O Menino e o Peixe - Fábula para os dias que correm

O Menino e o Peixe - Fábula para os dias que correm

Era no tempo do nada, do tudo e do nunca: era hoje. 

Naquele tempo, em que tudo era mais difícil porque as pessoas ainda não tinham nenhum tipo de auxílio dos governos (na verdade, não tinham era governo algum, ou um quase desgoverno, ou assim a alguns parecia, ou era. Ou não era, porque tudo é sempre motivado pelas opiniões e estas a gente sabe como são: quem tem boca e junta uma palavra com a outra fala o que quer), as pessoas eram mais livres para existirem como bem quisessem, quase como os índios antes das desgraças todas que vieram com as assim chamadas "descobertas". E é aí que entra o menino fazendo xixi.

Esse menino sobre o qual quero lhes contar, entretanto, não andava por aí com a bunda de fora. Na verdade, ele morava bem distante de qualquer tribo, junto com os pais e mais seis irmãos, perto de uma floresta, que era de onde eles tiravam seu sustento. Atrás da casa deles passava um rio, correndo tão rapidamente que era difícil acompanhar a velocidade das águas com o olhar. Somente as pedras eram testemunhas do seu curso, impávidas, ou por outra, companheiras das águas, aguentando sua força incessante dentro do rio.

Então, como sempre fazia depois de comer algo pela manhã, o menino foi até o rio, baixou a frente da roupa que lhe cobria as partes íntimas e resolveu colocar bastante força para ver até onde o jato de xixi conseguiria chegar. O objetivo era fazer com que chegasse ao outro lado do rio. Ele não tinha idade suficiente para saber que nem que fosse adulto poderia fazê-lo, já que chegar ao outro lado de qualquer coisa é trabalho pra uma vida inteira, mas ele tentou assim mesmo. Colocou tanta força, tanta força, e tudo o que conseguiu foi ouvir um treeeeck, que veio da parte detrás. Ele estacou na hora, claro. Fungou para tentar sentir algum cheiro. Não tinha se sujado, foi só o susto.  Antes de retornar à empreitada, entretanto, ouviu uma voz chamando por ele:

"Ei, menino! Psiu! Ei!"
Ele parou e olhou. Era um grande peixe vermelho. Com a cabeça do lado de fora, ele gritou novamente:
"Quer parar de fazer xixi em mim?"
O Menino ficou sem acreditar naquilo, porque não sabia que peixes falavam. Mal sabia ele que existiam várias e várias histórias reunidas em livros em que não só peixes falavam, mas também vacas, leões, cabras e até árvores. Toda a fauna e a flora podiam falar, na verdade, mas pela sua cara de espanto, em oito ou nove anos de vida, só gente tinha se direcionado a ele, o que era uma pena. 

"É comigo que você está falando?", perguntou o Menino.
"Ora, claro que sim! Você está vendo algum outro menino aqui?"
O Menino ainda fez menção de olhar ao redor, para procurar outro garoto como ele à sua volta, mas entendeu que, com aquele tom de voz, o Peixe estava mesmo era sendo grosseiro e querendo dizer que era com ele mesmo. Ruborizado, olhou para o Peixe.
"Eu exijo que você pare de fazer xixi dentro do rio. Hoje. Aliás, agora mesmo".
"Mas eu já parei..."
"Eu quero dizer para sempre, garoto! Para de poluir meu rio, que ideia...!"
O Menino engoliu em seco e coçou a cabeça. Não tinha uma resposta para dar ao Peixe. E como não tinha resposta, fez uma pergunta:
"E quanto tempo é para sempre?"
Se não vivesse dentro da água e, portanto, estivesse habilitado a engolir em seco, ou se tivesse a capacidade de coçar a cabeça, o Peixe também o teria feito naquele exato momento. Suas forças para se segurar ali parado em frente ao Menino estavam se acabando, junto com a sua paciência.
"Para sempre significa dizer que nunca mais você pode jogar qualquer coisa que venha de dentro de você nessas águas onde eu estou agora. Para sempre é muito tempo. Depois que seu pai, sua mãe, seus irmãos, seus filhos e os filhos dos seus filhos já tiverem nascido e morrido."

Parece que ele não tinha noção do que dizia, mas como esse Peixe complicava as explicações, hein?

"Ah... Mas se eu nem sei quando eles vão morrer. Nem se eu eu terei filhos..."
"Por isso mesmo. Até isso acontecer, você está proibido".
"E se eu não for querer ter filhos, posso?"
O Peixe suspirou. "Também não". 
"Mas assim você está me deixando confuso!"
"Escute aqui: de hoje em dia diante, nunca mais!"
Então ele fez aquela pergunta que em teoria deveria ter sido a primeira delas, tendo ele nascido sob o signo de sagitário e sendo questionador por natureza.
"Mas por que não?"

