Por Escrito, de Elvira Vigna

Por Escrito, de Elvira Vigna



No rastro dos escritores que começaram a tomar tom, cor e forma nos idos dos anos 90 até os dias de hoje, Elvira Vigna se situa numa posição sui generis. Primeiro porque é injusto dizer que ela começou a deixar de ser uma massa amorfa para existir nos anos 90, uma vez que a literatura parece sempre ter feito parte da vida da escritora, que começou a publicar na virada dos anos 70 para os 80 e não parou desde então. De lá pra cá, tem sido uma ativa escritora (inicialmente de livros infantis), ilustradora e tradutora. Mas apesar de um Jabuti por sua literatura infantil, tem sido desde que ela se consolidou como escritora de livros para adultos que seu nome vem sendo mais notado. Segundo porque, tal como sua obra, ela está e não está no meio literário. É um repleto perdido em lugares abstratos, onde a vida passa de maneira fugaz (e nem por isso menos atroz).


Por Escrito (Companhia das Letras, 312 páginas) não foge a esse amplo universo vigniano, que no fundo nada mais é do que o que existe de mais multifacetado dentro de nós mesmos, num juntar de peças que pode ou não resultar em alguma coisa. O que importa em sua obra - e sua mais recente traduz precisamente isto - parece ser o percurso, a trajetória, e o deserto que nos habita. 




["... eu precisava de um nome para o personagem principal que era uma mulher completamente idiota, muito fácil de ser machucada pelos outros".]* 


Por Escrito é narrado sem qualquer pacto com a linearidade. A autora abarca vários períodos (de transformação) da sua protagonista, com idas e vindas no tempo, mutações, mudanças, que exigem um leitor atento. Os personagens parecem se esconder de quem percorre olhos e dedos pelo livro. E o fazem através de uma linguagem que parece fazer de conta que é romance, que é relato, experimentando formas e caminhos de forma errática, mas nunca desviando o leitor da viagem para os recônditos dentro de si mesmo.

["... minhas histórias são sempre coisas que de fato aconteceram".]

Valderez, a narradora, é essa mulher de meia-idade que já viveu muitas vidas além da sua. Trabalha para uma empresa que lida com café, produtos de café, máquinas de café, e este emprego exige que ela esteja sempre de passagem pelos cantos-fugazes, pelos vazios abarrotados de aeroportos, carros com motorista que só se vai ver uma única vez e mais nunca, quartos de hotel, corredores e stands de eventos chatérrimos. E mais lá pra frente ela perde este bendito emprego. Até aí, sem grandes precipitações, porque 

["Nunca pude assumir tamanha fragilidade, essa facilidade com que as vezes me machuco".]

o "por escrito" que justifica o título na verdade é a forma que a narradora tem de tentar se entender. Ou não enlouquecer. Ela gosta de anotar as coisas, e resolve fazer este relato contemplativo para o amante, com quem tem uma relação de muito amor e algum desprezo. Ou de muito desprezo e algum amor, quem decide é o leitor.

["No papelzinho em que tomo nota do que se passa nessa manhã está escrito que não há pinheirinhos na Paulista em primeiros de janeiro. Também não há pinheirinhos nos outros dias do ano. Então, o que tomo nota no papelzinho é na verdade uma ausência de uma ausência. A condição de sem-pinheiro  não seria notada, não é para ser notada, já que essa ausência de pinheiros é a presença estabelecida, esperada, no cenário em questão. Mas sei por que tomo nota das ausências, eu sei. É isso, isso aqui que escrevo. É isso, isso aqui que escrevo. É uma questão do que está na nossa frente e nem notamos, o que está ausente mas presente. Qual dos ontens será o amanhã."]

Ao longo do romance, e ao unir as pontas soltas que a narradora vai deixando, podemos compreender essa imensidão dentro do não-lugar, que chega a ser quase um portal para quem está diante da hesitação, dos equívocos, do ir-ou-não-ir, do fazer-ou-não-fazer, dentre tantas outras efemérides que compõem a vida e o viver. E além disso, ou ainda dentro disso, temos também o que pode ou não ter sido um crime.  

["O Deserto Vermelho, de 1964, é um clássico do neo-realismo italiano. (...) Nele assim como no meu livro, as personagens aparecem ou desaparecem, sem que se veja exatamente quando, apesar de todos os detalhes estarem lá. (...) Em O Deserto Vermelho, como no meu livro, as pessoas estão sempre em lugares que não são os delas: de passagem, por acaso, ou simplesmente perdidas".]

Segundo a própria autora [Por Escrito] "é esse incômodo de você às vezes perceber que está vivendo algo que não está lá. Que a tua vida pode não ser o que você acha que é.".

["Tive na minha vida essas viagens que nunca acabavam nem começavam, de e para lugar nenhum, e onde eu passava a maior parte do tempo sem fazer nada, andando nas ruas, sentada em cadeiras pré-moldadas, deitada em colchas de hotéis baratos, olhando o negro das janelas de metrôs, o branco das janelas dos aviões, falando frases que não eram minhas. Desse período, tão longo, ficaram uns poucos dias. Uns porque nunca acabaram, outros porque nunca existiram, o anterior se debruçando sobre o novo que não conseguiu se instalar."]

["Tem uma coisa que aprendi trepando, porque fico bem mesmo trepando, ou seja, abrindo mão de qualquer defesa, qualquer controle, me permitindo uma integração completa com o que (quem) está perto de mim. E o que aprendi é o seguinte. Que é assim que se goza. E isso vale também para os que acham que estão no controle. Porque justamente não estão. São só mais frágeis. (...) O homem (no meu caso é homem porque trepo com homem) precisa inventar que tem o controle, o poder, que está lá dono da situação e que pode fazer o que quiser. É ele o mais frágil. É ele quem precisa de mais garantias, todas fictícias, para poder relazar e gozar. Se você fantasia o poder e o controle, você é muito, muito mais frágil. E isso serve mesmo quando não se está trepando."]

