Grande Irmão, de Lionel Shriver

Grande Irmão, de Lionel Shriver

                                                                                                         

Desde que a obesidade passou a ser tratada como doença, os números ditos oficiais começaram a aparecer. Descobriu-se que não só países desenvolvidos, como Estados Unidos e Inglaterra, mas Brasil, México, e tantos outros, dispendem uma grana preta para tratar de pessoas que, pelos mais impensáveis motivos, comem além da conta. 

A própria autora sabe bem do que está falando: em 2009, seu irmão, obeso em estado mórbido, morreu de causas relacionadas à gordura aos 55 anos.  

Grande irmão (editora Intrínseca, 336 páginas) não é exatamente, entretanto, um auto-exame através da ficção. Quem lê Lionel Shriver sabe que o prato predileto dela é tocar na ferida, é lidar com os assuntos vigentes de uma forma arrebatadoramente honesta e forte. Sem que conhecêssemos a vida da autora, Grande irmão já é um livro inteligente e arrebatador. Um pouco antes do fim, porém, há um momento que nos deixa de queixo caído, que é quando ela tira a cortina da frente do leitor e, nesse momento,  vemos que a autora por si mesma também esteva ali, o tempo todo.  

Descobrimos no romance que Pandora é uma empresária recém-chegada à casa dos quarenta, que tem um marido nesta mesma faixa etária e dois enteados adolescentes, Tanner, um jovem longilíneo, arrogante e cheio de si e uma garota um pouco mais nova, Cody, que faz o papel de uma filha "bonitinha", certinha, e talvez por isso mesmo, não perfeita. 

Quando ela tem a notícia de que seu irmão, Edison, um pianista de jazz que ela já não vê há quatro anos, foi expulso do apartamento que dividia com um colega em Nova York, rapidamente se prontifica a recebê-lo por um tempo em sua casa em Iowa - dando não apenas o apoio que ele precisa naquele momento, mas também grana e a possibilidade de repensar sua vida, porque, claro, ele é seu irmão, e isso parece ser a coisa certa a ser feita.

E ela continua a "fazer a coisa certa". Em todas as vezes que ele faz algo que demonstra sua caminhada rumo a um lento suicídio, Pandora, a filha do meio e pacificadora por natureza, fica calada, embora pense em dizer algo. Mesmo depois de longos e excruciantes dois meses - que era o prazo para Edison ir embora, porque ele teria uma turnê em Portugal e na Espanha ao fim desse período - , quando ele quase chega às vias de fato com o marido de Pandora e depois de mudar os hábitos alimentares da sua família, Pandora decide, novamente, fazer algo pelo irmão. Algo que lhe parece ser o certo

Assim, arriscando seu casamento e sua família, Pandora decide que vai dar um jeito no seu irmão. Aluga um apartamento para ambos morarem, perto da sua própria casa, e, após fazer os cálculos, descobre que ele vai precisar de um ano para perder os 101 quilos que precisa perder. Mesmo contra seu marido e filhos adotivos, é isso que ela decide fazer e faz.

Em que pese toda a construção psicológica dos personagens, nenhum deles fica de fora do conceito de claro-escuro. Nenhum deles é uni, ou mesmo bidimensional. Mais uma vez, Shriver nos leva a conhecer seus personagens intrinsecamente, suas dores, seus traumas de infância, seus sonhos, desejos e esperanças. E é isso que torna o livro tão absurdamente humano.

Continuar a contar sobre a trama seria estragá-la. Basta ainda dizer que a primeira parte do romance se chama "Mais", a segunda "Menos" e a última, de pouquíssimas páginas, se chama "Fora". É nesse terceiro momento que a escritora coloca a história pelo avesso e nos faz lembrar que é ela quem está no controle. A conclusão do livro é perfurantemente dolorosa, e de difícil digestão. É quando somos lembrados de que Lionel Shriver não é unicamente uma romancista, ela também gosta de polemizar, e o faz com a consciência de quem está verdadeiramente fincada no mundo e não veio a passeio.

Ao fechar o livro após finalizá-lo, ficamos com a sensação de que nossa incapacidade de lidar com a comida é uma das grandes causas da nossa infelicidade. Não apenas na forma como comemos, mas o que ela representa dentro da nossa sociedade, na nossa espécie, naquilo que nos torna o que somos. E é diante dessa reflexão e dessa inquietação que, uma vez mais, é impossível para o leitor sair incólume da leitura deste livro arrebatador.

