A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli


Em A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli, o real e o fantástico se unem para dialogar sobre misticismo, fé, poder e amor, num jogo de espelhos que leva o leitor a vivenciar cada instante,  numa trama de fôlego arrebatadora.



Algo em torno de 180 quilômetros separam Fortaleza da cidade onde mora minha avó. Quando criança, qualquer dia de folga era motivo para ir visitá-la, (sem contar com as férias, o que tornava o trajeto uma obrigação. E ai de quem dissesse lá em casa que não queria ir visitar a "vó". No mínimo, ganhava uma surra e o direito de ir correndo fazer a mala sem fazer bico). 

No caminho até lá, vegetação seca de um lado e do outro. Em alguns lugares, um verdinho aqui e ali. Muitas igrejas, um posto de gasolina, gente caminhando ou andando de bicicleta pelo acostamento, além de vários bichos magrinhos, feiosos, caminhando naquele estreito fio de terra entre o asfalto e o mato, em busca de um destino. Eu sempre me perguntava onde aquelas pessoas e bichos moravam, já que eu não enxergava casa alguma perto de onde estavam seus pés. 

Entre um bocejar e um pedido para o meu pai mudar a música do carro e colocar algo que eu ou minha irmã gostássemos, de vez em quando passávamos por algo que lembrava uma comunidade qualquer. Um dia, lembro-me bem, minha mãe virou-se para o banco traseiro e disse pra mim e pra minha irmã: "Olhem pra esquerda de vocês! Tão vendo ali, em cima daquele morro?"


Estávamos. Àquela distância, parecia um palito enfiado em um monte de areia. "O que é aquilo?", um de nós perguntou. Nessa hora, como em boa família onde há uma hierarquia, minha mãe deu a deixa para o meu pai, que foi nos contar a história. Mais ou menos. Aquilo ali em cima era o corpo de um santo. Deveria ter tido uma cabeça, mas o prefeito era ladrão, roubou o dinheiro que iria pagar o pessoal que ia levar a cabeça lá pra cima, e ela ficou bolando em algum lugar nas ruas da cidade, e sabe-se lá por qual motivo, nunca mais quiseram levar a tal cabeça lá pra cima. Naquele tempo não me ocorreriam perguntas mais profundas sobre as razões e circunstâncias, então eu disse algo como: "Eles deviam fazer um bingo, e com o dinheiro arrecadado, pagavam alguém pra colocar a cabeça lá". Pesos, medidas, logística (e lógica) nunca foram mesmo meu forte. 

O POLÊMICO CORPO DE SANTO ANTONIO SEM A CABEÇA EM CARIDADE - CEARÁ. THE CONTROVERSIAL SAINT ANTHONY'S BODY WITHOUT HIS HEAD IN CARIDADE - CEARÁ

"E dá pra ver a cabeça?", perguntei.
"Dá. Na volta a gente passa devagarzinho e vocês ficam olhando pra essas ruazinhas que dá pra ver ela lá, enorme, deitada".

A partir dali, eu contava os dias para que voltássemos para Fortaleza, porque agora eu queria virar a minha cabeça para o outro lado, em busca do pedaço que faltava ao santo. Dias depois, fazendo o caminho de volta, meu pai cumpriu o prometido. Avisou que estávamos chegando em Caridade - cidade cujo nome achei muito curioso - , a terra da cidade com a estátua do santo sem cabeça. Eu e minha irmã ficamos olhando para aquela enormidade. Mesmo dali, a gente via que era algo descomunal. Era como se estivéssemos vendo uma parte de Golias, derrotado, no chão. Seguimos para a capital com a cabeça dando voltas e imaginando mil coisas.


Vinte anos se passaram entre o momento em que esta cabeça foi parar no chão e a escritora Socorro Acioli resolver que havia um mote neste fato envolvendo a cidade.

De 2006 para cá, ela saiu de um trabalho de carteira assinada, resolveu que queria ser escritora em tempo integral, continuou colecionando recortes de notícias que poderiam render ficção, participou de um curso de uma semana com Gabriel García Márquez em Cuba, ganhou um prêmio Jabuti, viu sua popularidade crescer, montou um curso de criação literária e trouxe ao mundo a história de Samuel.

A Cabeça do Santo (Companhia das Letras, 176 páginas, R$37), romance publicado em fevereiro de 2014, conta a história de Samuel, um jovem de vinte e poucos anos que vive em Juazeiro do Norte com a mãe até que, mortalmente doente, ela lhe pede para que vá até a cidade de Candeia (nome fictício que recebeu a cidade de Caridade no romance) para conhecer a avó e o pai, que nunca chegou a conhecer. 

Devoto de um intenso amor pela mãe - devoção essa que não nutre por santo nem fé alguma, ao contrário de sua mãe - , Samuel segue caminho a pé rumo à cidade. Ao chegar por lá, depara-se com uma realidade a um só tempo assustadora e deprimente:  a cidade encontra-se quase abandonada e, após passar por situações dolorosas, acaba abrigando-se na cabeça oca de um santo, porque é ali o único lugar onde pode se recolher, já que não tem um só centavo.