O Peixe se esforçou para manter-se onde estava, balançando a cauda com mais força ainda. E disse então para o Menino:

"Porque é aqui que eu moro. Você está sujando o meu lar".
O Menino ponderou: é, fazia sentido. Ele já tinha visto os seus irmãos fazendo coisas que ele julgava ainda piores do que fazer xixi. Mas nesse caso...
"E você faz xixi onde?"
Adeus, paciência! O Peixe foi rápido na resposta:
"CHEGA! Você é burro ou o quê? Além do mais, já não tenho idade para ficar me esforçando tanto aqui. Não está vendo que já estou falando com dificuldade? É o esforço pra conseguir ficar parado. Você me entendeu."
Sim, ele tinha entendido. Mais ou menos, porque não tinha ficado convencido se aquilo que ele dizia fazia mesmo sentido, ou se não era apenas uma ordem, como quando seu pai dizia que era hora de parar de brincar e ir pra cama, não adiantava dizer nada contra, ou levava umas pancadas na certa. Mas achava que não estivesse muito longe da compreensão. O problema é que ele era muito curioso. Por isso, perguntou:

"Se você já é velho, qual a importância se eu ficar mijando no rio? Provavelmente você vai morrer antes de eu causar qualquer mal, não é?"
"É. Mas eu estou pensando nos meus filhos e netos. Isso aqui também é a casa deles".

Agora sim, o Menino estava satisfeito. Não se podia reduzir esse argumento, ou superá-lo. Ele entendeu que, finalmente, tinha sido vencido. E já tinha todas as respostas de que precisava, ainda que ignorasse que aquelas respostas eram muito pouco diante de tantas outras questões que iriam emergir nas suas muitas outras décadas de vida.

"Tá certo. Eu prometo..."

Mas antes de terminar sua promessa, viu o Peixe sendo arrastado pela correnteza, bater com força numa pedra e ser lançado para fora da água. E o menino ficou lá parado, vendo o peixe se debater sem ar na areia da margem, até a morte, compreendendo que nada, nem mesmo peixes que falam, podem contra a força descomunal e imponderável do tempo que passa e daquilo que não conhecemos.
O novo velho novo

O novo velho novo


Como o nosso olhar para o mundo faz com que tenhamos a ideia de que tudo é e tem de ser numa velocidade supersônica


Há algumas semanas, andei sabendo que durante a gravação de uma homenagem para o aniversário de 40 anos da apresentadora Angélica, um de seus filhos disse algo como "... apesar de estar velha, você é muito bonita". Perguntei, Qual a idade do menino? Uns oito ou nove, me disseram. Eu apenas sorri. Nada de extraordinário. É muito difícil esperar que uma criança com menos de uma década de vida consiga fazer julgamentos cronológicos corretos. Aliás, hoje em dia, com tantos artifícios para sermos mais jovens esteticamente, está cada vez mais difícil é pra qualquer um tentar adivinhar a idade dos outros. Portanto, até aí tudo bem.

Mas ocorre que dia desses fui dar uma aula em que trabalhávamos a ideia de adjetivos opostos em inglês. Bonito/feio, quente/frio, esse tipo de par que usamos, algumas vezes, para ensinar novas palavras. Pedi exemplo de algo "novo". Não lembro a resposta que ouvi do aluno, mas lembro-me bem de que fiquei satisfeito. E algo velho? Meu prédio, foi a resposta que ouvi.

Imediatamente, minha mente desceu os quatro andares e foi até uma placa que tem bem ao lado do elevador, informando que o prédio havia sido entregue aos moradores há... oito anos. O prédio considerado velho tem a idade do filho da Angélica. Só que, dessa vez, o dono da resposta não era uma criança, mas um adulto. Um adulto de mais de trinta anos.

Confesso que aquela resposta me pegou de surpresa, e me deixou muito reflexivo. Terminada a aula, fui para casa com aquilo na cabeça. Como é que alguém pode considerar um prédio de oito anos de idade (ou dez, ou doze), velho? O prédio é bonito, bem conservado, o apartamento é amplo, iluminado e arejado. Aquilo não fazia sentido.

Lembrei-me de um vídeo de 2007 chamado "A história das coisas", no qual uma ativista se propõe a explicar como entramos nessa roda-viva do consumo, como é difícil - mas não impossível! - sair dela, e os efeitos que ela causa ao planeta, uma vez que mais e mais coisas são descartadas e, não custa lembrar, temos apenas um planeta.

