Divórcio, de Ricardo Lísias

Divórcio, de Ricardo Lísias



Os labirintos do amor - e da moral

Comecei a ler o novo romance de Ricardo Lísias, Divórcio (Alfaguara, 237 págs) com uma expectativa enorme. Não teve jeito: comecei a julgar o livro pela capa, que é ao mesmo tempo intrigante, profunda e repleta de palavras, mesmo mostrando alguém sem condição de esboçar qualquer gesto.

Imagine a situação: você casou por amor, com alguém que espera ficar junto até a velhice. Um dia, inadvertidamente, diante da lembrança de que precisa pagar uma conta, abre uma gaveta. Lá, além da conta, você vê algo que parece um diário. Um diário que pede pra ser visto. Não porque você gosta de bisbilhotar as coisas de quem quer que seja mas porque, vivendo numa casa com seu cônjuge e ninguém mais, ele parecia gritar um LEIA-ME, tal como o vidrinho de Alice clamando, BEBA-ME. E você o faz. Sem acreditar nas palavras, você descobre que aquela pessoa com quem se casou tem opiniões a seu respeito que, até dois minutos atrás, você ignorava completamente. Não, você não se casou com uma atriz. Mas, com certeza, com um ser humano sórdido e absolutamente dissimulado. Numa antevisão do abismo no qual você mergulhará nos próximos dias e meses, você sai de casa e faz cópias de todas as páginas, inconscientemente sabendo que precisará de cada uma delas para curar sua dor através da escrita, da literatura que, pra você, é a única coisa capaz de salvar você de si mesmo.

Digamos que este seja o mote inicial. A partir daí, o leitor é jogado dentro de um labirinto, tal qual o Minotauro de Creta, e, assim como ele, é levado a devorar. Ao contrário do animal metade touro, metade gente, que devorava humanos, nós seguimos engolindo páginas, a fim de compreender não onde a trama vai dar - afinal, isso está explicitado desde o título - , mas na transformação porque passará Ricardo Lísias ao final. O que saiu daquele imbróglio de sentimentos?

Não é por acaso que cada capítulo é descrito como um "quilômetro". O protagonista começa a correr como forma de expurgar determinadas energias de dentro de si, e tentar dar um sentido aos seus pensamentos. Acompanhamos Ricardo Lísias neste processo, e sua evolução constante nos treinamentos leva à sua própria evolução. A alguém que começa a seguir o fio do novelo de lã deixado à porta do labirinto, rumo à saída.

A sensação, entretanto, é a de estar afundado num romance onírico, em que o sonho/pesadelo é confundido com os tons de uma pretensa realidade. Kafka manda lembranças. 

Ao longo do livro, as frases curtas do autor incomodam. Parece que ele tem medo de ir adiante e fazer frases longas, expor longos pensamentos. Não. É o reflexo de um homem que perdeu não apenas a esposa, mas a crença em quase tudo, e as frases curtas são, também, o reflexo desse homem sem chão: ele não tem condição de escrever longamente, e por conseguinte, consegue dizer muito, em pouco.

Não se pode afirmar que tudo ali tenha acontecido - eis aí onde entra a história do "romance". O próprio autor já andou dizendo que não procurem-no verdadeiramente no livro: ele, ali, é um personagem. (Aliás, esse é outro pensamento-labirinto do personagem: a sensação de estar sendo um personagem de uma história sua). E é por essa sensação (também), que o livro vai se construindo dentro do leitor. Tal como alguém perdido num ambiente desconhecido, as informações vêm e vão. Coisas ditas anteriormente são repetidas, dentro de outros contextos. Trechos do diário publicados editadamente são acrescidos de detalhes mais adiante, com as informações anteriores repetidas. É como ler um conto de Borges, em que tudo explica os detalhes, e os detalhes formam o todo. As informações são circulares.

