Uma defesa do best-seller


Muito já se falou e se escreveu sobre os livros que vendem mais do que cachaça  em boteco dia de sábado, os “famigerados” best-sellers, exaltados por um determinado nicho de leitores e execrados por outro, o dos que “leem coisa melhor” e que, aliás, se pudessem, mandava queimar os da primeira turma, best-sellers e tudo, numa enorme fogueira, bem longe do dia de São João, que era pra todo mundo saber que o evento ali é festivo, mas por outro motivo, no melhor estilo Inquisição naquela época em que todo mundo que tinha qualquer poderzinho andava gritando feito a Rainha de Copas por aí, querendo tocar fogo ou cortar a cabeça de todo mundo, diante de plateias ávidas e sedentas.

E aviso logo que não estou aqui pra falar novidade alguma (tem como, sendo esse o tópico?). “Por que escrever sobre o assunto, então?”, já posso ouvir vocês perguntando daí. E eu respondo: porque sim. Porque eu quero e acho que devo. Além do mais, eu também tenho história pra contar a esse respeito. Estou aqui, na verdade, por dois motivos bárbaros (segundo a definição dos gregos e romanos, por favor): 1) falar da minha relação com a dita categoria de livros. (Fazer relato pessoal não deixa de ser uma boa oportunidade para trocar ideias) e 2) para defender essas obras de gosto duvidoso (e seus leitores também).

A fim de uma conversinha de pé de ouvido? Então vem.

Nunca ouvi falar de ninguém – ninguém mesmo, zero, nada – que tenha começado a ler por obras já consideradas estupendas, importantes etc e tal. Aliás, existem dessas obras que hoje são consideradas ícones, mas que, na época de sua publicação, eram populares que nem pão quente. Exemplo disso? Charles Dickens. Dickens era o Sidney Sheldon, o Harry Potter, os vampiros do Crepúsculo, da Era Vitoriana, em termos de vendas. Seus livros chegavam de navio, e tinha gente pulando dentro d’água no afã de pegá-los o quanto antes (talvez sem lembrar que para isso o livro teria de ficar encharcado, mas naquele tempo ninguém sabia ainda o que é histeria coletiva. Tenho minha dúvidas se hoje sabem, também). E atualmente, embora quase ninguém o leia, ele é considerado um “grande autor”, seja lá o que isso possa significar nas entrelinhas.

Pois bem, retomemos minha apologia ao best-seller.

Assim que eu comecei a ler, ganhei aqueles livros com figuras enormes e duas linhas com letras para míopes. Lembro de um do Pedro Bandeira, chamado Trocando as bolas, que era precisamente assim. E Pedro Bandeira já era, naquele tempo, um autor best-seller. Talvez dos poucos brasileiros que se sustentam só com literatura. E este foi meu primeiro livro da turma dos mais vendidos.

A partir daí, não parei mais. Com pouco tempo, estava lendo a série Vaga-lume, outro enorme best-seller. Aliás, era o que a moçada da minha geração mais lia naqueles tempos. Uma série inesquecível que até hoje reverbera em muitos dos caminhos que tomei enquanto leitor. Os livros de Marcos Rey, ou clássicos como O Escaravelho do Diabo, Éramos Seis, A Ilha Perdida, dentre tantos outros, quem nunca?

Descobrir outros best-sellers da época, tais como Sidney Sheldon, Danielle Steel  Harold Robbins, Agatha Christie, foi uma questão de (pouquíssimo) tempo. E eu devorava tudo, compartilhava tudo o que podia, trocava muitas coisas além dos livros: ideias, reflexões, pensamentos. E foi também quando o amor pela literatura se estabeleceu para sempre. Incondicionalmente. Não é à toa que eu digo que minha relação mais duradoura na vida não é com gente: é com os livros.

Foi mais ou menos por essa época, também, que eu vi o primeiro nariz ser torcido para aquilo que eu lia. Não me perguntem qual era o livro, mas certamente era alguém da turma mencionada acima, ou algo muito semelhante. Ouvi algo do tipo, “isso não é literatura. Quer ler algo que preste, vá ler Camus, Zola, Machado de Assis, Calvino blá blá blá” – a lista foi longa. Bocejei na cara do sujeito e continuei minha leitura.

Tempos depois, eu viria a descobrir esses e muitos outros da lista, mencionados ou não, sempre gostando mais de uns, menos de outros e nada de outros. Émile Zola, por exemplo, é um que não desce e eu não gasto mais meu tempo com ele.

Longos anos mais tarde, quando eu já havia dado uma guinada no tipo de livro que lia, surgiram outros campeões de vendas, Harry Potter e a saga Crepúsculo encabeçando a lista. Inicialmente, eu quis seguir a maioria execradora de livros e leitores de best-sellers. E quando meu nariz também se preparava pra torcer, eu me dei conta: menos moralismo, por favor. Você começou pelo equivalente a todos esses que estão aí.

Eu achava muito estranho aquelas vendas estratosféricas (não sei se Sidney Sheldon vendia como um Harry Potter, embora tivesse edições sucessivas de seus livros nos tempos áureos, mas a impressão que eu tinha, era que os best-sellers do final dos anos 90 em diante vendiam mais, bem mais). No fundo, eu tinha era inveja. Queria escrever, queria ser um deles, e minha reação era chamar de feio o que não era espelho, fazer uvas maduras se passarem por verdes.