Lá pelas tantas ela fala do tempo de obsolescência de um produto, que pode se dar pelo tempo de uso dele, embora ele seja "desenvolvido para ir pro lixo", já que as coisas já são pensadas, em sua fabricação, em quanto tempo irão durar, ou pelo que ela chama de "obsolescência percebida", que é quando, numa época em que as pessoas estão, digamos, usando roupas sem estampas, você chegar no trabalho de camisa xadrez. A primeira coisa que perguntam é o quê? Isso mesmo: se você veio, ou vai, a uma festa de São João. Claro que, se a moda de setembro for camisa xadrez e você chegar no seu local de trabalho com uma camisa xadrez ninguém faz este questionamento, nem nenhuma outra gaiatice. 

O que faz um ser humano adulto, ciente de suas capacidades cognitivas, considerar algo que não é velho como tal? Não sei como chegamos a esse ponto, embora tenha alguns indícios. 

Vivemos cada vez mais a época do imediatismo. Tudo tem que ser para ontem. Encontrar alguém que exerça a arte da paciência, hoje em dia, é quase como ganhar na Mega Sena. Alguém tolerante, então, nem se fala. Tudo virou a mais absoluta pressa, que parece estar diretamente associada à nossa capacidade de produção. Quanto mais rápido se produzir, mais volume se obtém - e isso não significa qualidade, não custa lembrar. Basta olhar para essas franquias de fast-food, onde se chega, pede-se a comida apontando o dedo para um número, paga-se por ela e recebe-a no balcão ao lado. E você ainda sai com a sensação ridícula de que está ganhando tempo para fazer outras coisas, quando o mais estranho é que a impressão cada vez mais pungente é a de que quanto mais inventamos coisas para nos poupar tempo, menos tempo temos para fazer as coisas de que realmente gostamos. 

Os alunos têm pressa de sair do livro 1 e ir para o livro 2, não importa se realmente aprenderam o que está no primeiro livro, o que importa é ter a ideia, ainda que falsa, de "evolução". Não é à toa que essas pessoas se submetem a provas de proficiência e não passam.

Fazer lista virou moda. Quantos filmes se viu num ano, quantos livros se leu, para não falar de listas com sabor mais pueril, como com quantos se ficou no período de 365 dias, ou quantos quilos se perdeu a cada nova dieta. Parece que temos uma auto-imposta urgência de viver, uma sensação de que, se não corrermos, estamos falhando com os outros e com nós mesmos, ou fadados a isso. A ideia tacanha do carpe diem, que aplaude a intensidade em detrimento do prazer lento, degustado, observado, sentido. Qual o sentido disso, mesmo?

Quantas amizades verdadeiras temos? Não falo de "amigos" de redes sociais, nem de amigos que só lembram que você existe quando a saída atende pela ideia de farra. Refiro-me àquelas pessoas que sabem das suas mazelas, que têm seus segredos compartilhados, que lidam com suas idiossincrasias, para os quais se pode ligar precisando a qualquer hora e não serão repudiados. Aposto com você: são bem poucos, a ponto de se contar nos dedos de uma só mão. Ser amigo e ter amigo dá trabalho. É tarefa pra uma vida inteira. São essas pessoas que veem você entrar e sair de relacionamentos (e que muitas vezes se tornam o nosso mais longo relacionamento ao longo da vida), que colocam a mão ou a cabeça sobre o seu ombro durante os momentos complicados da sua vida, e em tempos de relacionamentos descartáveis, em que a menor dúvida, chateação ou contrariedade fazem você querer mudar de amigo (ou de namorado), amizade é, por assim dizer, artigo de luxo. 

Não é tarefa simples nem fácil, mas a verdade é que cada vez mais se faz necessário fazermos este olhar para dentro. Não quero dizer aqui algo em torno de uma busca espiritual, mas um olhar para o nosso próprio eu, aquilo com o que nos identificamos e nos faz ser quem somos. Observar a vida com mais vagar é uma constante busca numa época em que é tudo tão veloz (e fugaz) e que, quando menos esperamos, se foi. 

Vivemos a época do efêmero, em que ter é a palavra de ordem. Ter, e jogar fora quando ficar velho, evidentemente. É difícil olhar para as coisas e pessoas ao nosso redor e não julgá-las pela cronologia observada em seus detalhes. Mas é hora de não compactuarmos mais com esse tipo de mentalidade. Tudo tem o direito de envelhecer, seguir seu ciclo. Sejamos nós ou os móveis da casa - mas tudo no seu devido tempo. Para isso, é preciso cultivar aquela arte antes mencionada, a do olhar para dentro, que claro, é o desafio de uma vida inteira para mim, para você, para qualquer ser vivente.

