Mishima, a deusa que veio da favela




Enquanto escrevo essas palavras, há uma gata se lambendo sossegadamente ao meu lado na cama. Em seu saboroso esticado de pernas, num banho que é também auto-acariciamento, torna-se a coisa mais linda, mais frágil e sublime por Deus já criada, com um frêmito no passar da língua, indo e voltando, como se nada mais no mundo importasse. E talvez não importe mesmo. Que bom que seja assim. Alguém nesse mundo tem de passar-nos a sensação de leveza, de calma e tranquilidade, nessa vida caótica, sem freios nem rédeas que vivemos diuturnamente.

        Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que eu odiava gatos. A palavra é essa mesmo, não há eufemismos para o que eu sentia. A simples visão de um me fazia mudar de calçada, virar o olhar, mudar de rumo. Não sei direito por qual motivo eu sentia isso. No fundo eu sempre acreditei que o gato tem um olhar muito forte, como se ele conseguisse nos enxergar para dentro do que somos, conhecedor de algum segredo da pessoa para quem olha que nem a pessoa sabe que tem. É um olhar amedrontador, perscrutador, como se dissesse, Você tem verdades que esconde até mesmo de si, seu fraco. Eu costumava dizer que, se Deus existisse e aparecesse pra mim, dizendo que eu podia eliminar uma espécie de animal do mundo, eu nem pensaria duas vezes: felis catus, adeus!

        Até que um dia eu resolvi que era hora de encarar esse meu medo atávico. Resolvi então adotar um gato. 

        Na época, eu fazia caminhadas num parque ecológico bem popular da minha cidade, perto de uma comunidade bem pobre, e descobri que lá havia muitos gatinhos abandonados. Foi então que resolvi tirar um de lá, não sem antes perguntar à veterinária que cuida do meu cachorro sobre a convivência entre cães e gatos e coisas do gênero. Com a garantia de que eles não iriam se matar, fui ao parque. E foi então que aquela que seria a futura Mishima veio parar em meus braços. Quer dizer, em minha mão.

        Eu havia sido avisado para não escolher o gato, que deixasse que um se aproximasse de mim e me quisesse. Fiquei sentado lá perto onde havia muitos reunidos. Foi quando, de repente ao meu lado, ouvi um miado que era quase um pedido de socorro: "Miau", disse ela, numa vozinha curta e rouca. Eu olhei para o chão e vi aquele serzinho que devia ter uns dois meses, esquálida, praticamente ali pra avisar que iria morrer. Mas guerreira como dois anos depois, numa nova doença, ela provaria que era, ainda teve forças pra dar um pulo em cima do banco de cimento onde eu estava sentado e se encostar em mim, depois de me dar umas três cheiradinhas de reconhecimento.

        Emocionado, disse pra ela (assim que reconheci que era, de fato, uma ela, claro), Posso até não conseguir te salvar, pequena, mas você vem comigo. Coloquei-a numa caixa e fomos direto para a veterinária, que a colocou no soro, tirou o bicho de pé que ela tinha e, no dia seguinte, me entregou, cheia de recomendações, uma gata com uma cara combalida e com o pé enfaixado, mas eu tinha esperanças de que ela fosse viver.

        E não só apenas viveu, como engordou, o pelo ficou lindo, e hoje é essa gata linda, cuja natureza felina é etérea e dadivosa, porque é bela e só misturada à humana para mostrar que os egípcios têm razão ao endeusarem gatos.

        Mishima veio não apenas para aplacar meu medo de gatos. Mishima veio - e está aqui - para mostrar-me como a vida pode - e deve - ter um ponto pacífico. Veio para me mostrar que não devemos ter preceitos formados a respeito de nada. Toda essa bobajada de que gatos são independentes, não se importam com seus donos, não são afetuosos, só pode ter sido proferida por quem nunca amou um gato. Ou então, agora mesmo, ela não estaria deitada ao meu lado, debruçada ao lado da minha perna, pra onde ela veio por livre e espontânea vontade, só pra ter o contato comigo, o toque. Nem me pediria água, comida, para trocar a areia dela ou dizer que quer ficar deitada ao meu lado, com miados e ruídos que a convivência vão nos fazendo identificar e compreender. Fora a sua elegância e educação refinada, que, se não veio de berço, veio de outras vidas, quando com certeza ela também foi um gato. Isso porque a evolução de um gato deve ser... ser um gato melhor numa outra vida. Ver essa gata mover-se dona dos seus arredores, conhecedora de seus espaços, com um olhar de quem sabe de sua própria existência, admirando tudo o mais que a cerca, é impressionante.

        Saber-se amado pela Mishima é saber-se dono de um amor incondicional, é sentir-se amado. O que nem sempre ocorre no mundo dos humanos. Mishima existe para que eu sinta a presença de algo a que não sei dar nome. 

        É na sua infinita alegria, carinho e força de viver que reside a beleza intensa do seu afeto, a sua resiliência que transmite paz. Descobri então que o olhar não é de alguém que sabe algo escuso de mim. Não, não. 

        Aquele olhar, esse olhar penetrante e forte, denota a sabedoria que, aos poucos, vou aprendendo a ter também.

        

      
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4 Comentarios "Mishima, a deusa que veio da favela"

  1. Oi meu amigo
    Saudades suas, adorei seu texto, apareça pra gente tomar um vinho, nem que for no mundo virtual!
    Achei seu endereço, vou te enviar o livro, espero que o Demon Dog seja uma boa companhia também!
    Abração! Bom fds!
    Adriana

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  2. Marco Severo, olá!
    Obrigada pelo solar. Olhe, eu ando encabulada lá no blog do Luiz, tenho aparecido demais- acho melhor a gente se falar por aqui, fico envergonhada c meu nome lá todos os dias. Que tal falarmos tb via blogs?
    Adorei sua crônica- tb detestava gatos, não odiava, mas detestava qd vinham em minha direção, e tb adotei 2- amo de paixão o Seinfeld- um gato lindo e a gatinha- q tb veio esquálida e está gorda agora, eu tenho uma certa dificuldade, amo, mas implico- será coisa de fêmeas?
    rs ela não obrdece de jeito nenhum- o gato eu condicionei- se eu chamo ele vem de onde estiver, ela é dissimulada, fica rodeando, fugindo- mas é uma gracinha tb.
    Hj tem alguém criticando o Luiz lá, viu? detesto este clima, me assusto logo rs Achei q o Luiz tinha toda razão, chamar alguém de nazista não cabe a não ser aos prróprios nazis. Bom, deve haver mt gente q não gosta do Luiz, nem da Cia... enfim, é a vida.
    Abraços e boa semana, Elianne, hj não estou solar:(...

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  3. Minha nossa, que coisa mais linda!
    Que texto forte, eu to impressionada com tamanho ato que você teve.
    Isso ate me encorajou a fazer o mesmo, pois igual a você eu tenho PAVOR a gatos =x

    Marco, meus parabéns, esse blog é muito bonito. beeeeeeeijooo..

    kayanne maia meneses

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  4. Oh me amor, obrigado pelas palavras! Você é um ser humano lindo, lindo mesmo, que eu adoro. Que bom que minhas palavras lhe tocaram de alguma forma.

    Volte sempre. Um beijão!

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