Através do livro ficamos sabendo de onde vem a família de Ricardo Lísias. Fotos são utilizadas esparsamente, durante todo o romance, sem nenhuma conexão aparente. As fotos são inteiras, mas funcionam como peças de um quebra-cabeça: o que é a ideia de família pra este narrador e, mais do que isso, qual a importância que essa ideia tem? Pois este é mais um recurso utilizado pelo autor para nos dizer, Toma. As peças estão no chão. Agora sente aí e monte. Dono de opiniões fortes sobre fidelidade, ética e moral dentro de um relacionamento, o narrador jamais volta atrás, nem mesmo diante da dúvida. Há um momento em que ele afirma que, ao fazer uma espécie de lista com tudo aquilo que o maltratou durante o período pós-casamento, ele não escreveu a palavra mulher. Ou seja, sua crença no amor possível, na finitude de um relacionamento ocasionada apenas pela morte, permanecem firmes, ainda que não tão fortes, talvez. Não naquele momento.


O fato é que é impossível sair incólume deste livro a um só tempo onírico e tão calcado na realidade. Ricardo Lísias, o escritor, escancara não apenas com a tenuidade dos valores morais (e profundamente humanos), e não apenas com a falta de moral de determinada classe de profissionais e grupo de pessoas. Ricardo Lísias, o escritor, e o narrador, arregaçam para nós, leitores, que viver é andar em campo minado o tempo inteiro. Viver é intimidador, e a vida - Vida - vai sempre trazer mais motivos pra gente chorar do que pra rir. Mas que, nem por isso - e é aí onde reside a boa notícia - percamos aquilo a que se pode chamar de fé no Outro. Ou, simplesmente, a vontade de fazer com que as coisas funcionem num relacionamento. Qualquer que seja ele. 

Divórcio é, afinal de contas, não unicamente um livro sobre uma ruptura inevitável. É, seguramente, um livro sobre a importância de perder-se para achar caminhos, a necessidade do sim, para que outros sins possam ser ditos com ainda mais convicção. São 237 páginas em que o personagem se reconstrói a partir do quase nada que se tornara, para que, a partir dali, possa ser, inequivocamente, não apenas outra coisa. Mas outras. Porque abrir-se para a vida, compreendemos ao final, é viver a pluralidade, é permitirmo-nos o olhar sobre o simples. 

Divórcio talvez seja, em essência, uma ode ao homem comum. Ao homem que compreende sua finitude - e que, por isso mesmo, compreende e valoriza cada pequeno momento. Porque uma vida com significado é uma vida, afinal, vivida com amigos, familiares... mas tornar-se ainda mais dignificada se vivida a dois, com os prazeres e achaques, sim. Mas compreendendo que cada dia é exatamente isso: um dia para ser vivido. Eis que, depois do emaranhado de tessituras narrativas, nos despedimos do romance com um pedido do narrador feito àquela que ele constantemente chama de "transtornada": "Esqueça-me". 

Ela pode até conseguir. O leitor, este lembrará do Ricardo Lísias, personagem e escritor, ainda por um longo tempo após a leitura deste livro, misto de romance e confessionário. E que, como todo bom romance, não tem fim.


A Delicadeza do Amor, filme de David Foenkinos

Apesar de ser um filme com a Audrey Tautou, (a eterna Amélie Poulain), que é uma atriz cujos trabalhos procuro conferir sempre, tive uma certa resistência para assistir este filme. O motivo é simples: o roteirista e diretor é ninguém menos que David Foenkinos, e este, por sua vez, é o autor do livro (A Delicadeza, editora Rocco) que deu origem ao filme. Ano passado, por duas vezes, comecei a ler este romance, e não prossegui. Achei o livro chato, claudicante, dessas leituras que emperram. Mas também já conheci quem gostasse muito, só que realmente não foi o meu caso.

Passada a resistência inicial, entretanto, fui tentar entender o que seria esta delicadeza do amor, do amar. E foi quando tive uma grata surpresa.

