Passando o ano literário a limpo






Consegui uma façanha que se assemelha a um milagre, se neles eu acreditasse. Trabalhando quase 10 horas por dia, as vezes mais, ainda assim li 48 livros no ano de 2010. E olha que foi no mesmo ano em que eu encontrei o Amor da minha vida, tive mais alunos particulares, além dos da escola, e ainda estudando pesado... Como consegui? Não sei, não tenho fórmulas pra nada nessa vida.


Gostaria, entretanto, de mencionar alguns desses livros. Provavelmente deixarei algum muito bom de fora, mas não quero que isso aqui vire uma lista gigantesca, então escolhi alguns (sem ordem de preferência).


01) NORWEGIAN WOOD, de Haruki Murakami

Foi o primeiro livro do autor que li depois do excelente Kafka à beira-mar. Confesso que ainda gostei mais do primeiro, que é inesquecível, mas esse não fica atrás. Trata-se de um excelente romance de formação. Das idas e vindas da vida durante o período da adolescência até a fase adulta e além. Trata-se, basicamente, desse período da vida de Toru Watanabe, e de suas viagens para dentro de si mesmo. Seus medos, suas derrotas, fragilidades, conquistas. O único livro do autor que não tem nenhuma cena de realismo fantástico. Vale MUITO a pena ser lido.


02) NEMESIS, de Philip Roth

Nemesis foi lançado no final de 2010, e eu o li assim que consegui meu exemplar. Trata-se da história de Bucky Cantor, um diretor de um playground, repleto de valores morais que o atingem em cheio quando ele se vê diante de dilemas do mundo de 1944 que o cerca: vivendo num período pré vacina contra polio, Bucky vê as crianças do seu playground sendo afetadas pela doença, ficando para sempre paralíticas ou mesmo morrendo, quando ele nada pode fazer. É então que surge uma oportunidade dele fazer algo por si mesmo. E essa decisão vai dar o tom e a forma de sua vida pelo resto dos seus dias.

Temos aqui, mais uma vez, a característica mais tocante de Philip Roth, que é questionar os valores humanos, o fator do tempo que urge, e as decisões que tomamos que são capazes de mudar toda uma existência. Uma história simples, contada por um dos maiores escritores de todos os tempos, e um sério candidato ao Nobel.


03) EU VOS ABRAÇO, MILHÕES, de Moacyr Scliar

Um dos meus grandes arrependimentos na vida é só ter descoberto esse grande autor depois dos anos 00, quando eu já contava mais de 20 anos. Moacyr Scliar lançou este romance magistral ano passado. A trama é aparentemente bem simples: Valdo, um jovem apaixonado pela leitura, se aproxima de Geninho, um jovem apaixonado pela leitura de livros que tratam do comunismo. Encantado com a oratória de Geninho sobre as desigualdades do mundo, Valdo resolve sair do interior onde mora para mudar o mundo com ideias comunistas, e assim segue rumo ao Rio de Janeiro, onde buscará livrar o mundo da opressão social. Mas quando lá ele chega, compreende que se torna mais um dentro de um caleidoscópio gigantesco onde os grilhões são por demais fortes, e tentar abraçar o mundo já não é uma possibilidade na qual valha a pena apostar suas convicções.

Neste romance estupendo, Moacyr Scliar nos leva a um momento histórico de nosso país de forma a nos inserir realmente no contexto, buscando nos fazer refletir sobre nossas convicções acerca daquilo que somos, das mudanças que efetuamos em nós mesmos ao longo do caminho - muitas vezes contra nossa vontade - mas, sobretudo, da capacidade de nos reinventarmos. Leitura fascinante.


04) A ELEGÂNCIA DO OURIÇO, de Muriel Barbery

Peguei neste livro por acaso. Estava perscrutando as mesas com diversos livros numa livraria para a qual gosto de ir, quando vi esse livro, li a história, era da Companhia das Letras - o que por si só já é quase garantia de ser um excelente livro - e resolvi levá-lo. Meses depois, eu já tinha comprado outros sete exemplares, pra sair dando de presente a algumas pessoas que amo.

Muriel Barbery dá voz a Renée, zeladora de um prédio onde as coisas são aparentemente pacatas. Mulher ranzinza, de tom amargo e pesaroso, Renée se mostra ser, na verdade, a dona de um olhar arguto e de uma mente perspicaz, que vai se misturar á voz de Paloma, a caçula de uma família que reside no prédio. Menina-prodígio, mas nem por isso fazendo tipo de intelectual sempre, sonha que todos com quem mora morressem, e para que isso aconteça, ela bola um plano. No meio disso tudo aparece Kakuro Ozu, um senhor japonês que se tornará o grande ponto de equilíbrio do romance, e nos mostrará que muitas vezes, existem sentimentos e valores fortes o suficiente não só para nos mostrar quem somos, mas para que possamos salvar-nos a nós mesmos.

