Travessia: o show de Milton Nascimento em Fortaleza

Travessia: o show de Milton Nascimento em Fortaleza



Estaquei diante da tela por dois ou três segundos quando vi, numa postagem em uma rede social, que Milton Nascimento faria um show em Fortaleza.

O Milton. Aquele que, quando ainda bem pequeno, tinha a capacidade de me lançar num universo que só quem sente a música é capaz de compreender, ainda que não entenda os motivos. Descobri sua arte quando ainda tinha dentes de leite na boca. E, naquele tempo, que poderia eu entender do que ele tinha a dizer? Mas eu entendia o que ele me fazia sentir, embora não soubesse alocar aquele sentir em lugar nenhum dentro de mim. E o sentimento ficava correndo, disperso, inundando, eu que já estava invadido e era presa. 

Poucos anos depois, uma professora levou a canção "Caçador de mim" para a sala. Distribuiu folhinhas com a letra. Tocou a música umas duas vezes. Fez reflexões e ponderações sobre a letra. Metade da sala bocejava quase bovinamente. A outra metade estava dividida entre conversar e prestar atenção. 

Lembro que saí daquela aula transformado. Então era isso, eu sou o que sou e mesmo assim passo a vida tentando me encontrar, eu que não me busco em lugar nenhum porque não estou em lugar nenhum a não ser dentro de mim mesmo, com minhas qualidades e meus achaques? Pois não é que era isso mesmo?!

Alimentava o desejo de ir a um show dele como nunca alimentei o desejo de ver outros artistas que também gosto, como o Chico Buarque e o Caetano Veloso, dos quais shows já vi. 

É então que retomamos o momento em que vi que o aniversário de Fortaleza seria celebrado com um show dele, na praia. Fiz contatos. Era hora de ver quem queria ir. Já sabia que meu amor não poderia ir, eram os amigos que fariam companhia. 

Chegamos à praia com artistas cearenses tocando num palco gigantesco, com telões e muita luz. Como não somos muito ligados aos artistas locais contratados, conversamos, recebendo a brisa gostosa vinda do mar, as ondas quebrando na praia a poucos passos de nós. Éramos três. Eu e uma amiga recém-adquirida mas com ares de para a vida toda, que trouxera uma outra amiga desde a época da faculdade delas. Os papos giravam em torno de tudo, enquanto o show acontecia no palco à nossa frente. 

Ao nosso redor, todo tipo de gente. E como foi interessante observar esta pluralidade!, que ia desde aquela pessoa que estava ali porque o evento era gratuito, ao universitário e ao fã mais devoto do Milton.

Antes dele, a fadista Carminho, que foi trazida à luz por conta da intervenção da sua generosidade, cantou para os presentes, demonstrando elegância, verdade e força na sua arte. Não sou grande apreciador do gênero, mas minhas companheiras eram, e curtiram muito. 

Foi então que chegaram mais dois amigos, um deles aniversariando àquele dia. Pronto, o grupo estava completo. Feitas as apresentações (os meninos não conheciam as meninas), o evento se desfraldava diante de nós.

Nascia ali, então, o Milton. Ele entrou no palco timidamente, quase imperceptível. E demonstrando uma fragilidade que eu não sabia que era própria dele. Disse um rápido "Boa noite. Parabéns, Fortaleza". Assim, sem muita empolgação, e entoou a primeira canção. Carminho estava no palco e o acompanhou. Depois, cantou uma música que, segundo ele, sua mãe cantava para ele, quando criança. E Carminho também o acompanhou. O dueto foi emocionante. Sorrateiramente, a fadista desaparece do palco, dando espaço para Milton cantar, sozinho, "Caçador de mim".

Depois dessa música, Milton Nascimento já tinha a atenção de toda a plateia. E como ele foi generoso! Cantou todas aquelas canções que costumamos ouvir e sempre conectamos a algum momento de nossas vidas. Apesar de tímido, usando uma camisa xadrez que mais parecia toalha de pic-nic e óculos escuros, a estética do cantor tornou-se seguramente o item menos importante. Ali, o protagonista foi, como sempre terá de ser, a voz. 

Não segurei as lágrimas em muitos momentos. E testemunhei coisas lindas de se ver como, por exemplo, quando ele cantou "Canção da América", as pessoas simplesmente se abraçaram, naturalmente, como se esse fosse um movimento que a música pedisse, como se tivesse sido ensaiado e/ou pedido pelo artista. Mas não. As pessoas simplesmente trocaram abraços de uma forma terna, como a lembrar por quê estavam ali. Era olhar para os lados e ver gente com os braços envoltos em torno de outras. Tanta ternura fez até dar vontade de acreditar mais no ser humano. Ou desacreditar um pouco menos, não sei.

O certo é que a experiência vivida naquele lugar foi de uma realidade onírica, que é etérea porém igualmente real. E, tal como num sonho, onde nunca sabemos precisar onde começa e onde termina, ainda estou sob os auspícios de tanta alegria e felicidade.

Vivi horas em que não apenas realizei um sonho, mas fiz isso na companhia de pessoas que quero carregar sempre ao meu lado. Senti que, como diz Milton, "cantando me disfarço e não me canso de viver nem de sonhar". Porque é sempre hora de cantar a vida. É o que mantém os sonhos vívidos. É sonhando que percorremos espaços desconhecidos, nos mais profundos recônditos do nosso eu. E, ao despertar, fazemos a travessia dos caminhos, rumo a algo plausível, real. Estar num show de Milton é fazer essa passagem.

E Milton, como ninguém, transforma a vida na mais plena e perene felicidade.