Ler best-seller é sempre melhor do que não ler coisa alguma. Livros são vertentes para a vida, e a vida é, na maioria dos casos, melhor do que a morte. Viver implica em criar, em transgredir, em se reinventar. A leitura escancara todas essas possibilidades. É arte. Octavio Paz já dizia que o homem nada mais é do que imaginação e desejo. É através do sublime ato criador que podemos chegar aos píncaros do gozo.

E tem mais: esperneiem-se o quanto quiserem com a hipocrisia moralista, ninguém nunca vai tirar os best-sellers de mercado. Na verdade, a tendência é que estes continuem flamejantes nas prateleiras, nos e-readers, e quem tem de se cuidar são os autores da dita “literatura séria” (o que, convenhamos, também é uma lástima).

Ainda hoje, passados trinta anos daquele primeiro best-seller, me custa compreender por que as pessoas têm tanto prazer em cuspir em quem lê livros que estão nas listas dos mais vendidos. Não raro, leitores evoluem, por mais que se diga o contrário. E voltando ao que eu disse no começo, não conheço um só ser humano que tenha se voltado para o mundo da leitura sem antes ter passado pelo conjunto dos livros que vendem aos milhares ou milhões.

Ninguém tem a obrigação de ler Harry Potter, nem toda essa gama de livros que elevam o sexo em seus livros à condição de protagonistas, acima inclusive de tramas mais elaboradas. Nem livros sobre vampiros, nem a última moda em torno de bestas que se veem convivendo com seres humanos, os zumbis, além de Dan Brown e seu detetive que desvenda códigos. Isso para não falar em Paulo Coelho, Martha Medeiros e esse monte de padre enrustido que publica livro adoidado e que também vendem em quantidades grandiloquentes, coisa de deixar todos os outros escritores brasileiros se doendo de inveja.

Daí você pode me ver e perguntar, E como é a sua relação com estes livros? Quase nula, responderei com serenidade. Um ou dois, dentre os quase cinquenta livros que leio a cada ano. E isso não invalida sua defesa?, alguns perguntarão, quase apontando um dedo. Tanto quanto invalidaria um heterossexual por defender os direitos de um homossexual, ou de alguém em pleno controle de seu corpo defender os direitos de alguém com graves limitações. Portanto, não. O fato de eu (quase) não ler best-sellers não me tira o direito de apoiar aqueles que o fazem.

Evidentemente, estaria sendo hipócrita se dissesse aqui que não mantenho um fio de esperança de que este grupo de leitores – a maioria, diga-se de passagem – possa vir a ler outras coisas. Mas e daí se não o fizerem? Estão lendo, estão consumindo livros.

E nos dias que correm, qualquer coisa que tire alguém da frente do Faustão e afins é lucro. Se é pra perder tempo com mero entretenimento, pelo menos o fazem em silêncio, sem tirar o juízo de ninguém, com uma televisão desligada, ao invés de ligada em programecos dominicais.

De resto, que a gente possa ouvir What a wonderful world acreditando em cada palavra do que canta Louis Armstrong. Se tudo vai contra ele, o que nos resta é a esperança. E o mundo bem pode ser sim, maravilhoso.

É só a gente começar a parar de se incomodar com o que o outro anda fazendo, vendo, lendo. A literatura não pode ser – não deveria ser – mais um fator de segregação entre as pessoas. A verdade não poderia ser mais clara: ao nos incomodarmos menos com a vida dos outros, passamos a viver a nossa. E é bem aí que poucos enxergam estar a possibilidade da transgressão. O necessário passo que se dá e que te faz saltar por cima de um abismo, que é você mesmo. 
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3 Comentarios "Uma defesa do best-seller"

  1. Boa,Marco! Ainda tenho alguns exemplares de best sellers do tempo do Círculo do Livro e creio que são melhores do que muita literatura considerada "in", que anda circulando por aí.

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  2. Na verdade, estou até com medo de morder minha língua, mas analisando aqui minha iniciação ao mundo literário, acho que sou a única pessoa do mundo que iniciou os hábitos de leitura sem gostar dos best sellers. Eu tinha horror a Pedro Bandeira quando era adolescente, embora nunca tenha nem lido (talvez por influência do preconceito literário exacerbado da minha mãe) e devorava os clássicos. Fui descobrir os best sellers depois de velha! Torcia muito o nariz pra Harry Potter. Li há dois anos atrás e me apaixonei pela saga. Virei tiete da Martha Medeiros (por tua causa inclusive) e estou bem mais aberta a esse tipo de leitura hoje em dia. Aliás, esse conceito é bem relativo, né? Um livro considerado canônico pode vender feito banana também. Sem contar que o que era best seller pode virar canônico com o passar dos anos... É mais uma questão de recepção da crítica do que de qualidade propriamente dita. Hoje em dia eu e minha mãe temos discussões acaloradas porque ela não acredita na literatura contemporânea e acha que a literatura morreu, e eu discordo veementemente desse pensamento.

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  3. Excelente o texto!
    Ainda bem que não existe um só tipo de escritor. Ainda bem que não existe um só tipo de leitor. Cada um é livre pra escrever o que quer, ler o que quer, desde que com respeito, ética e responsabilidade.
    Eu também defendo!

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