Alice Munro - Perfil literário

Alice Munro - Perfil literário




Em muitos sentidos, 2011 já deu o que tinha que dar. Entretanto, das coisas boas que ele trouxe e deixou, a mais notável sem dúvida foi a escritora canadense Alice Munro.

Já havia ouvido falar dessa escritora. Anos atrás, já havia inclusive lido um de seus contos, mas como foi leitura obrigatória na faculdade, não li com prazer. 

Esse ano, porém, resolvi que era chegada a hora de adentrar em seu universo literário. Por quê, não sei. Sempre me fascina o que ocorre comigo (e com qualquer bom leitor): um certo autor ou livro lhe cai nas mãos, você descobre que aquele não é bem o momento dele, e em algum momento num lugar chamado futuro, aquele mesmo livro ou autor ressurge, e você descobre que ali estava um autor/obra que vai fazer toda a diferença na sua vida. 

Alice Munro começou a escrever ainda na década de 60, e desde então, publicou 14 livros, todos eles de contos. A maioria dos seus contos se passam na região do Canadá onde ela mora, e assim como na obra de Flannery O'Connor, suas histórias são permeadas de personagens que se confrontam com questões fincadas na terra em que habitam, mas que representam o universo humano, ou seja: são histórias atemporais, que poderiam acontecer em qualquer lugar. Com personagens fortes e complexos, Alice é capaz de capturar a alma e os sentimentos humanos de forma ampla e abrangente. Em seus contos, fica clara a compreensão da autora da essência dos homens, e da complexidade das mulheres, tendo sido dito que Alice é a versão feminina de Anton Tchekhov.

Possivelmente. O certo é que, em se tratando de Alice Munro, o que importa é o momento de epifania, o momento de iluminação do(s) personagem(s), o detalhe revelador, súbito, conciso. Alice é capaz de, num único parágrafo, descrever todo um diálogo: o leitor entende, através daquela narração, que ali houve todo um diálogo que palavras diretas nenhuma conseguiriam revelar.

Com uma prosa clara, que revela as ambiguidades da vida, Munro tem um estilo que coloca o fantástico junto ao comum, quase como se fossem (porque talvez sejam mesmo) uma única coisa, intrinsecamente ligadas. Seus contos são tão fortes e profundos que alguns críticos afirmam que eles, por si só, têm valores de romance.

Ganhadora do prêmio Man Booker International de 2009, e uma eterna candidata ao Nobel, Alice chegou aos 80 anos em 2011 e, espero eu, ainda viverá o suficiente pra publicar vários outros livros. 

Infelizmente, no Brasil temos apenas três livros dela publicados: o já mencionado Felicidade Demais; Fugitiva e Ódio, amizade, namoro, amor, casamento. Os dois primeiros saíram pela Companhia das Letras, e o último, pela editora Globo.

Ao ler Felicidade Demais esse ano, senti aquele impulso gutural e inexplicável, a me dizer que essa escritora ainda tem muito a me oferecer. E como tem. Referência para cineastas como Pedro Almodóvar (que inclusive fez referência a ela em seu mais recente filme, A pele que habito), e tendo inclusive um de seus contos transformado em filme que concorreu ao Oscar (Longe dela, com Julie Christie, em 2006), Alice é uma escritora vigorosa como poucas, de uma complexidade e leveza que é ao mesmo tempo literatura que te agarra e te faz sentir o que é ser humano. Com tudo de bom e de ruim que vem agregado a essa condição. 




Medianeras, de Gustavo Taretto

Medianeras, de Gustavo Taretto



Com o subtítulo de "Buenos Aires na era do amor virtual", Medianeras, filme do argentino Gustavo Taretto, não poderia ser mais universal.

O filme conta a história de Martin, um designer de homepages e Mariana, vitrinista de lojas. Ambos vivem suas vidas solitárias e enclausuradas, cada qual ocupando um quitinete de pouco mais de quarenta metros quadrados e levando uma vida sem brilho e sem luz.

Medianeras, aliás, é o nome que se dá à lateral do prédio que não tem janelas e não serve pra nada (conforme figura acima).

Assim, o filme levanta o questionamento bastante contemporâneo de estarmos vivendo, cada dia mais, vidas virtuais. Como é dito no começo do filme, temos canais de TV a cabo demais, internet, podemos estudar, trabalhar e até fazer sexo pelo computador, de modo que, somando-se à insegurança, medo da violência gratuita, medo de lidar com o outro e várias outros agravantes, vamos criando fobias sociais que levam à obesidade, hipocondria, suicídio, falta de desejo, falta de afeto, estresse, sedentarismo, dentre tantas outras mazelas. Nesse contexto, a arquitetura e a fotografia de Buenos Aires acaba sendo um terceiro personagem, metáfora para a vida claustrofóbica construída dentro de urbes cada vez mais repletas de prédios e prédios que parecem nos tirar o ar.

Uma listagem de tanta coisa ruim pode fazer parecer que o filme é pesado. Mas não é, pelo contrário. É uma comédia saborosa, divertida e sim, muito gostosa de ser vista. O filme tem grandes momentos, e um roteiro que privilegia a inteligência do leitor. 

Questionando a solidão de cada um nos grandes contextos urbanos, a película nos faz sentir que estamos dentro de um livro de "Onde está Wally?", em que a loucura do dia a dia e o nervosismo nos tornam cego para encontrar aquilo que realmente buscamos, ainda que nem sempre saibamos o que é realmente que estamos a buscar. Vivemos num mundo que nos proporciona cada vez mais formas de nos comunicar, e no entanto, nunca fomos tão solitários.