Apesar do título, não se trata nem de um dramalhão, ou seja, não é um filme piegas, nem, muito menos, uma comédia romântica. O filme nos entrega exatamente aquilo a que se propõe: narrar, em uma hora e quarenta minutos, um exemplo que demonstra, de uma forma surpreendentemente bela, o quão ampla a vida é, e nunca, jamais, estará circunscrita apenas àquilo que inicialmente julgamos como sendo o certo, ou o que nos cabe e, se não for, nada mais será.

Nathalie é uma jovem de beleza suave, alegre, feliz com as pequenas coisas da vida, que encontra em seu caminho François, um homem também de grande beleza, e os dois vivem um romance intenso e extremamente delicado. Ambos moram juntos e fazem planos de eternidade. Só que um acidente tira dela todos os seus planos de felicidade conjugal, e ela volta a sua vida para o trabalho. Cresce na empresa com naturalidade, e se esquiva, com destreza, das investidas de seu chefe. Até que um dia, de maneira inusitada, ela acaba por envolver-se com um colega de trabalho. Sendo ele subalterno a ela, e tendo uma aparência mais humilde e simples, ambos se veem sendo julgados e criticados onde quer que estejam. E ao final compreende-se que às vezes, para viver um grande amor, faz-se necessário nos libertarmos de alguns grilhões, sejam eles impostos pelo olhar do Outro, ou impostos por nós mesmos.

A sensibilidade - e a surpresa! - do amor de ambos, de descobrirem-se amando, é que faz o filme se desenvolver de uma forma ao mesmo tempo singela e forte, e nos brinda com um final igualmente simples, e extremamente tocante, porque imensamente humano.

A delicadeza do amor é um desses filmes com uma linguagem direta, mas de grande sutileza, que conduz o espectador, de emoção em emoção, às descobertas de si mesmo. Aquilo que muitas vezes não pensamos ser possível, nos damos conta de que sim, pode acontecer. É passível de acontecimento na vida real, porque mesmo as metáforas ali contidas, são reais, existem para nos tocar, nos sensibilizar e humanizar.

Chegamos ao último minuto com vontade de sermos amados não apenas do amor romântico, mas desejando que a Vida nos abrace. Já que estamos aqui, e estamos vivos, que possamos viver o Amor em sua plenitude, ainda que este próprio Amor nos dê susto, por vezes, por vezes também se perca, e que nos faça sofrer. A ideia é que a vida implica em sofrimento (também, mas não somente), e que temos de encarar as adversidades, ainda que inicialmente, não seja algo fácil, nem simples. A delicadeza do amor reside na delicadeza da vida, da alma. É como ver um quadro de Klimt, em toda a sua imensa estrutura que remete não apenas ao sexo, mas àquilo que une duas pessoas. 

Ver os últimos minutos, o que é dito por um dos personagens sobre o outro, é dessas forças que nos atravessam, mas o fazem com delicadeza. E são obras assim que fazem a gente sentir que este tal Amor, tão banalizado em filmes de gosto duvidoso e músicas de gosto mais duvidoso ainda, é atemporal, e algo tão inerente ao ser humano que, embora possamos questioná-lo, torna-se imperativo, também, vivê-lo.
Amsterdam, de Ian McEwan

Amsterdam, de Ian McEwan





O que torna um grande autor grandioso? 

Amsterdam, publicado em 1998, venceu um dos prêmios literários britânicos mais prestigiados, o Booker Prize. Seu antecesso, Amor sem Fim, sequer entrou na lista.

É desses altos e baixos que qualquer carreira é feita, é desse permeado de adversidades e benesses, por certo, que os caminhos são trilhados e testados. Em Amsterdam, Ian McEwan promove um embate entre duas figuras excêntricas, que claramente caminham rumo à tragédia - mas o leitor só se dará conta de até que ponto, nas últimas páginas do livro.