Enquanto viver bem for uma meta, como é uma meta para um corredor chegar em primeiro ou um boxeador arrasar com seu oponente, e não um motivo para vivermos, vamos sempre ser egoístas, embrutecidos e termos uma abordagem limitada diante da vida. No dia em que finalmente despertarmos para a importância do coletivo, de saborearmos as coisas simples (o prazer de ler um bom livro sem pressa, ouvirmos uma boa música, bebermos um bom vinho, ou mesmo um vinho não tão bom, mas em boa companhia, por exemplo) e cultivarmos o saber, ao invés de compreendê-lo como uma posse, aí sim, olharemos para o mundo com a ternura e delicadeza que ele tanto tem precisado.
Nu, de botas - de Antonio Prata

Nu, de botas - de Antonio Prata



A infância retratada de forma despudorada e perspicaz pelo olhar de um dos nossos melhores cronistas contemporâneos




A leitura desse livro começou com um equívoco.

Eu ando acompanhando relativamente de perto - ou não tão perto assim, como ficará claro daqui a pouco - a trajetória da série Amores Expressos, polêmico projeto que enviou autores brasileiros para os mais diversos lugares do mundo - Berlim, Tóquio, Lisboa são só alguns deles. A ideia inicial era utilizar o patrocínio da Lei Rouanet, o que acabou não acontecendo depois de tanta confusão na mídia. Eles deveriam voltar desses lugares e escrever uma história que tratasse de algum tipo de amor. Lá eles também foram acompanhados por um câmera filmando sua interação com a cidade, e havia - ou há, não sei ao certo - a ideia de que alguns dos livros possam virar filmes. 

O certo é que eu havia lido em algum lugar que o Antonio Prata era um dos que haviam ido e que Nu, de botas (Companhia das Letras, 140 páginas) seria sua primeira obra de ficção, a sair pela tal série, em sua totalidade lançada pela Companhia das Letras (desde que o livro fosse aprovado, e já se sabe que nem todos foram, fora os autores que, mesmo tendo ido, abandonaram o projeto de escrever um livro sob encomenda).

Só que a coisa não foi bem assim. Eu comprei o livro certo de que era o tal livro dele da série. Acontece que, pelo que tenho observado, a Companhia das Letras tem buscado fazer duas coisas nos últimos tempos: ajudar a revigorar certos gêneros meio adormecidos no Brasil: a crônica e a poesia. Assim, tem publicado vários autores desses dois gêneros, que até bem pouco tempo não eram muito a seara da editora (e eles até diziam isso em textos e vídeos institucionais). 

Quando o livro chegou, nada d'eu encontrar referência alguma à série na capa, na última capa, nada. Quando abri o livro, li lá nas informações técnicas: "Crônicas brasileiras". Pois bem: então eles convidaram o Antonio Prata, que tem sido apontado como um dos grandes novos nomes em se tratando de crônica brasileira, para publicar um livro de crônicas, e não o tal romance... Tudo bem, então! "Tudo bem" porque eu já tinha lido uma coletânea dele, tinha achado bastante interessante, e depois passei a lê-lo na internet - e foi o que fez com que Nu, de botas pulasse vários outros livros da fila e fosse lido com o cuidado e o prazer que o pequeno volume merece.


Antonio Prata

Não me arrependi. Pelo simples motivo de que é impossível. Com humor, delicadeza, grande sensibilidade e espirituosidade, Antonio Prata nos leva a revisitar cada momento porque passamos durante a infância. Os amigos que vamos conquistando, as brigas com esses mesmos amigos, com os irmãos ou pais, as férias, os avós, as descobertas da infância, o excesso de imaginação, o primeiro amor, o desejo, as frustrações. Está tudo lá. 

Há, claramente, textos melhores que outros, mas não existe uma só crônica ruim. Aliás, como todo o livro encerra o mesmo tema - a infância - é complicado saber onde termina a memória e começa a invenção. Nem poderia ser diferente, já que as crônicas (disfarçadas de contos, ou contos disfarçados de crônicas; ou ainda crônicas-contos) resgatam lembranças de quando o autor tinha três, quatro anos, até uns dez ou onze. Não há como lembrar claramente todos os episódios narrados, é claro, e o próprio autor já declarou isso. 

A beleza da sua arte reside justamente aí. Ler Nu, de botas equivale a minutos gastos neste lugar onde tantos reclamam de não poderem mais estar (o que não é o meu caso: eu não voltaria nem por meia hora à minha própria infância). A coletânea, entretanto, não tem tom nostálgico, bucólico nem saudosista; é, antes, uma reunião de textos que celebram um período a um só tempo mágico, fantástico e surreal - e que diz tanto sobre a nossa realidade enquanto adultos.

Eis aí, na nova obra de Antonio Prata, um livro para ser lido não apenas por quem gosta do gênero, mas por todos aqueles que são capazes de olhar com leveza e perspicácia para dentro de si mesmos e ainda assim serem capazes de encarar o mundo sorrindo. 

