sucumbiam à arrogância.

Pois bem: o livro trata da história de Eugene Cantor, ou apenas Bucky Cantor. Bucky é um garoto de 23 anos que faz todo o estereótipo do "gente boa": um cara descomplicado, irrepreensível, que cuida de quem cuida dele. Em outras palavras: já se sabe, pra quem conhece a obra do Roth, que ele será destruído de uma forma bem especial. Nascido de uma mãe que morreu ao dar a luz e de um pai viciado em jogo e em crimes, Bucky foi criado pelos avós, com quem aprendeu valores que ele não refuta nem questiona, como a crença em si e o senso de responsabilidade. Ele inclusive mora com a avó para cuidar dela. 

O ano é 1944, e tudo o que ele mais queria era estar na guerra, mas sua péssima visão faz com que ele seja dispensado, muito para sua tristeza. Um atleta por natureza e o primeiro membro da família a ir pra faculdade, é também um garoto devotado ao dever cívico - e a manter as relações sociais tranquilas - e à comunidade judia de Newark, Nova Jérsei (que é também onde Philip Roth nasceu), onde ele é professor de educação física e cuida de um playground, no que ele se sai muito bem, pois é adorado pelos alunos. Como se não bastasse, Marcia, sua namorada, é linda, inteligente e faz o tipo "pra casar".

A primeira metade do livro - que é curto, indo lá pelas duzentas e poucas páginas - coloca Bucky no meio de uma epidemia de pólio, que era uma ameaça gritante numa época em que não havia vacina. Inserido nesse meio, Bucky faz o que tem de ser feito como diretor do playground, enquanto vê os frequentadores do lugar caírem um a um, adoecendo ou morrendo. Mães se desesperam, enquanto, num outro tópico do livro, há rumores de que os judeus são os culpados pela epidemia. Em seus pensamentos, Bucky culpa um deus malevolente pelo que está acontecendo, e ele vê seu trabalho como sua segunda guerra particular.

Nesse ínterim, Bucky pede a mão de Marcia em casamento ao pai da moça, e quando as coisas parecem que não podem piorar, com várias famílias perdendo seus filhos, Marcia, sua futura esposa, liga da Pensilvânia, dizendo que surgiu um emprego no acampamento de verão onde ela se encontra trabalhando. Se ele for, eles haverá a possibilidade de eles estarem juntos numa ilha, à noite e sozinhos - um paraíso onde eles ficarão longe do inferno que vem acontecendo em Newark. Então Bucky, com seu sentimento de dever cívico diz que não, não vai, só para mudar de ideia um dia depois.

Conforme lhe foi prometido, ele encontra no acampamento um grupo de crianças alegres, felizes e pululantes, onde parece que tudo é lindo e perfeito. E é, até uma hora que deixa de ser, que é quando Roth traz o ato final para o qual vinha preparando o leitor. E essa parte eu deixo de fora, porque o livro precisa ser lido em sua plenitude de trama e temas, sem interferência.

Na parte final do livro, quando o narrador da história encontra-se com Bucky, o leitor compreende que a verdadeira catástrofe não foi o que aconteceu em 1944, nem mesmo o questionamento diante da nossa impotência diante da força das circunstâncias, mas sim a postura de Bucky diante das adversidades que a vida lhe apresentou. Tomado pela culpa, Bucky prefere culpar a si mesmo e ao universo por tudo o que a vida lhe trouxe. E aí reside a Nêmesis do protagonista.

Em outras palavras: leia o livro, e descubra porquê Roth é o melhor autor norte-americano em atividade no mundo de hoje.









Axilas e Outras Histórias Indecorosas, de Rubem Fonseca

Axilas e Outras Histórias Indecorosas, de Rubem Fonseca



Confesso que não ia falar desse livro, porque um livro do Rubem Fonseca, a mim parece ser sempre um acontecimento desses que não importa o quanto eu gaste o meu francês, jamais conseguiria ser claro o suficiente pra dizer o que penso, além do fato de que dezenas de blogs vão falar mesmo do livro, então resolvi ficar de fora.