Elvira Vigna se entrega sem pedir permissão. Sem condescendência. E é por isso mesmo que seu Por Escrito invade, adentra sem antes bater. E é por isso que merece ser lido.

* Os trechos entre colchetes foram retirados do vídeo de apresentação do livro na página oficial da escritora, do texto de apresentação do romance escrito pela autora e de trechos do próprio livro.



O Louco de Palestra, de Vanessa Barbara



Acompanho a carreira da escritora Vanessa Barbara há pelo menos cinco anos. Não lembro exatamente como começou, o que sei com certeza é que eu a descobri através das crônicas, fossem as mais curtas, publicadas pela Folha de São Paulo ou as mais longas, pela revista piauí ou algum outro veículo nem sempre tão conhecido, lá estava eu, querendo ler mais e mais dessa escritora paulista de Mandaqui, um bairro de São Paulo que a autora parece ter por objetivo tornar mítico, como a Macondo de García Márquez. 

Das crônicas para O livro amarelo do terminal (Cosac Naify, 2008), livro-reportagem que ganhou o prêmio Jabuti e em seguida perfazendo o caminho de volta com o romance O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008), escrito em parceria, foi a consolidação de uma necessidade de ter essa autora como parte dos meus hábitos de leitura - e também dos meus afetos literários.

Desde então, vieram outros livros, como o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (editora 34), o romance em quadrinhos A Máquina de Goldberg (Quadrinhos na Cia, 2012) e o romance Noites de Alface (Alfaguara, 2013).

Vanessa Barbara é prolífica, mas uma produção sem pressa. É desses escritores que conseguem aliar qualidade e assiduidade nas publicações com a destreza de quem equilibra pratos numa competição circense. 

A capacidade da autora de ser muitas foi que levou ao seu mais recente livro, O Louco de Palestra e outras crônicas urbanas (Companhia das Letras, 193 páginas, R$37), composto de crônicas publicadas anteriormente em veículos tão diversos quanto a Folha de São Paulo, a revista piauí ou a Brasil Econômico - o que garante que alguns textos sejam quase inéditos.

No exemplar, logo abaixo do nome da autora, é possível ler "Vencedora do prêmio Jabuti", para o leitor saber que não tem nas mãos uma escritora qualquer. E o subtítulo da obra ("E outras crônicas urbanas") imiscui-se junto ao título, cuja capa, apesar do tom escuro, não é sombria. 

O que importa é que é preciso fôlego para acompanhar o ritmo da autora. Engajada em movimentos sociais, dona de uma ideologia lúcida e sagaz, Vanessa não deixa nada por menos. Se na primeira parte do livro temos a impressão de que a coletânea é "paulista demais", na segunda e terceira parte, Vanessa Barbara nos faz compreender que o aparente microcosmo na verdade é macro - e é mesmo universal. 

Suas crônicas - urbanas desde o título - são fruto dos temas que lhe são caros: o transporte (mais notadamente, o ônibus), o sentimento em relação à polícia, aos políticos, às agregações a que chamamos de sociedade e as dificuldades de se posicionar e se colocar diante do mundo, a complexidade de morar juntos, os diversos tipos de indivíduos e suas singularidades, as agruras sofridas durante viagens internacionais - está tudo lá, de forma plena e repleta de força, verdade e, por que não, um humor fino, sem o qual não se consegue levar o suplício da vida adiante.

Com O Louco de Palestra, Vanessa Barbara demonstra mais uma vez por que tem sido alardeada como uma das grandes novas vozes da literatura brasileira (segundo a revista Granta), além de ser colaboradora de jornais como o The New York Times e, mais recentemente, d'O estado de São Paulo. Encontramos nesta coletânea uma escritora em plena forma, em textos que perpassam diversos anos de sua carreira, que são um valioso apanhado tanto para leitores que já conhecem a voz escritora de Vanessa Barbara como para aqueles que ainda estão por adentrar seu universo. Onde quer que você fique situado como leitor, O Louco de Palestra vale a viagem.


Desvarios no Brooklyn, de Paul Auster

Desvarios no Brooklyn, de Paul Auster


Beirando os 60 anos e já se considerando um velho, Nathan Glass, um homem aposentado e divorciado, sente que a vida já não tem muito mais a lhe oferecer, e a crença em si mesmo se foi de vez com a descoberta recente de um câncer. Autoconhecimento, uma característica nada incomum aos personagens existencias de Paul Auster, também é perceptível em Nathan. Este, aliás, é um narrador questionável, outra característica inerente aos personagens de Auster, assim como a brincadeira em torno da metaficção - o livro que lemos é parcialmente um livro que o próprio Nathan está escrevendo.

A metafísica pós-moderna de Auster é construída em torno de alguns de seus temas recorrentes (como por exemplo o poder da coincidência e sua relação com o sentido do todo, a volatilidade da identidade e do caráter, filhos perdidos e a procura pelo pais). O que para o leitor costumaz pode parecer mais do mesmo, também torna possível identificar a reconhecer a sempre excelência da escrita do autor.

A prosa de Paul Auster é afiada, simples e arrebatadora. Seus personagens e suas personalidades são bem construídas e multifacetadas. Rapidamente, somos levados a gostar de Nathan. Ele é ranzinza, urbano e divertido, mas igualmente inseguro, generoso e desconfiado. Ele saiu de uma região mais periférica para o Brooklyn e afirma não querer durar mais que um ano, mas os encantos da metrópole em pouco tempo o tornam um homem reenergizado. Nathan escolheu o Brooklyn por ela poder torná-lo um anônimo. Ele começa a gostar de sua vitalidade e infinitas possibilidades de conhecer pessoas e conectar-se a elas de forma verdadeira, e por acaso. A verdade é que ele não queria morrer, ele estava era entediado da vida.

