O Menino e o Peixe - Fábula para os dias que correm

Era no tempo do nada, do tudo e do nunca: era hoje. 

Naquele tempo, em que tudo era mais difícil porque as pessoas ainda não tinham nenhum tipo de auxílio dos governos (na verdade, não tinham era governo algum, ou um quase desgoverno, ou assim a alguns parecia, ou era. Ou não era, porque tudo é sempre motivado pelas opiniões e estas a gente sabe como são: quem tem boca e junta uma palavra com a outra fala o que quer), as pessoas eram mais livres para existirem como bem quisessem, quase como os índios antes das desgraças todas que vieram com as assim chamadas "descobertas". E é aí que entra o menino fazendo xixi.

Esse menino sobre o qual quero lhes contar, entretanto, não andava por aí com a bunda de fora. Na verdade, ele morava bem distante de qualquer tribo, junto com os pais e mais seis irmãos, perto de uma floresta, que era de onde eles tiravam seu sustento. Atrás da casa deles passava um rio, correndo tão rapidamente que era difícil acompanhar a velocidade das águas com o olhar. Somente as pedras eram testemunhas do seu curso, impávidas, ou por outra, companheiras das águas, aguentando sua força incessante dentro do rio.

Então, como sempre fazia depois de comer algo pela manhã, o menino foi até o rio, baixou a frente da roupa que lhe cobria as partes íntimas e resolveu colocar bastante força para ver até onde o jato de xixi conseguiria chegar. O objetivo era fazer com que chegasse ao outro lado do rio. Ele não tinha idade suficiente para saber que nem que fosse adulto poderia fazê-lo, já que chegar ao outro lado de qualquer coisa é trabalho pra uma vida inteira, mas ele tentou assim mesmo. Colocou tanta força, tanta força, e tudo o que conseguiu foi ouvir um treeeeck, que veio da parte detrás. Ele estacou na hora, claro. Fungou para tentar sentir algum cheiro. Não tinha se sujado, foi só o susto.  Antes de retornar à empreitada, entretanto, ouviu uma voz chamando por ele:

"Ei, menino! Psiu! Ei!"
Ele parou e olhou. Era um grande peixe vermelho. Com a cabeça do lado de fora, ele gritou novamente:
"Quer parar de fazer xixi em mim?"
O Menino ficou sem acreditar naquilo, porque não sabia que peixes falavam. Mal sabia ele que existiam várias e várias histórias reunidas em livros em que não só peixes falavam, mas também vacas, leões, cabras e até árvores. Toda a fauna e a flora podiam falar, na verdade, mas pela sua cara de espanto, em oito ou nove anos de vida, só gente tinha se direcionado a ele, o que era uma pena. 

"É comigo que você está falando?", perguntou o Menino.
"Ora, claro que sim! Você está vendo algum outro menino aqui?"
O Menino ainda fez menção de olhar ao redor, para procurar outro garoto como ele à sua volta, mas entendeu que, com aquele tom de voz, o Peixe estava mesmo era sendo grosseiro e querendo dizer que era com ele mesmo. Ruborizado, olhou para o Peixe.
"Eu exijo que você pare de fazer xixi dentro do rio. Hoje. Aliás, agora mesmo".
"Mas eu já parei..."
"Eu quero dizer para sempre, garoto! Para de poluir meu rio, que ideia...!"
O Menino engoliu em seco e coçou a cabeça. Não tinha uma resposta para dar ao Peixe. E como não tinha resposta, fez uma pergunta:
"E quanto tempo é para sempre?"
Se não vivesse dentro da água e, portanto, estivesse habilitado a engolir em seco, ou se tivesse a capacidade de coçar a cabeça, o Peixe também o teria feito naquele exato momento. Suas forças para se segurar ali parado em frente ao Menino estavam se acabando, junto com a sua paciência.
"Para sempre significa dizer que nunca mais você pode jogar qualquer coisa que venha de dentro de você nessas águas onde eu estou agora. Para sempre é muito tempo. Depois que seu pai, sua mãe, seus irmãos, seus filhos e os filhos dos seus filhos já tiverem nascido e morrido."

Parece que ele não tinha noção do que dizia, mas como esse Peixe complicava as explicações, hein?

"Ah... Mas se eu nem sei quando eles vão morrer. Nem se eu eu terei filhos..."
"Por isso mesmo. Até isso acontecer, você está proibido".
"E se eu não for querer ter filhos, posso?"
O Peixe suspirou. "Também não". 
"Mas assim você está me deixando confuso!"
"Escute aqui: de hoje em dia diante, nunca mais!"
Então ele fez aquela pergunta que em teoria deveria ter sido a primeira delas, tendo ele nascido sob o signo de sagitário e sendo questionador por natureza.
"Mas por que não?"

O Peixe se esforçou para manter-se onde estava, balançando a cauda com mais força ainda. E disse então para o Menino:

"Porque é aqui que eu moro. Você está sujando o meu lar".
O Menino ponderou: é, fazia sentido. Ele já tinha visto os seus irmãos fazendo coisas que ele julgava ainda piores do que fazer xixi. Mas nesse caso...
"E você faz xixi onde?"
Adeus, paciência! O Peixe foi rápido na resposta:
"CHEGA! Você é burro ou o quê? Além do mais, já não tenho idade para ficar me esforçando tanto aqui. Não está vendo que já estou falando com dificuldade? É o esforço pra conseguir ficar parado. Você me entendeu."
Sim, ele tinha entendido. Mais ou menos, porque não tinha ficado convencido se aquilo que ele dizia fazia mesmo sentido, ou se não era apenas uma ordem, como quando seu pai dizia que era hora de parar de brincar e ir pra cama, não adiantava dizer nada contra, ou levava umas pancadas na certa. Mas achava que não estivesse muito longe da compreensão. O problema é que ele era muito curioso. Por isso, perguntou:

"Se você já é velho, qual a importância se eu ficar mijando no rio? Provavelmente você vai morrer antes de eu causar qualquer mal, não é?"
"É. Mas eu estou pensando nos meus filhos e netos. Isso aqui também é a casa deles".

Agora sim, o Menino estava satisfeito. Não se podia reduzir esse argumento, ou superá-lo. Ele entendeu que, finalmente, tinha sido vencido. E já tinha todas as respostas de que precisava, ainda que ignorasse que aquelas respostas eram muito pouco diante de tantas outras questões que iriam emergir nas suas muitas outras décadas de vida.

"Tá certo. Eu prometo..."

Mas antes de terminar sua promessa, viu o Peixe sendo arrastado pela correnteza, bater com força numa pedra e ser lançado para fora da água. E o menino ficou lá parado, vendo o peixe se debater sem ar na areia da margem, até a morte, compreendendo que nada, nem mesmo peixes que falam, podem contra a força descomunal e imponderável do tempo que passa e daquilo que não conhecemos.
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