Twice, música da banda Little Dragon - Diálogo com uma interpretação possível






(Esta crônica é melhor compreendida se lida após o clipe ter sido visto. Para vê-lo, clique no link)


Little Dragon é uma banda sueca à qual nunca fui apresentado formalmente. 
Ela veio parar na minha vida quando fui solicitado a interpretar o clipe acima. É uma música curta (apenas três minutos), mas o clipe traz uma miríade de interpretações possíveis.

Sabendo eu que toda obra de arte está sujeita e até, eu diria, fadada à subjetividade, fica aqui a minha contribuição a uma das leituras possíveis.

Trata-se de um vídeo lindo, que carrega em si muitas perguntas....

***

O quão tênue é a diferença entre o viver e o morrer? E qual o sentido desse espaço entre uma coisa e outra a que chamamos Vida?


Ninguém descobre uma resposta pronta pra tais questionamentos ao longo dessa jornada; ao invés disso, podemos descobrir várias respostas, enquanto tivermos tempo de nos fazer os questionamentos certos: dentre eles, o que viver realmente significa para cada ser que vive. E os possíveis desdobramentos entre estagnação e transcendência - ambos opções de uma vida, posto que temos livre-arbítrio.

A história começa com um esqueleto. Esse esqueleto representa a morte, dançando, tremulando, ela mesma cheia de vida - já que, ironicamente, a Morte não morre nunca. Vemos ao lado uma moça aparentemente ainda jovem conversando com um ser que se assemelha a um pássaro. Neste momento, compreendemos que a Morte se anuncia diante da Vida - como ocorre a cada momento, a todo instante.

A vida, que é essa coisa tão absurdamente frágil. Viver, que é escapar, diuturnamente, da morte.

Então a morte aparece apenas para mostrar-se presente, para que aqueles que têm vida saibam o valor intrínseco desse viver - e transcendam. Não como uma obrigação. Antes, como um convite.

A moça fora buscar ajuda em algo que pode ser um hospital - a necessidade de cura. Mas cura para o quê? Há remédio para a vida? Nos deparamos então com o pássaro - que pode ser ali a simbologia da imortalidade, através do pássaro imortal, Fênix - e que se predispõe a ajudá-la, e entrega a ela uma embalagem que em tudo se assemelha a um presente. E o símbolo da cruz vermelha, símbolo universal da saúde criado na Suíça e espalhado para o resto do mundo, demonstra que a ave imortal tinha interesse em restabelecer na moça a saúde - ela, que mortal era. Mas essa saúde é, tão-somente, o desejo de que ela aproveite a vida que lhe foi dada.

Fazendo uma reverência, a ave humildemente pede para que ela aceite o Maior Presente de Todos: a Vida! Com uma mesura (ao dobrar os joelhos), a moça agradece o presente e se vai. Sabendo que a moça estava fadada à morte, e sendo ela, a ave, designada a viver para sempre, ela chora pelos mortais, talvez pelos erros de percurso que nós, imperfeitos, cometemos, enquanto a moça segue o seu caminho. Ela vai então através do bosque (que simboliza tanto o acolhimento, por ser espaço fechado, quanto opressão, pelo mesmo motivo), e é então que chega a chuva - que, por sua vez, simboliza mudança. A água que vem para lavar a realidade tal como ela se encontra e levá-la embora, numa enxurrada purificadora, que leva fluidos ruins para deixar coisas outras no lugar.

Note-se o estado das árvores: ressequidas, sem folhas, sem frutos - o prenúncio da morte física.

Cansada de tanto caminhar e já sem forças para lutar, a moça recosta-se numa árvore. Mais do que simbolizar o descanso, esse recostar-se na árvore sem vida representa também o fim de uma jornada - o da jornada física - e o começo de outra.

É então que, numa outra cena, as árvores abrem espaço para o nada, e vemos a ave imortal voando à frente da moça, como a conduzi-la pelos campos oníricos da transcendência entre o que era e o que será: a transição da Vida para a Morte. 

E novamente a chuva - a compreensão de que a transição realmente está a acontecer, com algo indo e outra coisa vindo. E a Morte em cima de uma nuvem a recebê-la. Nesse momento, creio que trata-se de uma forma criada apenas para dialogar com os nossos pré-conceitos, retirando a ideia de que, numa nuvem, somente algo divino e etéreo poderia estar a nos aguardar. Não, é como se a música quisesse nos dizer, a Morte ocupa todos os espaços, e dentro da fragilidade da vida, temos que saber disso - e aceitar.

Voltando para o que realmente tem significado, o mundo dos que ainda permanecem vivos, a moça se deixa levar por uma música que está no ar para que ela, e somente ela (até porque só há ela na cena, a ave imortal já se recolheu, posto que já cumpriu o seu papel ao entregar à moça a Vida para que ela fizesse o que bem entendesse), possa ouvir. 

É quando nos deparamos com a mais bela cena de todas: no que a música toca, a moça se vê diante de uma elevação. Ao chegar praticamente ao topo, ela se depara com a Morte tocando flauta para ela, como o flautista de Hamelin, que seduzia os ratos do reino e os levava para onde quisesse, a Morte seduz a moça até onde ela está a tocar a canção. Nesse momento, ela compreende, com um misto de aceitação e surpresa, que ela elevou-se como ser, ela saiu de onde estava para um lugar mais alto (evoluiu espiritualmente), mas, como a vida é boa, como a vida é tão magnificamente boa, há o espanto. É então que ela solta o presente que a ave imortal dera para ela - a moça, então, abre mão da vida física, que rola ladeira abaixo. A Vida, insisto, essa coisa tão frágil que basta soltar para que se perca, segue então para onde a moça não mais pode alcançá-la, consciente que está de sua própria mortalidade (e também da sua evolução, da necessidade de desapegar-se da Vida para ir a algum outro lugar, rumo ao Desconhecido).

E como ela é apenas mortal - portanto, repleta de dúvidas, de medos, de anseios, ela estaca no meio do caminho entre o presente (a Vida que a ave imortal dera a ela para que a moça dela pudesse usufruir enquanto tivesse tempo), o Presente (o hoje, que se finda com o crepúsculo) e a certeza de que seu tempo estava chegando ao fim.

Sabiamente, é quando as cortinas se fecham, o que pode significar tanto que sim, ali foi o fim do espetáculo, quanto a opção para o espectador de imaginar o que ela pode ter escolhido, afinal.

Mas enfim, o que seria o "twice" (duas vezes) do título da música? A compreensão de que há aqui a Vida física, a vida de corpo, e temos a outra Vida - aquela através do espelho, a Vida do Outro Lado, o grande e eterno mistério. As duas vezes em que vivemos. 

E a verdade é que podem ser muitas mais. Mas essas duas vezes estão repletas de significados, porque são justamente a vida que vivemos aqui, e a vida que podemos ter após esta, que nos mostra as estradas que trilhamos.

E, ao final das contas, cabe a nós, e somente a nós, escolher o caminho da transcendência que desejamos seguir.  Se é que a desejamos.

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