Testeminhar essa transformação é delicioso, enquanto leitores, assim como sua paixonite por uma garçonete de um lugar de gosto duvidoso onde ele sempre come alguma coisa e sua reconexão com um sobrinho, Tom, que se torna seu melhor amigo. Inteligente mas desiludido, Tom deixou a universidade para ser motorista de táxi e trabalhar numa livraria, quando este primeiro emprego lhe aborrece. Ele e Nathan têm longas conversas sobre a natureza das coisas, e seu entusiasmo imbuído de desespero pela vida e o viver. 

A ação gera a crença. Uma sobrinha de Tom, de nove anos, aparece sozinha do nada, recusando-se a dizer de onde vem e onde está sua mãe, Aurora, que é irmã de Tom; Tom e Nathan levam-na numa viagem de carro e por sorte escapam de um acidente. Em outro momento, a livraria onde Tom trabalha acaba indo parar nas suas mãos, Nathan resgata Aurora de um marido lunático e assim segue a saga de uma família quase aos moldes de um road movie, a esta altura. 

É aí onde (também) entra o Paul Auster que alguns chamam de "engajado". É quando ele faz referência à palhaçada que foram as eleições nos Estados Unidos em 2000 (o romance é de 2005), ao juntar o senso de alienação inerente àquele povo a uma falta de uma mais ampla representação sociopolítica na América contemporânea. E por Auster ser um escritor talentoso, Desvarios no Brooklyn é sempre um prazer de se ler, embora seja carregado em digressões nos diálogos. 

À medida em que a história ganhar ritmo, contudo, aqui, acolá, tem-se a impressão de que o fio que conduz tantas tramas começa a se desfazer. Cabe ao leitor atribuir plausibilidade à prosa de Auster - o que não é necessariamente um grande esforço. Afinal, a vida também é assim, repleta de incongruências e acasos. 

E é com um Nathan em bom espírito, contemplando um novo trabalho escrevendo biografias, que o livro termina. Mas não tão rápido: como é natural ao destino, sempre se intrometendo na vida, Nathan é pego num dia fatídico de um ano que jamais será esquecido, com muita fumaça e prédios que tombam de maneira a parecer que foi bomba, apesar de dizerem que foram aviões...
O Doente, de André Viana

O Doente, de André Viana

Em 1969, Philip Roth publicou um de seus romances mais aclamados até hoje, O complexo de Portnoy, no qual trata, de maneira desbragada, o delicado tema que até hoje é a sexualidade - o que viria a tornar-se uma de suas marcas - através de um longo monólogo narrado por Alexander Portnoy ao seu analista. O livro o tornou uma espécie de "celebridade literária", e se serviu para causar polêmica e problemas à família do autor, também serviu para ser o turning point de uma carreira literária que, há quase cinquenta anos, apenas se iniciava, e já o alçava à grandiloquência que atingiu. Não é de se admirar que Roth é, até hoje, um dos grandes cotados ao Nobel de literatura.

Passados quarenta e cinco anos, o escritor brasileiro André Viana publica O Doente (Cosac Naify, 128 páginas). A ideia da trama lembra - de passagem - o livro do norte-americano.

Ao se aproximar dos quarenta, um homem resolve passar sua vida a limpo. Tendo mantido muitas coisas para si mesmo durante décadas, é chegada a hora de abrir o peito e permitir-se falar. Mas ao contrário de Portnoy, o personagem de André Viana - cujo nome jamais saberemos - não acredita muito em psicanalistas. Acha que, enquanto você fica deitado no divã, o analista fica à mesa anotando o que vai comprar no supermercado da semana. Assim, o narrador resolve procurar um colega jornalista que, munido de seu gravador, se coloca à disposição para "ouvir" o que o outro tem a dizer. Fica claro aqui que sua intenção não é ouvir uma opinião, não é alguém pra colocar um braço por sobre seus ombros. Como uma força vulcânica, conhecemos um narrador que já reprimiu coisas demais por tempo demais, ele só quer colocá-las para fora, expurgá-las. 

O homem que narra sua história é um personagem complexo, o que o torna absurdamente humano para o leitor - e não há momento, do mais simples ao aparentemente mais tresloucado, que fique de fora de sua biografia.

É através desse monólogo que ficamos sabendo que o pai do narrador morreu no dia de seu aniversário de 11 anos, fato que mudaria sua vida para sempre. Donos de um cinema no interior, seus pais criam os dois filhos nesse ambiente bucólico, por si só proporcionador de inúmeras descobertas. Confesso que evoquei a imagem de Cinema Paradiso, imaginando aquela mesma pequena cidade e aquele garoto fazendo traquinagens com aquele senso de profunda beleza e sensibilidade desencontrada. 

A partir da ausência do pai, o narrador tem uma compreensão de vida e morte que parecem saídas da poética de um Guimarães Rosa e da complexidade onírica de Kafka, que compreendiam que ambas se misturavam, não diferindo tanto assim. O narrador, então um garoto, já não sabe lidar com esse amálgama de sentimentos, e já antevemos o homem que, aos 40, estará narrando sua vida para um gravador, apenas para colocar pra fora o que acha que deve. 

Talvez como saída para a dor, o garoto apaixona-se quase ao mesmo tempo por um amigo e pela prima dele. Essa paixão, que vai e volta ao longo do monólogo, é uma vertente voraz para o garoto que se transformou em homem e sempre se permitiu exercer sua sexualidade fora do dito convencional, embora não sem um preço a pagar por isso. 