Livro de rara sensibilidade e delicadeza, onde questões filosóficas e psicológicas se interseccionam, A Elegância do Ouriço vem para que nós possamos nos desnudar, extravasar os nossos lados claros e escuros e, nessa passagem, compreender melhor que nós somos.


05) INVISÍVEL, de Paul Auster

Um dos romances mais controversos de Paul Auster (por conter uma questão de incesto), é também um dos que melhor coloca a pergunta que se repete a esmo dentro de nós: olhando para nós mesmos, quem vemos?

O livro é narrado por Adam Walker, que rememora o ano de 1967, considerado por ele um divisor de águas em sua vida. Foi nesse ano que ele encontrou Born, um professor universitário, e sua misteriosa esposa, que se aproximaram dele para tornar o seu sonho de ser um poeta publicado, real. Mas um evento fatídico ocorre, e é então que outros personagens passam a se intercalar na narrativa do livro, como sua irmã, seu colega de faculdade, hoje um autor de sucesso, e uma enteada francesa de Born.

O livro nos coloca diante de nós mesmos, daquilo que de mais caro carregamos dentro de nós, ainda que não saibamos em que meandros essas coisas podem estar, ou ter ido parar.


06) OS ÍNTIMOS, de Inês Pedrosa

Temos aqui um contraponto na literatura de Inês Pedrosa, que fez história em Portugal e no Brasil quando lançou seuFazes-me Falta, um livro que marcou, sem dúvida, a literatura lusitana.

Em Os Íntimos, Inês se propõe a narrar o universo dos homens, de cinco homens que sempre se reúnem num bar para conversar de tudo um pouco. O livro é, portanto, um retrato do mundo masculino contemporâneo, denotando, para o nosso deleite, o que vem a ser o mundo marcado pela figura do homem, o que vem a ser intimidade para seres do sexo masculino, e em que tons difere do que seja intimidade para as mulheres. Assim, temos uma obra plural, baseada na fragilidade e na força daqueles que, sabidamente, por muito tempo têm sido os que fazem os grandes desmandos pelo mundo, através de uma lente de aumento pela qual, sem dúvida, vale a pena se olhar.


07) TODA MAFALDA, de Quino

Esta obra reúne todas as tiras de Mafalda e "sua turma" criadas pelo cartunista argentino Quino. Mafalda, que tinha tudo pra ser um personagem datado, por representar as lutas de uma época em que a sociedade reivindicava por questões - pelo menos parcialmente - já elucidadas, desamarrou-se de suas correntes e tornou-se um dos cânones dos quadrinhos, por assim dizer. A obra é linda, o volume é fantástico, e saímos da leitura com a certeza de que temos ainda muito com o que nos indignar diante da vida, que nos inconformar é condição sine qua non para continuarmos vivendo.

08) A ILUSÃO DA ALMA, de Eduardo Giannetti

Coloco aqui o que está na página da editora sobre o livro:

A ilusão da alma é o relato em primeira pessoa de uma perturbadora conversão filosófica. Após a retirada de um tumor cerebral que o deixa parcialmente surdo, um jovem professor de literatura, especialista em Machado de Assis, isola-se do mundo e passa a viver, entre livros e livros, absorvido por uma paixão intelectual: o estudo da relação entre o cérebro e a mente.
Do embate entre Sócrates e Demócrito no iluminismo grego do século V a.C. aos achados e espantos da moderna neurociência, a trama do livro descreve passo a passo, com detalhe e precisão, mas sem perder a visão de conjunto, a viagem de descoberta do narrador pela história das ideias.
A aventura, contudo, tem um desfecho inesperado, pois à medida que avança nos estudos o protagonista se descobre nas malhas de um credo obsessivo e aterrador: a ideia de que tudo que lhe passa pela consciência - suas alegrias e tristezas, suas memórias, temores e esperanças, seu senso de identidade e sua sensação de liberdade ao agir no mundo - nada mais é senão o produto da atividade de bilhões de células nervosas situadas em seu cérebro. A paixão de conhecimento que nele desperta após a cura do tumor físico dá lugar a um tumor metafísico - uma crença despótica alojada no cerne da consciência anfitriã.
Urdindo com engenho ficção e ensaio, relato confessional e argumento filosófico, A ilusão da alma é uma meditação corajosa sobre a condição humana - uma sinfonia contrapontística sobre a incerteza e a fragilidade do que estamos habituados a crer e pensar sobre nós mesmos. Um livro, em suma, endereçado a todos aqueles que, independentemente de formação acadêmica ou ocupação profissional, mantêm viva a chama de uma irrefreável curiosidade em torno daquilo que o enigma humano, desvendado, possa abrigar.
“Para encontrar a alma”, dizia o neuropsicólogo russo Alexander Luria, “é necessário perdê-la”. O risco, entretanto, como atesta o drama do narrador deste livro, é fazer da ciência uma religião; é perder a alma para não mais encontrá-la. E se a busca da verdade científica sobre o Homo sapiens resultar na descoberta do nosso autoengano cósmico? E se a retidão cognitiva desaguar, por fim, na loucura? O que prevalece: a verdade a todo custo ou a sanidade mental?