Só que, depois de conversar com alguns colegas e amigos sobre a obra do Rubão, alguns dele metendo o pau no cara, resolvi que precisava colocar meus dois centavos nessa história.

O grande lance é o seguinte: o que a galera parece não compreender, é que os anos de chumbo já passaram. Ficam querendo que, em pleno Brasil de 2011, o velho publique livros repletos de críticas, falando mal da ditadura vigente no país (né?), e grandes elucubrações filosóficas, o que nunca foi muito a do velho.

Rubão tá com 86 anos, e publica praticamente um livro por ano. Esse ano, publicou dois de uma vez só, inspirado talvez em Marisa Monte ou Maria Bethânia. O fato é que o assunto tem rendido.

As obsessões do velho estão todas lá: o culto profrano à mulher e suas formas, o sexo, a dor, o crime, a violência. Só que agora, realmente não tem mesmo o vigor daqueles livros clássicos, dos anos 70. E faz sentido. Fonseca sabe que o mundo mudou desde que ele começou a escrever, então certas coisas não fazem mais sentido, como aquela violência saída das favelas dispostas a exterminar todo mundo lá embaixo, logo agora, bem em épocas de UPPS em todo canto. 

O livro começa com a história de um cara que se lasca por causa de um par de sapatos. A história, por incrível que pareça para os padrões Fonsequianos, merece receber o seguinte adjetivo: é linda! Sim, isso mesmo que você leu. Curta, rápida, e um final simples, mas que me fez baixar o livro e ficar pensando em como ele tem razão. 

A partir daí, temos aqueles contos típicos dele pra chocar, como o da mãe que mata o filho com síndrome de Down, e outros que tratam exatamente das tais obsessões, e uns que estão lá pra aumentar o volume do livro e consequentemente, o preço.

Mas a verdade é que a máxima que o velho parece seguir nos últimos anos (Eu te dou um livro a cada ano, você se diverte e tem a sensação de que seu dinheiro foi bem gasto) continua a valer a pena. E a certeza que ele nos passa é que Axilas e Outras Histórias Indecorosas anda bem longe de ser seu canto do cisne.

Portanto, caros detratores, uma banana pra vocês que ficam criticando o livro sem ter lido. Ora bolas! Até a porcaria do Paulo Coelho eu li - duas "obras", daquelas que não descem na privada nem com um baldão de água! - pra dizer que não gosto; então, um autor que eu sei que gosto - nem que sejam das glórias do passado, vá lá - eu vou sair falando mal só porque o cara não escreve mais os clássicos? Ah vá. 

É, vá. Vá ler. Aí depois vocês falam. 

Resumindo: o livro é muito bom, diverte pra caramba. E você não precisa concordar com tudo o que ele escreve e afirma pra gostar do livro. Não é autoajuda, fellas. Não é Roberto Shinyashiki, nem Lair Ribeiro. Querem ler algo pra não se indignar, vocês cristãozinhos carolas? Pois vão ler a Bíblia, esse manual de maus costumes, como disse o sábio Saramago.  Ora, pitombas.


Esta Noite ou Nunca, de Marcos Rey

Esta Noite ou Nunca, de Marcos Rey

 



Desde que me entendo por gente, responsabilizo o Marcos Rey por me tornar o viciado em livros que sou hoje. Não tem jeito, foi realmente através dos livros dele que vim a amar a palavra escrita e o livro, com seus cheiros, formatos, tramas que me arrebatam. 

Descobri o Marcos através da série Vaga-lume, que me proporcionou grandes momentos de prazer, quando na pré-adolescência, me sentindo um estranho em terra estranha, eu recebia livros dessa série e ficava na cama descobrindo minha língua e autores maravilhosos. 