Aqui mesmo, no Brasil, segundo o censo de 2010, mais e mais apartamentos estão sendo ocupados por somente um morador. O que torna as pessoas, sedentas por amor, sucesso profissional e pessoal, a estar cada vez mais fechadas dentro de si mesmas, quando, em teoria, tantos meios há de se fazer ouvir, de se chegar ao Outro? 

É por essas e outras que o filme retrata qualquer cidade do mundo contemporâneo, e é também por questionamentos desse tipo que deve-se assistir Medianeras: porque se trata de um retrato do nosso tempo, onde nós mesmos nos enxergamos.


A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar

A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar

Dizer que Pedro Almodóvar é um dos cineastas mais criativos do cinema atual é uma obviedade. Como muitos cineastas prolíficos, tem uma carreira repleta de altos e baixos. Mas ao final deste A Pele que Habito, tive a certeza de ter sido acertado em cheio.




Almodóvar utiliza-se da história de Richard Ledgard, um cirurgião plástico sem escrúpulos, para levar o espectador a refletir sobre questões morais que serão sempre atuais.

Tendo perdido a esposa num acidente, Richard se torna obsessivo para chegar a uma pele perfeita, que poderia ter salvado sua esposa. É então que acontece uma segunda tragédia em sua vida, e a partir daí, ele arquiteta um plano que vai levá-lo ao mais profundo extremo para atingir seus objetivos, com um final capaz de deixar o espectador inebriado.


Num filme que mistura referências a Frankenstein e à extraordinária escritora canadense Alice Munro (esta aparecendo no filme desde o começo, quando um de seus livros na bandeja levada ao personagem Vera, e cujo estilo Almodóvar usou em vários momentos da película), e críticas às obsessões da ciência e por conseguinte, do Homem, é impossível não se entregar à trama, logo que os primeiros (e lentos) minutos se vão.


Assim como fez em Abraços Partidos, Almodóvar usou-se do recurso de flashback para explicar o filme ao espectador e fazê-lo juntar os pedaços do quebra-cabeça e mantê-lo num suspense psicológico de fazê-lo vidrar.


A questão central do filme é a identidade. O que somos por fora, na nossa imagem, naquilo que se apresenta fisicamente para o mundo, e nossa psiquê, aquilo que somos por baixo da pele que habitamos. Como se dá essa guerra interior? Como vencê-la? É possível? 


Na sociedade plural em que vivemos, com seus valores em constante processo de metamorfose, Almodóvar nos apresenta um filme mais escuro, menos colorido, menos iluminado - justamente porque a mente humana é esse lugar ainda com tanto a iluminar. Cabe a nós refletirmos sobre o filme, e iluminarmos nossos lugares escuros.
O Medo de Errar - Martha Medeiros

O Medo de Errar - Martha Medeiros

A gente é a soma das nossas decisões. 
É uma frase da qual sempre gostei, mas lembrei dela outro dia num local inusitado: dentro do súper. Comprar maionese, band-aid e iogurte, por exemplo, hoje requer expertise. Tem maionese tradicional, light, premium, com leite, com ômega 3, com limão, com ovos “free range”. Band-aid, há de todos os formatos e tamanhos, nas versões transparente, extratransparente, colorido, temático, flexível. 

Absorvente com aba e sem aba, com perfume e sem perfume, cobertura seca ou suave. Creme dental contra o amarelamento, contra o tártaro, contra o mau hálito, contra a cárie, contra as bactérias. É o melhor dos mundos: aumentou a diversificação. E com ela, o medo de errar. 
Assim como antes era mais fácil fazer compras, também era mais fácil viver. Para ser feliz, bastava estudar (magistério para as moças), fazer uma faculdade (Medicina, Engenharia ou Direito para os rapazes), casar (com o sexo oposto), ter filhos (no mínimo dois) e manter a família estruturada até o fim do dias. Era a maionese tradicional.

Hoje, existem várias “marcas” de felicidade. Casar, não casar, juntar, ficar, separar. Homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher. Ter filhos biológicos, adotar, inseminação artificial, barriga de aluguel – ou simplesmente não tê-los. 

Fazer intercâmbio, abrir o próprio negócio, tentar um concurso público, entrar para a faculdade. Mas estudar o quê? Só de cursos técnicos, profissionalizantes e universitários, há centenas. Computação Gráfica ou Informática Biomédica? Editoração ou Ciências Moleculares? Moda, Geofísica ou Engenharia de Petróleo?

A vida padronizada podia ser menos estimulante, mas oferecia mais segurança, era fácil “acertar” e se sentir um adulto. Já a expansão de ofertas tornou tudo mais empolgante, só que incentivou a infantilização: sem saber ao certo o que é melhor para si, surgiu o medo de crescer. 

Todos parecem ter 10 anos menos. Quem tem 17, age como se tivesse 7. Quem tem 28, parece ter 18. Quem tem 39, vive como se fossem 29. Quem tem 40, 50, 60, mesma coisa. Por um lado, é ótimo ter um espírito jovial e a aparência idem, mas até quando se pode adiar a maturidade? 

Só nos tornamos verdadeiramente adultos quando perdemos o medo de errar. Não somos apenas a soma das nossas escolhas, mas também das nossas renúncias. Crescer é tomar decisões e, depois, conviver pacificamente com a dúvida. Adolescentes prorrogam suas escolhas porque querem ter certeza absoluta – errar lhes parece a morte. 

Adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada, e sabem também que só a morte física é definitiva. Já “morreram” diante de fracassos e frustrações, e voltaram pra vida. Ao entender que é normal morrer várias vezes numa única existência, perdemos o medo – e finalmente crescemos.