As Avós, de Doris Lessing













Quatro anos antes de receber o prêmio Nobel de Literatura, e já contando 84 anos, Doris Lessing (1919-2013) publicou um livro chamado The Grandmothers: four short novels (As Avós: quatro romances curtos). Aqui no Brasil, retiraram o romance que dá título à coletânea e publicaram de forma independente. Assim é que As avós (Companhia das Letras, 104 páginas) chegou ao leitor brasileiro em 2007, numa tradução execrável de Beth Vieira, que eu custo a acreditar que tenha sido aprovada pela Companhia das Letras, mas sobre isso falo mais adiante.



Sempre tinha ouvido falar nessa escritora, mas nunca tinha me atentado verdadeiramente para os seus escritos. Em mais de 60 anos de carreira, Doris Lessing fez-se pública ao mundo nas mais diversas formas: romances, contos, novelas, peças. Sua verve, ao que parece, conseguia conceber desde tramas que descrevem lugares comuns, a tramas de ficção científica - pelo que foi enormemente criticada. 

Era também conhecida por ser uma mulher que não esperava se fazer ouvir somente quando publicasse algo: suas declarações, muitas das quais polêmicas, deixaram marcas em sua carreira. Por exemplo, quando comentou que o ataque sofrido pelos Estados Unidos em setembro de 2001 como algo que "não foi tão terrível assim, se comparado aos estragos causados pelo Exército Republicano Irlandês por décadas". Ou, em 2007, quando chegou em casa, viu um amontoado de repórteres na frente da sua casa, desceu do carro meio claudicante, no que um repórter enfia um microfone no rosto e pergunta: "A senhora não está sabendo da notícia?", ao que ela responde, lacônica e confusa: "Não". "Você ganhou o prêmio Nobel de Literatura", informa o repórter a ela. Sua reação: "Oh, Cristo!", e acrescenta: "Eu não dou a mínima". 

Ela não fazia polêmica por fazer. Era uma mulher engajada social e politicamente. Fez discursos contra o sexismo, a guerra do Vietnã, e praticamente todas as questões de seu tempo, além dos diversos fatores envolvendo as questões religiosas do seu país de origem, o Irã (na época em que nasceu, Pérsia), apesar de ser filha de britânicos.

As avós me foi sugerido por uma amiga, e vendo sua empolgação, voltei quanto à minha declaração a mim mesmo de que não iria lê-la tão cedo (não lembro de ter demonstrado essa falta de interesse a mais ninguém e, além do mais, quem se importa?).

O romance gira em torno de duas mulheres, Roz and Lil, que são amigas íntimas desde a infância. A relação que têm uma com a outra é a mais duradoura e mais forte da vida de ambas, sobrevivendo aos seus próprios dilemas domésticos. 

A trama começa numa praia idílica, dando ênfase a um personagem - uma garçonete de um café que fica nas cercanias do local - cuja relevância na trama é justamente ser esse olho externo observando o que se passa, como se fosse o olhar do leitor. Na verdade, o leitor passa a ser aquele personagem. A cena envolve as duas senhoras, duas garotinhas e dois homens mais jovens, todos à beira da praia. Enquanto a garçonete olha o que se passa, ela vê uma mulher caminhando furiosamente na direção do grupo com uns papéis na mão, pegar as duas crianças, dizer umas coisas com as mulheres e sair dali. Do lado de cá da página, o leitor é capaz de sentir o ódio fulminante da personagem. Ao invés de nos contar o que aconteceu, a autora corta a cena e nos leva ao momento em que Roz e Lil se conhecem, na pré-escola, e todos os seus caminhos a partir daí, como a escolha dos esposos, a compra de casas vizinhas e até o nascimento de seus filhos em datas aproximadas.

Doris Lessing consegue descrever, num parágrafo, grandes momentos da vida das protagonistas, e torná-las personagens críveis. E é assim, de um parágrafo para o outro, que compreendemos por que o marido de uma delas resolve sair de casa, o que acontece com o marido da outra, abrindo espaço para uma nova intimidade na relação das amigas, e também para o que acontece em seguida com todos os personagens. 

A trama me pareceu um pouco previsível, o que não é importante. Não se trata de um romance de mistério, afinal. O que acontece aos personagens não é se não consequência dos seus próprios atos, desejos e maturidade - ou falta dela. Doris Lessing construiu avós firmes, dínamos capazes de agir conforme suas vontades, ao mesmo tempo em que também descreve seus medos e incertezas. 

O romance, lido num só ou em poucos fôlegos, seria uma leitura ainda mais preciosa, não fosse a péssima tradução, que macula a obra e faz o leitor se esforçar pra entender traduções literais de expressões idiomáticas do inglês, por exemplo. A tradutora carrega na literalidade, e demonstra seu total desinteresse e falta de compromisso com a obra. Não compreendo como a editora conseguiu dar o aval para uma edição tão bonita sair com uma tradução tão mal-feita e inescrupulosa.