Junto desse crescer, observamos a mãe do garoto e de seu irmão, que nunca conseguiu superar a morte do marido - na verdade, nunca conseguiu passar pela fase do luto e, tornando-se uma mulher ranzinza, de uma cretinice abjeta, e que só conseguiu dos filhos um misto de sentimentos confusos de dor e culpa. Não é à toa que, em dado momento, o narrador menciona que a mãe é uma das razões por seu irmão ser esquizofrênico. Naturalmente, está aí demonstrado não uma atribuição de algo a alguém, mas a ira de um filho por ter que lidar com a mãe complicada e o único irmão, com problemas psiquiátricos - e carregar esses dois pesos mortos sozinho e a angústia e revolta que isso traz.

Se temos ao longo do livro momentos fugazes, é porque a vida também é composta deles. Há pessoas que passam e não deixam marcas, há momentos que deixam marcas cujos protagonistas foram irrelevantes, mas não a experiência em si mesma. Assim é para qualquer um de nós. Nenhum dos momentos narrados, entretanto - os questionamentos de sua sexualidade, a dor pela morte do pai, nunca superada, a ira contra o irmão esquizofrênico junto do sentimento de obrigação para com ele, uma transa com um garoto travestido - deixa de exercer no leitor o impacto necessário para compreendermos que estamos lendo a respeito de uma vida substancial, ainda que não diferente de tantas pessoas que nós mesmos conhecemos ao longo de nossas próprias vidas.
André Viana

O que torna O doente, então, um romance que devemos correr para ler? 

Simples: pela sua forma narrativa, rápida e ao mesmo tempo densa e original. Ao longo da leitura, o narrador vai pautando sua vida pelas impressões de tudo o que viveu. E o que não é isso senão a nossa própria vida passada diante dos olhos, através da narrativa de ficção? É desse adensamento, das suas relações com o cinema, com a literatura, música, das artes em geral, que podemos sentir o narrador de forma pulsante, este homem que não tem nome porque pode ser qualquer um de nós (e, de quebra, ainda recebemos diversas dicas literárias através da sua visão de mundo). 

Mas é sobretudo por essa mixórdia de relações com os outros e consigo mesmo, que O doente se mostra um livro inequivocamente necessário. Não apenas porque acabamos por nos identificar com o narrador, ou identificar pessoas que conhecemos, e sim porque é através de obras como esta que temos a capacidade de conhecer - e quem sabe compreender - um pouco mais da nossa própria humanidade - ou falta dela. 

Sem dúvida, um dos melhores livros lidos em 2014. Sem dúvida, um dos melhores livros lidos em um longo tempo.



Avaliação final: Que Complexo de Portnoy o quê! O doente é uma porrada de livro, apesar de ter pouco mais de cem páginas. Mas certeza: é ler e não conseguir parar de pensar nele por vários dias. Aguente a pancada, porque vale a pena!

AVISO AOS LEITORES



Caros leitores,

Com a chegada do novo layout, chega também uma decisão: a partir deste mês, o blog Qual é a tua obra? muda de foco.

Ao invés de trazer uma mistura de resenhas literárias, fílmicas, textos sobre música e crônicas sobre assuntos diversos, o blog trará uma resenha literária por semana, e uma vez por mês, o perfil literário de algum escritor, totalizando cinco postagens mensais. 

O motivo dessa decisão deve-se à minha necessidade de dedicar-me mais a um livro de crônicas que estou preparando para o ano que vem. Preciso escrever para este projeto. Portanto, aqui, só as resenhas literárias. 

A primeira resenha que vai inaugurar esta nova fase é a do livro O Doente, de André Viana, publicado pela Cosac Naify em abril, e que já vai vir com o sorteio de um exemplar do romance (aguardem novidades). A resenha sairá esta semana.

Para aqueles que gostam de ler minhas crônicas, vocês podem ler algumas que escrevi para o blog LiteraturaBr (www.literaturabr.com.br). Uma vez por mês, publico uma crônica lá. 

Agradeço aos que me acompanharam até aqui. Espero que vocês continuem a se divertir com o blog nesta nova direção que ele toma.

Obrigado.

Marco Severo


Tempo de escola (O tempo, de novo)


Não raro, me pego pensando na questão da finitude. Da minha, da de todos que me cercam, dessa inevitabilidade, e da aceitação que tenho deste fato, pois que é impossível sobrepujá-lo. 

É difícil, para muitos, compreender a minha visão das coisas, mas a morte para mim não é um fim, é parte de um ciclo, e embora eu não queira ir embora tão logo, não a temo. Quando eu sentir que for minha hora de recebê-la em meu amplexo, nos abraçaremos firmemente, sabendo eu que daquele abraço somente um se desvencilhará do outro e permanecerá o mesmo. 

Há alguns dias, fazendo algo que raramente faço, mas que às vezes se faz necessário, fui ao shopping com uma lista de coisas para resolver. A ideia era precisamente esta: entrar, resolver o que tinha para ser resolvido e ir embora, já que o ambiente de shopping centers, pra mim, é execrável. 

Entre uma loja e outra, uma esquina e outra, a surpresa: avistei, do lado oposto ao qual eu caminhava, uma ex-supervisora de uma escola onde estudei na infância. Ela estava sendo empurrada por uma mulher bem mais jovem, numa cadeira de rodas. O rosto meio desfocado, os cabelos ralos e grisalhos, mas ainda assim, altiva, como sempre fora em minha lembrança dos tempos de escola. Pensei na mesma hora: ninguém escapa do tempo. Lembro-me daquela mulher com o olhar ferino. Com raiva por alguma traquinagem, ela fixava o olhar no acusado e com o dedo em riste fazia até Hitler se comportar direitinho. Pelo menos é assim que ela está no meu imaginário.

Pois foi mais um templo que tombou. 

