A própria autora sabe bem do que está falando: em 2009, seu irmão, obeso em estado mórbido, morreu de causas relacionadas à gordura aos 55 anos.
Grande irmão (editora Intrínseca, 336 páginas) não é exatamente, entretanto, um auto-exame através da ficção. Quem lê Lionel Shriver sabe que o prato predileto dela é tocar na ferida, é lidar com os assuntos vigentes de uma forma arrebatadoramente honesta e forte. Sem que conhecêssemos a vida da autora, Grande irmão já é um livro inteligente e arrebatador. Um pouco antes do fim, porém, há um momento que nos deixa de queixo caído, que é quando ela tira a cortina da frente do leitor e, nesse momento, vemos que a autora por si mesma também esteva ali, o tempo todo.
Descobrimos no romance que Pandora é uma empresária recém-chegada à casa dos quarenta, que tem um marido nesta mesma faixa etária e dois enteados adolescentes, Tanner, um jovem longilíneo, arrogante e cheio de si e uma garota um pouco mais nova, Cody, que faz o papel de uma filha "bonitinha", certinha, e talvez por isso mesmo, não perfeita.
Quando ela tem a notícia de que seu irmão, Edison, um pianista de jazz que ela já não vê há quatro anos, foi expulso do apartamento que dividia com um colega em Nova York, rapidamente se prontifica a recebê-lo por um tempo em sua casa em Iowa - dando não apenas o apoio que ele precisa naquele momento, mas também grana e a possibilidade de repensar sua vida, porque, claro, ele é seu irmão, e isso parece ser a coisa certa a ser feita.
E ela continua a "fazer a coisa certa". Em todas as vezes que ele faz algo que demonstra sua caminhada rumo a um lento suicídio, Pandora, a filha do meio e pacificadora por natureza, fica calada, embora pense em dizer algo. Mesmo depois de longos e excruciantes dois meses - que era o prazo para Edison ir embora, porque ele teria uma turnê em Portugal e na Espanha ao fim desse período - , quando ele quase chega às vias de fato com o marido de Pandora e depois de mudar os hábitos alimentares da sua família, Pandora decide, novamente, fazer algo pelo irmão. Algo que lhe parece ser o certo.
Assim, arriscando seu casamento e sua família, Pandora decide que vai dar um jeito no seu irmão. Aluga um apartamento para ambos morarem, perto da sua própria casa, e, após fazer os cálculos, descobre que ele vai precisar de um ano para perder os 101 quilos que precisa perder. Mesmo contra seu marido e filhos adotivos, é isso que ela decide fazer e faz.
Em que pese toda a construção psicológica dos personagens, nenhum deles fica de fora do conceito de claro-escuro. Nenhum deles é uni, ou mesmo bidimensional. Mais uma vez, Shriver nos leva a conhecer seus personagens intrinsecamente, suas dores, seus traumas de infância, seus sonhos, desejos e esperanças. E é isso que torna o livro tão absurdamente humano.
Continuar a contar sobre a trama seria estragá-la. Basta ainda dizer que a primeira parte do romance se chama "Mais", a segunda "Menos" e a última, de pouquíssimas páginas, se chama "Fora". É nesse terceiro momento que a escritora coloca a história pelo avesso e nos faz lembrar que é ela quem está no controle. A conclusão do livro é perfurantemente dolorosa, e de difícil digestão. É quando somos lembrados de que Lionel Shriver não é unicamente uma romancista, ela também gosta de polemizar, e o faz com a consciência de quem está verdadeiramente fincada no mundo e não veio a passeio.
Ao fechar o livro após finalizá-lo, ficamos com a sensação de que nossa incapacidade de lidar com a comida é uma das grandes causas da nossa infelicidade. Não apenas na forma como comemos, mas o que ela representa dentro da nossa sociedade, na nossa espécie, naquilo que nos torna o que somos. E é diante dessa reflexão e dessa inquietação que, uma vez mais, é impossível para o leitor sair incólume da leitura deste livro arrebatador.