Não demora, Samuel acorda com o barulho de vozes em sua cabeça. Confuso, cogitando até que ponto demora antes de tornar-se louco, ele descobre que tem o dom de ouvir rezas de mulheres da cidade, que pedem, sobretudo, o amor, um casamento, a felicidade. 

Ao conhecer Francisco, um jovem garoto morador da cidade, tem a ideia de explorar seu dom e assim, além de unir as pessoas, ganhar também algum dinheiro. Só que, pouco a pouco, não apenas a pequena Candeia, como também Samuel e Francisco, estarão inseridos numa teia de proporções muito maiores do que eles poderiam conceber, despertando todos os santos e demônios dentro de cada um naquele lugar e fora dele. E como se não bastasse, há também uma voz que se destaca das outras e que, através do canto, lhe diz muito mais coisas do que o solo empedernido do seu coração quer acreditar...


Li este romance ao longo de cinco dias. Poderiam ter sido dois, ou um só. O leitor começa o romance da Socorro Acioli e é arrebatado para um universo tão comum no Brasil, mas ao mesmo tempo tão psicodélico e maravilhoso quanto o de Alice. 

Numa história onde muito do que parece ser na verdade não é, e muito do que é, é mais forte do que se imagina, somos levados a conhecer personagens construídos de maneira forte e poética, nas quais as influências da própria autora - Ondjaki, García Márquez, Juan Rulfo, cada qual com sua epígrafe no livro antes de cada parte - se misturam ao seu poder criativo e domínio da trama. 

Em um universo também amplamente desnudado por grandes escritores da América Latina, como Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares (além dos já mencionados) e seus universos de realismo fantástico, Socorro Acioli traz a sua própria verve e voz para dentro de uma história a um só tempo mágica e dura, de tão real.

Romance construído através de capítulos curtos e intensos (todos iniciados pela letra "C", denotando aí algo que fica a critério do leitor e sua compreensão), onde cada coisa parece ter sido colocada para o leitor ter deleite e também para simbolizar o que viria, como o verde que não está no sertão, mas está em coisas usadas pelo personagem principal, que sonha em lançar-se aos verdes mares... Temos em A Cabeça do Santo um romance curto mas amplo, belamente construído, de uma tessitura que deixa o leitor querendo que a história não terminasse ali, desejando começar outro romance da autora imediatamente após a leitura deste. 

Mas aí está a verdade deixada nas camadas de grandes livros: muito do que se lê é também a leitura de cada um. O autor nos apresenta os fatos. Socorro Acioli nos apresentou Samuel, Francisco, Niceia e tantos outros, dando vida a pessoas que passamos a querer bem ou a odiar. A história para além da história, cabe a nós imaginar.

Ou, quem sabe, cabe à autora nos contá-la, num outro momento, já que a trama tem fôlego para isso.

Seja Samuel, seja outro personagem qualquer, o que importa é que com A Cabeça do Santo, Socorro Acioli lançou uma semente ao vento. E fica a certeza de que, se já começou bem desse jeito, outras que vier a lançar sempre gerarão sólidas árvores e saborosos frutos.

Que venham os próximos, então.

Socorro Acioli
COMPARTILHAR:

+1

8 Comentarios "A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli"

  1. Marco Severo, felizes dos que podem despertar o desejo da leitura...Seu texto cria certamente uma necessidade: ler ou escrever; quem sabe, os dois. São varias cabeças...cada uma dentro de outra...Salve essas cabeças de santo! Se você nos diz que não há o desejo de que a historia termine, acredito. Lancemo-nos então aos verdes mares de Socorro...E que o nado nos leve às grandes praias ...de imaginação, de despertares.
    Um abraço da admiradora , crente em sua recomendação , na grande e recomendada Editora.
    Eloisa Helena

    ResponderExcluir
  2. Eu que agradeço as suas palavras, e por vir até o blog comentar. Fico feliz que minhas palavras possam exercer algum desejo de pegar um livro e lê-lo. E este, seguramente, vale a pena! Abraço!

    ResponderExcluir
  3. sua cronica,sobre a "A cabeça do Santo" da minha amiga Socorro Aciolli é um marco severo de boniteza,creio que todo autor gostaria de ter pareceres assim sobre a sua obra. Eu também já li,já espalhei as relíquias deste santo livro por ai. Socorro Acioli,e o santo de Candeia com certeza estão felizes. Todo afeto e admiração por um severamente desconhecido.Com carinho.Galeára.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Galeára. Bom dia.
      Escrevi por um impulso que não poderia ser diferente. Digo impulso como algo que impulsiona, não apenas "pelo momento". Foi minha forma humilde de contribuir para espalhar meu bem-querer por uma obra tão rica, forte, bonita. Qual o sentido do bem-querer se ele não for espalhado, transmitido, compartilhado? Se esse texto pode ajudar a suscitar a curiosidade a um possível leitor, já fico feliz.

      Excluir
  4. E Candeia agora povoa a minha mente..

    ResponderExcluir
  5. Essa é uma das melhores resenhas da Cabeça do Santo. Obrigada, Marco! : )

    Socorro Acioli

    ResponderExcluir
  6. Fiquei tão bem impressionado com a resenha da obra que comprei o livro de imediato. Obrigado pela dica.
    Gustavo Ferrer Carneiro

    ResponderExcluir