Na mesma semana, fui a uma livraria que costumo frequentar. Enquanto eu esperava minha vez na fila onde as pessoas ficam para colocar livros em papéis de presente, olhei em volta e vi outra pessoa dos tempos de colégio. Uma senhora que fora coordenadora da mesma escola, mas ela ficava responsável pelos alunos do ensino médio. O mesmo tipo de roupa, o mesmo corte de cabelo. Mas o olhar... ela sempre tivera um olhar doce, sereno. Minha memória evoca a figura de uma senhora firme, austera, mas que trazia alguma ternura no olhar. Agora, seu rosto parecia cansado, seu olhar, perdido. Lembrei-me que, há uns três anos, ela perdeu uma filha, que fazia sua residência em medicina num outro estado, num terrível acidente de carro. 

Então compreendi que ali estava não apenas o peso da idade, mas do tempo como um todo, do tempo com os acontecimentos que ele traz, e que se fazem refletir de tantas formas no corpo e na mente. Pouco tempo depois, sua outra filha, apenas um pouco mais nova do que a que falecera, chegou e ficou perto da mãe. Seu olhar também me pareceu um pouco quebrado. Eram os semblantes de duas sobreviventes.

Foi pensando nisso, e na tal coincidência de ter visto essas duas pessoas dos tempos de escola, que comecei a lembrar do muito que passou e do pouco que ficou daquele período.

Sempre que a vida me trazia para o lado de cá, aquela era a escola para onde ia, todos os dias. Onde fiz grandes amigos, que, como a maioria dos "grandes amigos" da infância, se esfacelam com o tempo. Onde me descobri como homem e ser humano, como profissional. 

Revisitei mentalmente todos os corredores, lances de escadas e salas das quais lembrava - e eu lembro de quase todas. Lembrei-me de algumas aulas, da absoluta inutilidade prática da maioria delas, mas também de professores marcantes, de momentos de dúvida e dor, de lágrimas e sorrisos, porque é dessas coisas, tão comezinhas, que se compõe o tecido da vida.

Pensei naquelas duas mulheres como símbolos do caminho da vida, sempre o fim, sempre a extinção, porque esta é a coisa mais certa enquanto respiramos. Conquanto ainda vivas, suas vidas já não vicejam, já não trazem mais o orvalho inerente à flor aberta no dia seguinte à serena chuva que caiu durante a noite. 

A melancolia se deu não pela lembrança de um tempo que não volta - e que eu não faço questão que volte. Infância passou, dou graças e não olho pra trás com um pingo de saudade - mas pela certeza de que o fim, nem sempre, significa um novo começo. 

Às vezes um fim é apenas isto: o fim da linha, do pó ao pó, a lembrança, com ou sem saudade.

E foi no vislumbre dessas duas mulheres que, mais uma vez, eu me vi confrontado com a minha própria mortalidade. E eu, que não tenho como ter saudades de mim mesmo, me adianto em ir vivendo, da forma como eu entendo que seja a felicidade, para que, com um pouco de sorte, nos minutos finais, eu não me veja repassando minha vida com a melancolia do cair das folhas de outono.

Compreensão - conto






Agora que todos tinham compreendido, sem nenhum resquício de dúvidas, que Jason estava morto, decidiram reunir-se em um bar. O fato de que eles compreendiam o que havia acontecido não significava que eles podiam aceita-lo. Ou mesmo compreende-lo por completo. O que eles tinham agora era a prova de que ele não estava mais entre eles, até aí, entendiam. Por que ele resolvera tirar sua própria vida era uma questão completamente diferente, e isso seria provavelmente um eterno enigma para todos eles.
Eles chegaram um por um, os olhos ainda marcados pela dor, olhares que não sabiam exatamente onde se fixar. Alguns, tentavam sorrir; outros não se importavam com essa conveniência social. Eles concordavam em estar lá apenas pela memória que compartilhavam de quem Jason Worth havia sido para eles, e nada mais que isso.
Susan deu início aos que mais tarde chamariam de “a conversa”, mas isso não poderia estar mais distante da realidade. Ela havia sido a melhor amiga de Jason, e daquele momento em diante, ela se dava conta de que a vida tinha de prosseguir, ainda que para sempre um pouco pior do que ela jamais vislumbrara.
“Então... – ela disse, tomando fôlego – Eu gostaria de agradecer a todos vocês que se disponibilizaram para se fazer presentes aqui hoje. Sei que alguns fizeram um enorme esforço para vir, pelo que agradeço. Sei que a situação é complexa, árdua. Eu perdi um amigo – meu melhor amigo. Outros perderam seu esposo, pai, colega de trabalho, amante… O que não podemos nos permitir perder é a esperança. Eu não acredito nessa bobagem de que ele está em um lugar melhor, em um lugar cheio de luz, amor, ternura. Penso que essas coisas ou você atinge em vida ou nunca mais. Não se pode dizer onde diabos ele está, mas uma coisa é certa: ele não está aqui, e é por causa da nossa dor que nos reunimos.”
“Você acha que seremos capazes de falar sobre isso? Catarse em grupo seria algo bom, uma vez que a única coisa que a maioria de nós tem em comum aqui é Jason, que por acaso não está nem aqui para compartilhar esse algo em comum?” – Evelyn, sua ex-esposa, disse friamente. Ela tinha problemas com Helen, a mulher com quem Jason estava casado quando resolveu partir antes de todo mundo.
“Se não conseguirmos colocar questões pessoais de lado num momento como este, o que afinal isso diz sobre nós mesmos, com esse comportamento de crianças que foram proibidas de brincar no playground?” – Carl questionou. Ele não conhecia bem os outros, exceto Helen, mas sabia que talvez fosse a voz neutra no meio da tormenta que ele via se aproximar, e foi por isso que ele se manifestou. Ele achava que precisava fazê-lo. Jason e ele haviam trabalhado juntos por muitos anos, ele precisava daquele diálogo para tentar digerir o assunto, assim como para fazer jus à memória do colega. Eles se amavam, e nada poderia fazê-lo entender o que houve de verdade.
O silêncio se estabeleceu à mesa. Até que a última pessoa envolvida nessa história decidiu dar seu recado.
“Parece-me que uma conversa aqui, nesse momento, é impossível. Que vergonha à memória de meu pai. ‘Percebe esse ambiente em que você foi criada, Sarah?’, ele diria. Eu só posso enxergar que há muitas cicatrizes do passado, e a coisa mais necessária aqui – falar sobre sua própria forma de encarar a dor, procurar uma mão amiga num momento de necessidade – está indisponível agora. Que triste. Mesmo assim, compreensível. Nós somos todos muito diferentes, com formas de enxergar determinados acontecimentos de forma absolutamente particular. Muito tempo já se passou, mas vocês ainda parecem ter muitas questões pessoais para resolver. Provavelmente seria melhor se elas foram deixadas sem resposta, pessoal. Do que adianta, a esse ponto? Portanto, eu tenho uma sugestão a fazer: já que não conseguimos conversar, por que não escrevemos? A ideia é a seguinte: sugiro que todos nós escrevamos uma carta para ele. Podemos falar sobre nossa dor, expressar nosso sofrimento como se estivéssemos falando diretamente com ele. Além do mais, o processo torna as coisas mais simples para todos os envolvidos. A outra parte da ideia é cada um pegar o endereço do outro e, terminada a carta, mandaremos cópias para cada um, de modo que terminaremos por saber o que cada um de nós pensa e sente de uma forma que não cause constrangimento nem dor aos outros, que não ressuscita nenhum fantasma do passado, e ainda abre um canal para que possamos dizer o que realmente desejamos. Concordam?
Concordaram. Papéis e canetas foram retiradas de bolsas e sacolas. Endereços foram anotados, e depois de um curto aceno de cabeça ou sorriso, todos foram para suas casas com o intuito de realizar suas tarefas.