Até que um dia cresci e, nas minhas muitas correspondências com o Marcos, ele me disse, Por que você não lê um livro meu para adultos? Conselho recebido, pedido atendido. Na época, li um que ele tinha acabado de lançar: Os crimes do Olho-de-boi. Gamei. Daí pra descobrir que ele é muito melhor autor de livros pra adultos do que infanto-juvenis foi um salto (ou eu que teria crescido, não sei). Foi também nessa época que eu descobri autores franceses, alemães e russos, então imagine a loucura na cabeça da criança.

O certo é que, após a morte do Marcos, em 1999, e depois de uma breve passagem pela Companhia das Letras, Palma Donato, esposa do autor, entregou à editora Global a obra quase que inteira do marido. Confesso que, tirando as capas dos livros juvenis, que achei por demais abobalhadas, eles têm feito um trabalho fantástico com os livros pra adultos, imprimindo os livros num papel amarelado gostoso de ler, numa fonte ótima e capas de Victor Burton, tá bom pra você? Procuro ler um livro dele a cada ano, pra não faltar o que ler tão cedo do meu quase xará, e já que detonei todos os juvenis nessa época da vida, me restam os pra adultos, que vou dosando...

Pois bem, o livro que acabo de ler tem como título Esta noite ou nunca e, se não é dos clássicos do autor, como o são Memórias de um Gigolô, Café na Cama e O Enterro da Cafetina, sem dúvida é literatura brasileira que vale a pena o investimento. Sabe quando a praia por si só vale o mergulho? (Ou a piscina, a banheira, seja lá onde você goste de mergulhar). 

Esta noite ou nunca foi publicado em 1988, e tem ares autobiográficos. Conta a história de um homem que, com vocação pra escritor, torna-se autor de roteiros de pornochanchadas, gênero genuinamente brasileiro, que fez muito sucesso nos idos da década de 60 e 70 no cinema nacional. O quê autobiográfico reside no fato de que o próprio Marcos, antes de viver de literatura através dos livros que publicava na já mencionada Vaga-lume, era dos autores de pornochanchadas mais solicitados na paulicéia desvairada. 

O certo é que o narrador se mete em zilhões de confusões tanto com os caras com quem mora, como com a atriz que roda a maioria dos seus filmes, como com... enfim, todo mundo. As situações são hilárias, as sacadas do Marcos são de deixar o leitor com um sorriso na mente, e a trama é muito gostosa de ler. Às vezes me chateia o fato de hoje Marcos ter ficado meio obscurecido enquanto autor. Acho isso deveras uma m****. Se uma pessoa não aprender a gostar de ler através de um livro desses, pode enterrar. Não tem como não se afeiçoar aos personagens e seus descaminhos.

E para aqueles que já são apaixonados por literatura, e querem se dar ao trabalho de curtir ainda mais a literatura brasileira, leiam esse livro, e tudo mais que a Global vem publicando do Marcos Rey. Esta noite ou nunca é uma pedrada!

Nós, os eternos insatisfeitos

Nós, os eternos insatisfeitos

Meia-Noite em Paris






Fui assistir há alguns dias o novo filme de Woody Allen, Meia-noite em Paris. O filme narra a história de um escritor na casa dos quarenta que só obteve sucesso até hoje como roteirista de filmes hollywoodianos e quer tentar se firmar como um escritor de livros mais, digamos, "literários". Este homem, que gostaria de ter vivido na década de 1920, numa época em que F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway circulavam pelas ruas e cafés de Paris tornando suas carreiras tanto prolíficas como profícuas, se manda com a noiva e sua família para a cidade Luz, em busca dessa conexão com um tempo ao qual não pertence. 



Claro que no meio disso tudo tem mais, muito mais. Os noivos se descobrem insatisfeitos com a vida que levam a dois, pois possuem ritmos, interesses e necessidades muito diferentes; um amigo da noiva que arrota sabedoria sobre arte (e que na verdade quer é agarrar a dita mulher) também aparece para dar o ar da graça e por aí vai. 