Contudo, foi um bom começo, já que este foi meu primeiro livro de 2014. Infelizmente, Doris Lessing traduzido por Beth Vieira, nem de graça.
Um para cada mês: a retrospectiva literária 2013 (Alguns livros que você poderá gostar de ler em 2014)

Um para cada mês: a retrospectiva literária 2013 (Alguns livros que você poderá gostar de ler em 2014)


Talvez porque eu não seja lá muito adepto de listas, ano passado não fiz uma retrospectiva literária - e olha que foi um ano no qual li muito mais coisa interessante do que nesse que passou. 

A verdade é que eu mesmo senti saudade do formato. É uma boa oportunidade para que eu possa pensar sobre o que ando lendo, e como tais obras me afetam, passados quase trinta anos desde que aprendi a ler.


Assim, a lista que se segue tem, ao lado das informações básicas do livro, as minhas impressões ao lê-lo, sem ordem de preferência. Ei-las:  


01) O ano do pensamento mágico, de Joan Didion




Comecei a ler este livro por causa de uma crônica da sempre genial Vanessa Barbara, sobre pessoas que escreviam longos relatos sobre a perda de companheiros de uma vida. Como sou leitor da Vanessa e suas dicas geralmente vão ao encontro das coisas que eu também gosto de ler, não hesitei e saí procurando alguns livros mencionados no texto dela. Este foi o primeiro. É um livro lindo, delicado e ao mesmo tempo bastante forte, sobre a vida de uma escritora que, de repente, ao voltar de uma visita que fizera à filha hospitalizada, perde o marido enquanto se preparavam para jantar, e o que ocorre a partir daí. Li o livro em dois dias, com o coração na mão. Não se trata de uma narrativa pesarosa, dessas que nos fazem querer sair pra algum lugar fumar um cigarro e chorar até a desidratação. Ao contrário: é um livro que mostra que a vida, que jamais será a mesma e será sempre um pouco pior, não chegou ao fim porque ainda se tem muito a viver. Uma das melhores leituras do ano.


02) A borra do café, de Mario Benedetti




Leio Benedetti como quem visita um velho amigo para uma tarde na varanda. É nesse tom entre nostálgico e memorialístico que se encontra o livro acima. Aqui, somos presenteados com a história de Claudio e seus anos de infância, suas descobertas, seus sonhos, medos, paixões, toda a sorte de coisas que faz de nós quem somos. Mario Benedetti, que também foi poeta, escreve de uma maneira cativante, como se conduzisse o leitor pela mão, com a gentileza de quem sabe usar a delicadeza para o benemérito de todos. Ler a história de Claudio é também ler a história do próprio autor, e a de cada um de nós, posto que somos transportados para a criança que um dia fomos. É um romance quase onírico, e arrebatador.


03) O professor do desejo, de Philip Roth



Ler Philip Roth é sempre uma experiência que tem muito de prazerosa e um pouco de masoquista. A primeira porque, pra quem gosta de ler, impressiona a forma como este homem escreve. O poder da sua narrativa, das suas palavras, cada qual cuidadosamente colocada dentro das frases, formando parágrafos e mais parágrafos de uma narrativa absurdamente genial, torna o leitor profundamente envolvido com as questões que evoca. A segunda é motivada pelo fato de que Roth nos causa dor. Lê-lo é sentir na carne e na alma o peso de sermos quem e o que somos. Neste romance, nos deparamos com um personagem que narra sua vida desde a infância, quando descobriu pela primeira vez o que o desejo significa, até a maturidade, quando este mesmo desejo atinge outros tons e significados. Atendo-se a uma vida um tanto hedonista, o protagonista é capaz de olhar para trás e ver o que suas escolhas - tão nossas - foram capaz de causá-lo. Impossível sair intocado deste romance brilhante.


04) La ridícula idea de no volver a verte, de Rosa Montero



Fazia alguns anos que eu não lia nada da espanhola Rosa Montero. Não por falta de oportunidade - tenho vários livros dela aqui por ler - , eu apenas achava que, depois de ter lido um que não me calou tão fundo como obras anteriores, se fazia necessário esperar um pouco mais.  Dizendo assim parece que não gosto tanto de seus livros, e isso não poderia estar mais distante da realidade. Os livros da Rosa são sempre obras delicadas, tecidas por quem tem não apenas o domínio da escrita, mas também a arte de fazê-lo bem feito. La ridícula idea de no volver a verte, que infelizmente ainda não tem tradução para o Português, é dessas obras que fazem a vida valer a pena. Inclassificável por natureza (não se pode dizer se se trata de romance, biografia, ensaio ou autobiografia, sendo na verdade um misto de tudo isso), o livro é um belo tratado sobre a perda. Um tema espinhoso, quando tratado com delicadeza, resulta em nada menos do que uma obra de arte. Quando terminei este livro, passei por um longo período de luto, em que nada que eu lesse me chamava a atenção. Abandonei diversos livros, até que, finalmente, outro veio a me cativar. Este livro tem esse poder. Literatura não apenas de altíssimo nível, mas uma obra igualmente inesquecível. O melhor livro de 2013, sem dúvida!