Vitória Valentina, de Elvira Vigna









Há alguns anos, tive um choque ao ler Daytripper, dos cartunistas brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá. Até então, eu tinha verdadeira ojeriza àquilo que se convencionou chamar de "graphic novel", ou romance gráfico: o escritor cria uma trama, geralmente inédita (digo isso porque há também muitas adaptações de romances consagrados), e une a imagens que podem, ou não, ser também criação do escritor.

Foi a partir do mencionado Daytripper que vieram em seguida Fun Home (Alison Bechdel), Pagando por sexo (Chester Brown), A máquina de Goldberg (Vanessa Barbara) e muitos outros. Finalmente eu havia entendido como, sob muitos aspectos, a união de palavras + imagem poderia dar um resultado tão sui generis.

Qual não foi minha surpresa, então, quando me veio parar nas mãos o mais novo trabalho da Elvira Vigna, escritora que descobri em 2010 com o romance Nada a dizer

Elvira é dessas escritoras cuja obra tira o nosso chão. Pegue qualquer livro dela, e você será chacoalhado. Todos são romances pouco convencionais. Ler Elvira Vigna é saber que nada é o que parece; têm-se a impressão de estar num jogo de espelhos. A narrativa vai, volta, volta mais ainda, corre lá pra frente - e o leitor vai montando os pedaços e construindo os sentidos. Quando tudo se encaixa, a certeza que fica é que quem determina muito do que está ali, impresso sobre o papel, é o leitor. Porque é exatamente assim com a vida real: você faz a sua leitura diante dos fatos. Sofrimento, prazer, delírios, tesões, pancadarias e assassinatos: tudo depende do olhar, e cada olhar é regido pelo que há dentro do olhar de quem olha, e pelo que há fora, e isso muda quando quem olha sou eu, você, o Zé ou a Elvira Vigna.



Vitória Valentina (editora Lamparina, 128 páginas) não poderia ser diferente disso. O romance vai e volta no tempo, é construído com pedaços de um quebra-cabeça e aos poucos vai adquirindo corpo e sentido(s). Começa com uma tragédia numa favela: um casal mata um outro casal de vizinhos para roubá-los. Só que na fuga eles não encontram sorte melhor e também morrem num acidente de moto. Os filhos dos casais, (Carla) Vitória Valentina e Nando, terminam por ficarem amigos e crescem juntos. Nando é negro, é gay, e pra lutar contra seu medo atávico de motos, resolve ser motoboy. Carla torna-se professora, mas também trabalha como uma espécie de "babá-professora" pra ganhar mais uns trocados. E Nando, para complementar a sua renda, vende fotos de interesse para portais da internet. Nando e Carla tornam-se cúmplices, unidos pela força de uma enorme amizade construída a base das adversidades pelas quais passaram e passam na favela. Acontece que um dia Nando vê uma entrega de dinheiro, que sai das mãos de um empresário até então sem máculas e vai parar nas mãos de um traficante. Como fator complicador, temos o fato de que o dono do portal de notícias resolve armar um plano para pegar empresário e traficante em flagrante, só que o plano dá errado, claro, e é aí que os protagonistas têm que buscar usar da sagacidade e resiliência pra sair da enrascada. Nesse ínterim, surgem o desejo, a abnegação, a tolerância consigo mesmo e com os outros.



Num texto afiado repleto de humor e perspicácia, Elvira Vigna critica esses valores cada vez mais em voga na nossa sociedade, como o consumismo, a força do poder econômico que oprime os que dependem da sua vontade, e um libelo contra o machismo, e a favor da liberdade do ser e de ser, tudo isso numa junção perfeita entre texto e imagens em preto-e-branco que, como a própria autora define, são imagens "sujas". Um deleite para os olhos, mesmo que muitas vezes representem aquelas velhas questões sociais que continuam aí, pra quem quiser ver, e que continuam doendo naqueles que ainda não se "icebergdificaram".

O livro é curto, delicado e profundo, como tudo o que sai de dentro dessa autora que existe para tirar a literatura brasileira do marasmo, e que deveria ser muito mais reconhecida e lida neste país. Um dia será, mas enquanto esse dia não chega, temos a sorte de ter uma escritora de tal envergadura sempre criando, inventando e colocando para o mundo não as suas verdades, mas seus questionamentos e suas indignações. E é por isso que devemos ler Vitória Valentina. É por isso que devemos prestar muito mais atenção na arte desta escritora sem precedentes.


http://www.vigna.com.br - site da autora


http://www.lamparina.com.br -  site da editora que ajudou a trazer a Vitória Valentina ao mundo.