Entretanto, que ninguém se iluda: isso aqui não é um thriller desses autores suecos da moda. As tribulações porque passam suas duas figuras centrais se dão, amiúde, de maneira fria e irônica. 

O que vemos logo que a trama começa é uma cena que se desenrola no crematório, onde uma certa Molly Lane está, justamente para ser cremada. Os protagonistas, Clive Linley, e Vernon Halliday, estão prestando homenagem a ela. Ambos foram seus amantes no passado, e evitam falar com o marido da falecida, por quem não nutrem nenhum tipo de (bom) sentimento. Rancor, raiva, e outras coisas do gênero, certamente.

Os presentes ao evento são o tipo de gente que cresceu numa Inglaterra de pleno emprego, crescimento das universidades e ideais atingíveis. Gente que já tinha a vida ganha quando Margaret Thatcher chegou ao poder.

Clive e Vernon dividem o foco das atenções, o que é algo bastante apropriado num romance em que os capítulos são narrados em terceira pessoa, mas, intercaladamente, um é sob o ponto de vista de Clive, outro, o de Vernon. 

Clive Linley é um compositor, herdeiro de Ralph Vaughan Williams, e autor de um livro que se propõe a ser uma reação à "velha guarda" do modernismo e de sua tentativa de retirar da música a melodia e a harmonia. Ele foi encarregado de escrever uma sinfonia, e um comitê que prepara as celebrações para o novo milênio espera retirar dela uma melodia que possa fazer sucesso nas festas de celebração. O problema é que ele já ultrapassou dois prazos, a coisa não está vindo com tanta facilidade, mas ele está quase lá. E louco pra produzir a "melodia irresistível" que ele vai produzir como se fosse uma elegia para o século que está ficando para trás. Fica relativamente claro, entretanto, que o homem tem talento. McEwan descreve as dificuldades de se criar música com um know-how extraordinário, e há um evento no livro, quando Clive faz uma caminhada por um bosque, que torna isso ainda mais... intrigante.

Vernon Halliday, por outro lado, é o editor de jornal que está indo à bancarrota. Ele tem lutado pra fazer o volume de circulação do jornal aumentar e, assim, garantir que ele vai ter emprego no mês seguinte. Mas o negócio não tá fácil. 

Sua oportunidade de fazer ambas as coisas vem quando o marido da finada Molly oferece a ele fotos altamente comprometedoras de Julian Garmony, um secretário de um partido de extrema direita, que gosta de, por assim dizer, vestir-se com roupas apropriadas para a esposa dele. As fotos foram tiradas por ninguém menos que Molly, que também tinha tido o tal Julian como amante. E claro, este Julian é um desafeto de todos os envolvidos. Só que, quando Clive conta esta historinha para Vernon, ele fica p. da vida, dizendo que isso é um absurdo, que isso é um insulto à memória da Molly etc etc, e ambos ficam meio magoados um com o outro.

Tudo isso parece bem maquinado pelo autor, certo? Certíssimo. Amsterdam é um livro bem pensado do começo ao fim, e o prazer do autor em trazer para o leitor os eventos fora da ordem, pra que nós possamos montar o quebra-cabeça, é evidente em cada página.

Quando perguntaram a Vladimir Nabokov se, por vezes, seus personagens não fugiam ao seu controle, ele respondeu que eles eram escravos mantidos de forma severa sob suas rédeas a todo momento. McEwan segue essa prescrição à risca. 

Finalmente, os eventos começam a detonar com a vida de ambos. A publicação das fotos pelo jornal de Vernon vira um circo, e Clive oscila entre delírios de grandeza e momentos de extrema insegurança, levando-o a um espiral que beira a loucura. 

A partir daí, a promessa de tragédia feita ao leitor lá no começo da trama começa a se cumprir. E embora o autor utilize-se de meios que parecem arrumadinhos demais para parecer verdadeiros, o desfecho do livro acaba por torná-lo, se não uma obra-prima, certamente algo que se aproxime de uma boa e apreciável obra de arte.