Intimidade, de Hanif Kureishi








O que significa ser íntimo de alguém? Que implicâncias e desdobramentos pode a intimidade trazer para as relações humanas?

Vivendo uma época na qual se faz odes à superficialidade, aos relacionamentos fugazes, à efemeridade dos sentimentos - onde, do copo em que se bebe água às amizades, tudo é descartável, Hanif Kureishi, em seu livro Intimidade (Companhia das Letras, 2000), não busca responder a essas perguntas, mas fazer uma análise do que são os relacionamentos humanos nos tempos que correm - e também indagações acerca do que vem a significar para cada um de nós a ativa entrega ao que existe de mais complexo e profundo no outro. 

O narrador e protagonista do livro, Jay (que pode muito bem ser uma intertextualidade com Jay Gatsby, do livro de F. Scott Fitzgerald, uma vez que ambos têm personalidades que não temem em agir sobre determinadas convenções), começa dizendo que, no dia seguinte, vai abandonar esposa e filhos, e não mais voltará. 

A partir daí, o livro passa a ser uma reflexão sobre essa questão, em que tudo se passa no curtíssimo espaço de tempo de 24 horas; uma vez que, no dia seguinte, sua afirmação inicial já terá que ter se cumprido.

Hanif Kureishi passa, através do seu personagem, a colocar diante de nós uma jornada reflexiva e confessional de um homem cuja vida foi moldada seguindo as regras de uma cultura baseada em sexo, farras e a quebra de tabus e convenções sociais. Desses seres humanos que, por prezarem tanto a liberdade, acabam cerceando a si mesmos de viver a vida plenamente. Jay não tem apreço pela moralidade nem pela religião, tripudia da ideia de estabilidade e se posiciona de forma rebelde diante de posicionamentos mais convencionais.

Casado há seis anos com uma mulher que ele não suporta mais, Jay começa então a pensar em Nina, uma amante que teve durante esses seis anos, uma espécie de Lolita para ele, e que o abandonou em dado momento, o que não o impediu de continuar a se envolver com outras mulheres. Jay é egoísta e irresponsável, e confessa coisas embaraçosas a respeito de sua vida de homem casado.

Ele é atraído pelo caos, pelo obscuro, pelos caminhos tortuosos, e não consegue mais lidar com a disciplina, prezo pelo decoro e responsabilidade de sua esposa. Dessa forma, ambos sofrem dentro de uma relação onde não há conexão alguma, embora não estejam sempre brigando tempestuosamente.

A preocupação de Jay é com a sua obsessão pela liberdade - e, até certo ponto, para com seus filhos. Talvez por esse motivo, ele busque trocar ideias com dois amigos. Victor, que já trilhou o mesmo caminho antes, e Assif, o oposto do primeiro: completamente fiel à esposa e aos ideais de um casamento, é consciente das dificuldades de uma relação, mas tem certeza de que fez a escolha certa e se mantém completamente equilibrado (dentro daquilo que é a forma dele de entender o que seja equilíbrio conjugal) na sua relação com a esposa. 

Embora Jay já tenha se decidido, sua consciência continua a dizer-lhe que sua ação terá consequências. Mas, não importando o que seu amigo Assif possa dizer, tudo o que ele consegue vislumbrar é uma vida repleta de sensualidade ao lado de outras mulheres, e nenhum vínculo afetivo. No fim das contas, ele se entrega a este ideal, sem se preocupar com mais ninguém - provavelmente nem com ele mesmo.

Através deste curto romance, podemos testemunhar a dissecação de um indivíduo completamente desiludido, que nunca se ajustou mental ou emocionalmente. Como muitos de sua própria geração (e certamente da seguinte), ele tende a ver o mundo com olhos menos complacentes, e mais sedentos pela quebra constante de convenções e barreiras. A confusão dos seus pensamentos, desejos e até ideologias políticas ficam evidentes durante todo o livro. 

Sua narrativa brutalmente honesta e degradante do passado e presente transmitem a mensagem de um certo desespero, associados ao espírito cansado, combalido e quebrado de um homem que sempre prezou pela emoção da velocidade na vida, mas que, no momento, tem uma existência estagnada. 

Dentro de um romance muito bem construído, notável em sua profundidade e complexidade de emoções, que vai e volta no tempo com destreza, encontramos a mente de um homem profundamente desorientado, que nos lembra que a vida pode tomar rumos absurdamente indesejados, mas que isso não é muito, quando compreendemos que, para nos sentirmos plenos, podemos tentar ser e fazer muitas coisas, mas que não devemos concretizar a maioria delas. Não por autocensura apenas, mas pela compreensão profunda e lenta, dessas que afundam na gente apenas com o passar dos anos, de que, embora plurais, nós, humanos, não funcionamos quando fragmentados. 

Às vezes precisamos ser lembrados disso, para que possamos achar nosso próprio espaço não apenas no mundo, mas no mundo que compartilhamos com aqueles cuja vida íntima faz parte também daquilo que somos.
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2 Comentarios "Intimidade, de Hanif Kureishi"

  1. Esse post me lembrou de Philip Roth, ou estou exagerando?
    A desilusão, sensualidade sem vínculos, personagens desenraizados, etc?
    Valeu pela dica. Vc sempre tem autores interessantes na manga...
    Um bjo,
    Adriana

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  2. Não me parece que tenha a ver com P. Roth - numa entrevista recente li esta afirmação de Hanif: "Quando falo sobre sexo, faço-o a partir dos sentimentos dos personagens e da relação que têm com o desejo. Não vemos o que fazem, vemos o que sentem."

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