O que posso dizer, com toda a sinceridade, é que concordo com tudo o que está escrito acima.


09) QUEM SOLTOU O PUM?, de Blandina Franco

Se por muitas vezes me acho ranzinza demais, tento trabalhar pra que a criança que habita em mim não mora de desnutrição. Às vezes vou a lugares com amigos e como com a mão - quando todo mundo fica "burguêsmente" cortando seu sanduíche com garfo e faca.... urgh! - , matando todo mundo de vergonha, e por aí vai.

Foi com uma alegria tremenda que me deparei com este livro lindo, Quem soltou o Pum?. E sim, é um livro lindo, voltado para crianças com um cognitivo um pouco mais amadurecido, pra que se possa entender os trocadilhos, já que o Pum é um cachorro e seu dono, o narrador da história, não consegue mantê-lo preso. Então é um tal de soltar o Pum no jantar diante das visitas, soltar o Pum na frente dos familiares, que em dia de chuva o Pum fica mais fedido etc etc.

Você não sairá da leitura se sentindo um Einstein. E nem é essa a proposta. O que certamente acontecerá é que, terminada a leitura desse livro lindo, com ilustrações não menos lindas, você sentirá seu rosto mais suave, seu corpo mais leve, sua alma mais acarinhada. E o que é isso se não o fato de que você terá rejuvenescido pelo menos uns cinco anos? Dê esse livro para a sua criança interior.




Amizade em parcelas


Quando a gente pensa que já viu de tudo nessa vida, sempre aparece algo novo pra nos provar que a capacidade de inventividade do ser humano não tem limites - e isso vale pro bem e pro mal.

Eis que eu passava por uma famosa rua de Fortaleza, quando vi uma campanha de uma empresa local (que eu achava que era nacional até pesquisar na internet) se prestando ao serviço de oferecer filhotes de cães por meio de consórcio.

Se você quer ter aquele cão de raça caríssima mas não tem alguns milhares de reais pra investir, não tem problema: você paga aos poucos até a hora de receber seu cão. Ou seja: você vai comprando um bicho que dizem ser o melhor amigo do homem em parcelas. Você está investindo, literalmente, numa futura amizade. Só que é aos poucos, já que você não pode fazer isso assim, de pronto, como as madames da cidade fariam.

O que eu acho engraçado nessa história é que com tanto cão e gato nessa cidade abandonado, maltratado, ou sendo cuidado por associações como a UPAC - União Protetora dos Animais Carentes - , que vem desenvolvendo um trabalho lindo e sério, as pessoas queiram, realmente, comprar cães e gatos - ainda mais em parcelas, meu Deus! - ao invés de adotá-los sem custo algum.

Para aqueles que desejam adotar, a UPAC têm bichos disponíveis de todos os tamanhos, raças, credo e religião. E já vêm limpos, cheirosos e vacinados.

Não se compra amizade, carinho, amor. E em parcelas então, nem pensar. Os amores de nossas vidas têm de vir por inteiro, plenos; jamais em parcelas até atingir os tantos milhares de reais que alguém se dispõe a pagar por ela, o que é um absurdo, porque amizade nenhuma pode ser calculada em valores, amor nenhum pode ser mensurado em reais.

Cheguei em casa ainda refletindo sobre essas questões, com a mente um pouco mais cansada, o coração um pouco mais triste.

ADOTE um bicho de estimação. Amor nenhum é parcelável.

Se alguém desejar maiores informações, o blog da UPAC tem o telefone, além de dados de vários bichinhos saudáveis em busca de um lar, e você o encontrará aqui.