                                                                       ***

Meu amado filho da puta,


Sempre achei você egoísta. E no fim das contas, você acabou cometendo o ato mais egoísta de todos, o que só prova que eu estava certa. Eu não vou desperdiçar meu tempo aqui questionando suas motivações, ou mesmo se você as tinha. Deveria ter, ainda que você fosse um homem sem dívidas, não parecesse ser ou estar infeliz ou deprimido, tinha uma família amável e afetuosa... Então por que, me pergunto, você simplesmente desistiu? Por outro lado, não seria legítimo, não seria um direito que todos nós temos, o de desistir? Algumas pessoas desistem de fumar, outras, de um emprego, de suas famílias, de velhos hábitos. Outros desistem de si mesmos, e assim, decidem acabar com tudo desistindo de suas vidas. Me parece injusto, parece estranho e obscuro, porque fomos todos deixados no escuro, e não acho que um dia compreenderemos sua atitude. Mas era uma decisão sua, Jason, e como sua mais antiga e melhor amiga, é meu dever compreendê-lo.
Eu disse a mim mesma incontáveis vezes que eu não levaria para o lado pessoal. Você não desistiu de mim – ou de Evelyn, Helen ou Sarah... Nem de ninguém. Sabe o que você jogou fora? O que você tinha o direito máximo de jogar for a, algo que pertencia apenas a você, e a ninguém mais: sua vida.
Você se lembra de quando nos conhecemos, Jason? Quando nossos pais nos apresentaram no meu aniversário de cinco anos? Você tinha um ano a mais que eu e já se sentia como se fosse o rei do pedaço, como um cão que tem que urinar em todos os cantos para dizer aos outros que estamos em seu território.
Entretanto, eu não me importei. Aquela festa era minha. Eu era o centro de todas as atenções, você era só um ator num papel coadjuvante... Eu não poderia prever, contudo, que você seria o maior personagem da minha vida. Não importava quantos namorados eu tivesse – e Deus sabe que eu não tive tantos quantos poderia ter tido – não importava quantos parentes e amigos estivessem ao meu redor, foi você, Jason, que esteve sempre lá durante todas as trajetórias da minha vida. E nós permanecemos juntos por trinta e seis anos. Isso não te parece incrível? Fomos amigos por mais tempo do que muita gente vive, Jason! Claro, meu amigo egoísta, você sempre teve sua própria maneira de enxergar as coisas, e foi precisamente isso que fez você abreviar uma amizade que certamente duraria mais de sessenta anos.
Você foi amado, Jason. Você é amado. Você sabe quantas pessoas no mundo podem ouvir estas palavras e de fato sentir que são amadas sem um só segundo de desonestidade? Não muitas. Não muitas, meu amigo. E você sabia que nosso amor era a coisa mais perfeita que já foi concebida. O amor sem demandas, sem preocupações, sem mentiras. Se isso não é Deus no seu estado mais puro, então Deus realmente não existe.
Como ser humano, jamais poderei obter as respostas que quero, para que eu possa compreender o que fez você pular daquele décimo andar numa tarde tão bonita, às vistas de todo mundo. Mas como amiga, eu sei apenas que devo compreendê-lo: eu aceito o que você fez, e jamais direi que você não tinha o direito de fazê-lo. Você, certamente, tinha.
O que não vai minimizar a sua ausência aqui, seu puto. Nunca, nunca.

                                                        Amarei você até o fim,


                                                                                              Susan.