05) Divórcio, de Ricardo Lísias



Comecei a ler Divórcio tentando decifrar sua bela e enigmática capa. E claro, o título, que, junto a imagem, tem o poder de traduzir diversas sensações na captura de um possível leitor. Assim que pude, agarrei o livro com vontade, e o li em poucos dias. A obra é densa, tensa, e de uma força capaz de levar-nos até seu final, sem jamais perder o fôlego. Antes desse, havia lido um outro romance do autor, do qual também gostei muito. Ricardo Lísias tem se mostrado uma voz marcante na jovem literatura brasileira, desses autores impossíveis de ignorar. A trama, que traduz tanto o desejo de recuperação quanto um senso de vingança, é deliciosamente posta ao leitor de maneira quase onírica, brincando com a nossa capacidade de estarmos diante de um delírio, ou da mais cruel realidade. Uma das melhores leituras de 2013!


06) O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe



Valter Hugo Mãe tem uma sensibilidade arrebatadora. Ler os livros deste angolano (mas criado em Portugal desde a infância) tem um sabor de poesia indescritível. Sabe essas leituras em que você pensa: "Mas esse escritor não pode ser normal!"? Pois Valter Hugo Mãe é desses. Não é "normal" no sentido de que sua escrita é rara, sua narrativa é terna, e ao mesmo tempo pungente. Li O filho de mil homens sem fazer grandes expectativas, já que tenho uma série de amigos que o leram e colocam-no na mais alta conta. Tentei não me deixar contagiar por esse sentimento e acabar me decepcionando. O livro conta a história de Crisóstomo, homem que chega aos 40 anos sem nunca ter tido um filho. A partir dessa simples questão, nos deparamos com dilemas absurdamente humanos, ao mesmo tempo em que o autor nos chacoalha com toques de realismo fantástico, concatenando o real com uma realidade absurda, de que também é feita a vida. Leitura inesquecível e obrigatória. 


07) Noites de alface, de Vanessa Barbara



Primeiro romance de Vanessa Barbara em parceira "dela com ela mesma", como ela disse numa entrevista, Noites de alface é uma história a um só tempo especiosa e divertida. De maneira eloquente, Vanessa nos apresenta diversos tipos humanos, cada qual mais improvável mas, ao mesmo tempo, absolutamente reais. O livro trata, inicialmente, da história de um homem que perde sua esposa. Como ele se inteirava do que ocorria no mundo e na sua vizinhança através dela, seu mundo agora é uma clausura. Aos poucos, seus vizinhos vão se imiscuindo em sua vida, até que logo todos estão envolvidos uns com os outros de maneira irrevogável, até que um certo mistério acontece, e a trama vai se tornando mais, digamos, espessa. Li este livro um dia antes de sair de um hotel e terminei-o no avião. Adorei a companhia, que me levou para dentro de um universo sem igual, construído por quem tem o dom de escrever bem. 


08) Sangue quente, de Claudia Tajes



Sempre que alguém quiser saber a quantas andam as agruras do mundo masculino e feminino, as eternas questões das relações e da dimensão humana, e como se dão as muitas estratégias para fazer com que ambos os sexos se compreendam, ou não, deve-se ler Claudia Tajes. Seus livros são pequenos tratados sobre as questões aparentemente comezinhas da humanidade, mas que - sabemos - são na verdade as grandes questões. Afinal, a maioria das pessoas prefere saber se aquele seu possível affair vai ligar de volta ao possível teste nuclear que a Coréia do Norte vai fazer semana que vem. E essas questões, tratadas com humor e muita verdade, fazem de Claudia Tajes uma autora pra não se deixar de ler e acompanhar. Em seu primeiro livro de contos, o que o leitor tem nas mãos são justamente pequenas pérolas evocando essas questões todas fazendo-nos não apenas rir, mas também refletirmos sobre os sentimentos mais tresloucados que habita em cada um de nós.