Ocorre que o noivo-escritor descobre que, após a meia-noite, Paris se transforma para ele, ao entrar em um carro que o leva justamente para a época dos personagens com os quais ele gostaria de ter convivido. Deslumbrado, ele compartilha suas ideias com os já mencionados personagens daquela época - além de vários outros - e até se apaixona.

O que importa é que, lá pelas tantas, ele reflete se não seria melhor não pegar a condução que o levaria de volta aos tempos de hoje, e, junto com a mulher por quem se apaixonou nos anos 20 - e com quem volta ainda mais no tempo, visitando a Renascença francesa - descobre que ela é outra insatisfeita, pois gostaria de estar vivendo ali, e não nos anos 20, que é a realidade dela. Depois de descobrir que seu tempo é agora e um novo amor, o filme acaba.

Tudo isso pra dizer que Woody Allen nos faz refletir sob aquilo que somos: humanos, portanto, somos nós mesmos, eternos insatisfeitos.

Onde estaríamos nós se, lá na época das cavernas, alguém não tivesse sentido a necessidade de levar algo de um ponto a outro mais rapidamente e inventado a roda? Se, ao quererem experimentar um sabor diferente da mesma comida, não tivessem tido interesse em colocar o peixe naquele negócio que ficava flamejando numa madeira depois que um raio caía e, assim, começassem a manipular o fogo e inventar novos sabores? 

Pois bem: insatisfeitos, é o que somos. Já pararam pra perceber que a maioria das pessoas - na verdade, todas, mas nem todas admitem - sempre reclama de alguma coisa? É o casamento que não vai bem, os filhos que não querem saber de estudar, a faxineira que falta mais do que vai e você não sabe o que fazer porque ela é de confiança, e arranjar outra é muito difícil hoje em dia, o cabelo que não fica do jeito que você gostaria, o emprego que não nos dá o devido reconhecimento... As reclamações são muitas. 

O problema é que, diante dessas insatisfações, a maioria das pessoas se paralisam, ficam acuadas e engessadas, e a situação não muda: não se busca dialogar os problemas do casamento com o cônjuge e por conta disse vive-se numa infinita infelicidade (e insatisfação, por conseguinte), não se busca dialogar com os filhos da geração iTudo, e só se fala com eles aos berros, não se busca trocar de faxineira por pena ou medo de uma causa trabalhista... Enfim. E aquelas que fazem por onde mudar, agem muitas vezes como radicais, não sobrando pedra sobre pedra e deixando mortos ou feridos embaixo dos escombros. Claro que algumas pessoas buscam mudar com diligência, paciência e serenidade, mas essas são raras, ou ninguém percebe pra onde estão indos as relações humanas nos dias de hoje?

Para não destruir o filme para aqueles que ainda não o viram, apenas um comentário sobre as conclusões a que se chegam a partir dele: insatisfeitos, todos somos, e seremos sempre. Para bons e maus caminhos, ou mesmo para que direção, não se sabe, mas é o que nos move. Ao assistirmos Meia-noite em Paris, compreendemos que sempre teremos algo a dizer e reclamar da vida que vivemos, tenha ela mais ou menos dores que muitas outras pessoas ou povos. 

Ao final do filme, quando a gente tem a sensação de que algo novo vai acontecer com o escritor após a descoberta de um novo sentimento, o filme acaba. As letras começam a subir e você se pergunta, Como assim, o filme acabar agora? E essa história que ia ser iniciada, foi pra onde?

Querem saber pra onde, meus caros? Foi pra um lugar chamado futuro, para o qual não existem previsões 100% acertadas e sobre o qual nada se conta e nem se pode emitir opinião. E o motivo disso é na verdade bem simples: não importa se somos mais ou menos insatisfeitos, é hoje, e só podemos exigir algo da vida - na verdade, de nós mesmos - quando fazemos a nossa parte. Afinal, seu futuro será, já já, o seu presente, quando então outros futuros se farão. Só se chega ao futuro vivendo o agora.