                            ***

J. –

Eu poderia estar aqui dizendo coisas horríveis sobre você, mas não vou. Não porque eu não quero que você pense coisas ruins a meu respeito. Eu silenciei muitas vezes quando éramos casados simplesmente porque tinha medo do que você pensaria, mas quando Sarah surgiu com essa excelente ideia, eu disse a mim mesma: agora é a hora de me vingar! Agora vou dizer tudo que ficou entalado durante todos esses anos, vou cuspir tudo!
Contudo, sua presence é ainda muito forte, J. O silêncio me arrebata, e todos os meus planos de dizer o que eu quero permanecem dentro de mim, e eu sei que aqui essas palavras ficarão para sempre; como um câncer, me devorando de dentro pra fora, um desconhecido em silêncio.
Você sabe a dor que me causou quando me deixou pela Helen. Minha vontade era de vê-lo morto. E agora que você de fato está morto, eu não faço ideia do que realmente queria. O que eu sei de verdade é que está tudo frio e vazio aqui dentro, como tem sido desde o dia que você saiu da nossa casa. A única diferença é que agora o frio será permanente. Nos tempos de antigamente, você pegava a Sarah na minha casa, eu via você, apertava a sua mão, sentia seu cheiro. Você sorria pra mim, eu sorria de volta pra você, você dava as costas e ia embora, de mãos dadas com Sarah. Por muitos anos eu queria que aquela mão fosse a minha mão, embora eu soubesse que minhas mãos não seriam mais abraçadas pelas suas. Nunca mais.
Por que você teve que se matar, J.? A Helen estava te fazendo infeliz? Você estava mortalmente doente? Você foi tão idiota, J. E tão jovem. Como é que eu vou perdoá-lo pelas coisas que você me fez? Como é que eu vou te perdoar por ter me abandonado pela segunda vez? Você acha que eu posso superar mais essa? Não posso, J. Minha vida acabou da primeira vez. E acabou de novo, agora. Como um ser humano é capaz de imputer tal destino a outro? Pelo menos eu não sou covarde, como você. Eu continuarei vivendo, mesmo que na maior parte do tempo eu esteja apenas metade viva. Ou talvez você estivesse certo. Qual o sentido em viver quando a vida parece não ter mais sentido algum? Eis algo que eu devo considerar, em algum momento pelas estradas da vida. Por enquanto, tudo o que eu sinto é essa dor imensa no peito. É porque era nele que você habitava, e onde você não mais faz morada, e não mais fará. Eu não tenho como suportar isso.
Vá se foder, J.  

                                                Evelyn.

                        ***

Meu amado imortal –

        Como posso eu começar a explicar o inexplicável? Como jamais serei capaz de justificar para mim mesma, e para os que me interpelarem, o que você fez a si mesmo e, por conseguinte, a nós?
        Passo os meus dias me perguntando: você sofreu? Foi dolorido? O que passou pela sua cabeça durante sua queda da varanda, até chegar ao solo? Você se arrependeu durante os poucos segundos que levou até você atingir o chão? Você pensou em mim? Por que você fez o que fez? Foi por causa de mim? Eu estava fazendo algo errado? Ou foi simplesmente algo que você se sentiu impelido a fazer? Você simplesmente estava lá na varanda e se perguntou como seria se sua vida acabasse no pátio lá embaixo, se as pessoas sentiriam sua falta, se a queda seria alguma espécie de símbolo para os que ficaram... Sim, meu amado, às vezes eu acho que você apenas se sentiu tentado a cair, simples assim. Pelo menos isso torna as coisas mais fáceis pra mim.
        Você ainda lembra da primeira vez que nos vimos? Foi tão bonito, ver você no Central Park, lendo um volume com todos os contos da Virginia Woolf. Tempos depois, nos diríamos que Virginia nos uniu, e não nossas “essências desrespeitosas e maléficas”, como sua ex-esposa coloca a questão. Ambos éramos pessoas que precisavam de uma companhia verdadeira. O que quer que tenha nos colocado lá, naquele momento, o fez para que fôssemos um todo, completos, sem rachaduras, para que pudéssemos ter nossas existências justificadas e dignificadas. Agora também me passa pela cabeça que a Virginia nos separou...
        Se há algo de que sentirei falta, amor, é o fato de que não o terei aqui para ver seu cabelo ficando lentamente branco, de ouvir sua voz cantando no banheiro – e das piadas que eu fazia sobre isso – , de sentir seu cheiro, seu toque, sua forma de encarar a vida... Não vou mais ter seu beijo de boa noite, nem vê-lo mais adentrar pela porta da frente com aquele sorriso. Não era eu que ia mencionar uma coisa da qual sentiria falta? Percebe? É impossível mencionar uma coisa apenas. Ou todas as coisas na verdade o tornam único. Sim, certamente é isso.
        Continuarei a luta, entretando. O que não significa, amado, que eu seguirei em frente. Que eu um dia superarei isso. Meu coração e minha alma se esvaíram para a água que corre na sarjeta. Por um instante, me revoltei: como você pôde me abandonar? Como você pôde desistir do nosso amor? E mais do que tudo: por que, em nome de Deus, Jason? Era o que eu costumava pensar. Mas não é uma pergunta que eu deva responder. Provavelmente nem para você responder. É apenas a realidade, e é isso que às vezes ela nos faz. Como o que está fazendo a mim agora, drenando minhas forças vitais para lutar contra o que eu tenho que lutar.
        Agora, tudo o que sei é que estarei aqui até que não estarei mais, quando, então, eu estarei com você. Que seja breve.

Eternamente sua,


Helen.