09) Dentro de ti ver o mar, de Inês Pedrosa



Dizer que os autores lusófonos da contemporaneidade têm muito a ensinar aos autores brasileiros pode parecer ligeiramente agressivo, mas essa é a impressão que tenho ao ler nossos compatriotas. Como muitos, descobri Inês ao ler Fazes-me falta, e fui arrebatado de cara. Também vale dizer que gostei de todos os romances que li posteriormente, mas nenhum tanto quanto o primeiro deles. Isso, até ler Dentro de ti ver o mar. Li entrevistas da autora em que se via seu ar de ressentimento, embora fazendo graça, por sempre ser lembrada pelo romance de 2002. Dizia ela que gostaria de acreditar que o romance mais recente deveria ser sempre superior ao antecessor (algo com o que não concordo, dela ou de qualquer outro autor). Pois olha, Inês, de verdade: 10 anos, 1 livro de contos e três romances depois, você conseguiu. O romance conta a história de três mulheres em busca de suas identidades. Rosa, cantora famosa que vive um romance com um homem casado, que mantém um casamento de aparências e tem medo de viver um amor verdadeiro, sai em busca do pai no Brasil; Farimah, que vai a Portugal para se livrar das amarras da cultura imposta pelo seu país de origem e se casa com um gay para poder ficar no país, até apaixonar-se verdadeiramente e buscar viver esse amor, e Luísa, que engravidou ainda cedo, deu o bebê para adoção para ver-se livre de alguém que pudesse impedi-la de viver sua vida plenamente. Três mulheres intensas, extremamente bem construídas pela narrativa poética e cativante de Inês Pedrosa. Com a capacidade de nos fazer amar e odiar seus personagens em igual medida, a autora torna suas histórias também as nossas. Um livro esplendoroso em sua força e verdade.


10) Vitória Valentina, de Elvira Vigna



Recebi a graphic novel Vitória Valentina com uma alegria no olhar que só em criança lembro de ter sentido. Porque é um romance ilustrado, inédito, de uma autora que eu tanto admiro por seus romances capazes de nos fazer sairmos de nós mesmos. Vitória Valentina surgiu de uma trama que a autora tinha de quando ainda escrevia livros juvenis. Aquela história que nós tão bem conhecemos do tráfico e suas consequências inefáveis. Só que, da forma como é contada pela autora, com suas inúmeras idas e vindas, sub-tramas e construção quase caleidoscópica, o livro se torna um pequeno tratado sociológico, ao mesmo tempo em que leva o leitor a construir sentido através de imagens feitas pela própria autora, imagens que mostram toda a personalidade dos seus personagens e da sua escrita, num livro que dá gosto de ter nas mãos. É o tipo de livro que nos faz querer ler tudo da autora. Uma obra-prima.


11) O corpo, de Hanif Kureishi



Descobri Hanif Kureishi por acaso, num desses presentes que são quase um milagre que a vida traz. Gosto de passear por alguns blogs de literatura e, ao ler os comentários numa determinada postagem, alguém falou nesse autor. Fui pesquisar e acabei adquirindo um livro dele, um pequeno romance. O Corpo é um outro pequeno romance, no Brasil publicado pela Companhia das Letras com o título de O Corpo e outras histórias, já que a edição brasileira tem ainda alguns contos após o romance. Hanif Kureishi, assim como Philip Roth e Paul Auster, são mestres na arte de nos fazer refletir sobre a condição humana. Penso até que suas prosas se aproximam e, em determinados momentos, se interseccionam. Neste romance, Kureishi conta a história de um velho dramaturgo que tem a possibilidade de colocar seu cérebro no corpo de um jovem de 25 anos. Misto de Frankenstein e O retrato de Dorian GrayO Corpo evoca as questões antigas dos limites da vaidade, da ciência, e por quê que querer e poder devem sempre ser vistos com cautela, uma vez que, feitas as escolhas, também temos que lidar com suas consequências. Esse livro é prova segura de que um assunto antigo, até mesmo desgastado, quando manipulado por uma mente hábil, torna-se inesgotável.

12) Grande irmão, de Lionel Shriver



A leitura que pessoalmente foi a mais difícil pra mim em 2013, que terminei com chave de ouro (li ainda dois livros depois deste, mas não bons o suficiente para figurarem entre os 12 melhores do ano). Mais difícil porque o assunto - a luta para se perder peso num mundo que nos impele a ceder cada vez mais às tentações - me toca profundamente. Apesar da capa feia, o conteúdo, que é o que realmente importa, é primoroso. Uma mulher que luta para salvar o irmão da compulsão por comida, arriscando seu próprio casamento, é o mote do livro que se dignifica a nos fazer refletir sobre um dos temas mais atuais no mundo consumista de hoje. Com personagens densos e um vocabulário que foge de chavões, Lionel Shriver conduz uma trama repleta de acontecimentos que nos obrigam a parar para pensarmos sobre como temos tratado a nós mesmos quando o assunto é a alimentação. Um livro forte, poderoso, arrebatador, características não apenas deste, mas dos outros romances de Lionel Shriver.