                                               ***

Jason, meu amigo,


            Sua filha veio com essa ideia de escrever pra você, e eu não faço ideia de como realmente escrever cartas, mas todos concordamos em fazer isso, e eu estou aqui, fazendo o que esperam de mim. Não é isso o que nós todos tentamos fazer, o que é esperado da gente?   
            Todo mundo no trabalho sente a sua falta, cara. O que diabos foi que houve, meu irmão? Você era sempre só sorrisos, fazendo todo mundo rir no escritório. Jamais poderíamos imaginar que algo assim aconteceria. Pelo menos, não com você. Alguns de nós ainda estão tontos. Eu inclusive. Por que você nunca me contou que estava com problemas, Jason? Poderíamos ter sido mais do que apenas colegas de trabalho, cara. Digo, nós éramos amigos, mas talvez eu pudesse ter te ajudado... Nossa. Até a Marlene anda chorando pela sua morte, no escritório. Aquela puta que fala de todo mundo e fez com que a Joan fosse demitida mês passado. Parece que mesmo nela ainda restam sentimentos. As coisas têm caminhado devagar por lá, meu amigo. Você nos motivava. Você nos deu uma força completamente necessárias em tempos sombrios. Onde é que você está agora, cara?
            Tentei te entender e descobri que não dá. Você sempre se gabava da sua família maravilhosa, você tinha um dos salários mais altos da empresa, você fazia as coisas que curtia... A única coisa que posso concluir é que nem mesmo todas essas coisas podem garantir felicidade e alegria. Mas se essas coisas, que parecem ser essenciais à vida não te eram suficientes, então o que te faltava? Talvez você estivesse tão para além da vida, talvez você fosse tão maior que a vida propriamente dita, que não conseguia viver sob sua própria pele. Tanto faz, cara. As lágrimas já começaram a escorrer pelo meu rosto. Preciso parar de escrever isso.


Porra, cara, a gente ainda tá tão perdido.

Carl.

                                                           ***

Querido pai

            Levei 23 anos para chamar você de “pai” sem me repugnar. Somente agora, após a sua morte, eu me sinto à vontade para chama-lo de pai e lamento não tê-lo feito nos últimos 22, desde que comecei a falar.
            Eu ainda me lembro vê-lo tentando fazer com que fôssemos mais próximos, fazer com que nos apegássemos mais, que demonstrássemos mais carinho. Mas haviam as dificuldades familiares, o fato de que você e a mãe estarem sempre discutindo.... Isso me fez deixar o sentimento de “família” de lado. Eu amo você, e eu amo a mãe, apesar do seu deplorável estado mental, às vezes. Sei que vocês se divorciaram porque chegou uma hora em que você não conseguia mais suportar o comportamento dela. E eu entendo tudo isso. Sei que quando fazemos tudo o que pensamos ser possível para amar alguém, mas só um dos lados está tentando fazer dar certo, ao invés de ambos, a melhor solução é seguir caminhos separados, como fizeram. Mas você também tem de me compreender. Como eu poderia me aproximar de qualquer um de vocês, vendo-os gritando e brigando e dizendo todas as coisas que ouvi vocês dizerem em minha presença? Seria humanamente impossível, pai. Por isso foi que me agarrei somente aos meus amigos. Eles sempre foram minha verdadeira família. Porém, agora que perdi você, entendo melhor o que são os vínculos familiares, agora que sei o que significa perder um pai. Havia amor, pai, um amor emocionalmente distante, mas você foi amado.
            Outra coisa que jamais entenderei é você ter nos privado de tudo aquilo que poderíamos ter nos tornado, de tudo o que ainda poderíamos fazer. Não podemos dizer que não estávamos tentando. Sei que você estava tentando arduamente compensar o tempo perdido. Sabíamos que jamais seria a mesma coisa, afinal de contas, você perdeu a oportunidade de ser um pai quando dos meus primeiros passos: deixou de me colocar no colo, me ensinar a andar de bicicleta, no que acreditar quando eu terminasse meu primeiro namoro, e até no primeiro beijo que eu dei num garoto.
            Então, quando eu lhe disse que o amor não era uma opção, que não escolhemos aqueles que amaremos, você esteve presente para mim, mais forte do que nunca. Você me abraçou forte e disse que era o pai mais feliz do mundo. Disse que não havia nada que eu não pudesse resistir e lutar, que o fato de que Lucy e eu estávamos juntas só fazia você me amar mais. Você me dizia essas coisas enquanto me abraçava, com as lágrimas lhe escorrendo pelo rosto, e eu estava lá, paralisada diante da sua reação positiva, quando pensei que iríamos nos distanciar. Mas não, pai, daquele momento em diante eu tinha um pai de verdade, e eu sabia disso. Isso foi há quatro anos, e eu e Lucy ainda estamos juntas. Temos uma bonita relação, pai, uma da qual você sempre afirmou se orgulhar e que certamente continuaria lhe orguhando. O amor acontece entre pessoas, independente de seus gêneros, conforme você me ensinou.
            Mas então, veio a surpresa.
            Noite passada, ao organizar as gavetas que você deixou, encontrei sua carta para Helen, pai. Você dizia que não poderia viver sem ela. Que ela era a mulher que você amava, aquela que você cuidaria durante toda a sua vida, e até além disso. Como eu planejo que seja entre mim e Lucy.
            Não me pareceu uma carta de despedida, mal tinha seis linhas, e estava por terminar. Corri para o telefone e liguei para Helen, perguntando-a se ela sabia dessa carta não terminada, e por que você dizia aquelas coisas para ela. Ela me contou que havia dado início a um tratamento quimioterápico na semana anterior. Era leucemia, foi o que me disse. Nem pude acreditar. No fundo do meu coração, eu sei que você não fez o que fez somente por causa da doença de Helen. Você seria covarde se tivesse se matado por conta disso. Ela me disse que as células cancerígenas se espalharam, mas que ela vai continuar lutando. Eu sei que ela vai.
            Tenho esperança de que tudo chegue logo ao fim. Não sei o que quero dizer com “fim”. Tudo o que sei é que o tempo vai passar, papai, e você continuará a ser meu pai. Há o Amor... e há a Vida, no caminho. Mas podemos deixar de acreditar? Não, não podemos. Sua lembrança permanecerá dentro de mim, pai, e eu sei que você jamais morrerá enquanto estiver aqui, dentro de mim.
Obrigada por ser meu pai.


Sarah.